• Nenhum resultado encontrado

1. REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: SOBRE O PENSAMENTO DE

1.2 MÉTODO E CONTEÚDO: REPENSANDO O OFÍCIO

A História Cultural, dedicada a analisar os embates, as distorções, os valores, as continuidades, as permanências e as tradições comuns em diferentes culturas, é erigida, a partir dos anos de 1970, como um movimento de oposição à postura interpretativa do Marxismo e da corrente de Annales, sem, entretanto, romper definitivamente, pelo menos em princípio, com essas que foram a sua matriz original. Para Pesavento (2004), em linhas gerais, ―pode-se dizer que a proposta da História Cultural seria, pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressam a si próprios e o mundo [...]‖ (p. 42).

Nesse cenário, à História Cultural é designada a tarefa de repensar seus objetos e princípios, sem, entretanto, abrir mão de pressupostos já consagrados pela história social. Assim, os ―novos domínios de investigação com a fidelidade aos postulados da história social, eram

como a tradução da estratégia da própria disciplina, que visava a apropriação de uma nova legitimidade científica‖ (CHARTIER, 2002b, p. 15).

Em ―A História Cultural: entre práticas e representações‖, publicado pela primeira vez, no Brasil, em 1988 – obra que representa uma virada no pensamento chartieriano, uma vez que conclui que mesmo numa pesquisa longitudinal não é possível construir generalizações, pois o cenário se modifica constantemente, e o detalhe, o ―micro‖ serve como um dado eminente – , depois de listar uma série de censuras às quais foram submetidos os historiadores franceses e a história das mentalidades, Chartier questiona alguns pressupostos já estabelecidos e oposições muito marcadas, delimitadas (erudito/popular, criação/consumo, realidade/ficção, etc.), afirmando ser necessário reavaliar essas distinções tidas, historicamente, como evidentes e inquestionáveis.

É o que ele faz, por exemplo, ao analisar a oposição entre letrado e popular e concluir que não é simples identificar um nível cultural ou intelectual, considerando-se que a cultura popular já era, naquele momento, um conjunto misto com elementos de origens bastante diversas; nesse sentido, cita o cordel – produto tradicionalmente reconhecido como de origem e destinação popular, mas submetido aos processos de reescrita e de editoração, assim como ocorre com outros textos pretensamente letrados, que sofrem procedimentos editoriais que visam a torná- los mais acessíveis. Mais do que romper com paradigmas analíticos, Chartier desloca a questão para um outro terreno e estabelece para si uma premissa que perpassará todo o seu pensamento:

[...] Saber se pode chamar-se popular ao que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais nada identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais (CHARTIER, 2002b, p. 56).

São oposições historicamente valorizadas, entretanto, insustentáveis, não só pelos empréstimos, intercâmbios e pela pluralidade das práticas culturais, mas, sobretudo, pelos desvios, pela negação de rótulos e reducionismos. Para Chartier, é impossível estabelecer correspondências estritas entre ―objetos ou formas culturais particulares e grupos sociais específicos‖ (2002b, p. 134), pois

Todos os materiais portadores das práticas e dos pensamentos na maioria são sempre mistos, combinando formas e motivos, invenção e tradições, cultura

letrada e base folclórica. Por fim, a oposição macroscópica entre popular e letrado perdeu a sua pertinência [...] A história sociocultural aceitou durante muito tempo (pelo menos na França) uma definição redutora do social, confundindo exclusivamente com a hierarquia das fortunas e das condições, esquecendo que outras diferenças, fundadas nas pertenças sexuais, territoriais ou religiosas eram também plenamente sociais e suscetíveis de explicar, tanto ou melhor do que a oposição entre dominante e dominados, a pluralidade das práticas culturais [...] (CHARTIER, 2002b, p. 134-135).

Essa falsa querela encontra paralelo no que se refere à origem, ao contexto e à destinação do livro didático, um objeto cultural de feições bastante peculiares, mas passível de múltiplas apropriações. Apropriações essas muitas vezes bastante distintas daquelas que inspiraram sua produção.

Desde seus primeiros escritos, portanto, é notória a postura autorreflexiva de Roger Chatier sobre o próprio ofício. Principalmente, porque esse exercício resultava de uma necessidade premente de distanciar-se de um modelo de formação intelectual dominante na história das mentalidades. Marcando uma diferença com essa tradição histórica, e apesar de afirmar que ―todo percurso científico é feito de escolhas inconscientes, de encontros imprevistos, do acaso‖ (2011a, p. 22), Chartier transforma método em conteúdo e mostra-se cada vez mais convicto de que no trabalho do historiador é impossível dissociar as pesquisas das preocupações metodológicas e, assim, garante:

[...] conservarei a preocupação de não dissociar jamais a reflexão metodológica ou teórica, que permite o diálogo com as disciplinas vizinhas, de estudos ligados a corpus, objetos ou questões bem-delimitadas e localizadas; ou o hábito de retomar os mesmos problemas ou os mesmo textos para propor, numa série de artigos ou de um livro a outro, entendimentos mais seguros e profundos [...] (CHARTIER, 2011, p. 52-53). Essa maneira de pensar o historiador também fica evidenciada no debate de Carlinda Fragale Pate Nuñez (2011) sobre o artigo ―Uma trajetória intelectual: livros, leituras, literaturas‖, de Chartier. Nessa laboriosa missão de intervir no texto de um autor habituado à autocrítica e ao constante movimento de retorno à própria escritura e concepções, Nuñez (2011) destaca três elementos que, em suas palavras, sumarizam a vida intelectual de Roger Chartier: a trajetória, os impasses e a tarefa intelectual. O primeiro, marcado pelo exercício autorreflexivo, principalmente, problematizando a aparência de neutralidade do trabalho do historiador ―que traz consigo as marcas de um éthos, de locus e de uma týkhe (sorte pessoal), recorta o mundo que lhe interessa investigar e o representa, a partir dos nexos que ele descobre ou

inventa/deduz‖ (NUÑEZ, 2011, p. 57); o segundo elemento refere-se às particularidades da historiografia e da ficção e à problemática de se precisar conceitos que

[...] transitam na zona de fronteira entre a história cultural e a teoria da literatura – zona essa que não é um lugar de separação, mas onde identidades podem passar protegidas por ambos os territórios; práticas e hábitos são negociados sem cobrança de tributos; e intercambiam-se materiais e capitais concretos e simbólicos (NUÑEZ, 2011, p. 58-59).

Nesse sentido, é necessário explicar que Nuñez traz à baila os conceitos nodais do pensamento de Chartier, justamente, por constituírem tanto o ponto de ruptura com a história das mentalidades quanto a possibilidade de uma abordagem articulada entre história e literatura. A saber, os conceitos de representação, prática e apropriação:

[...] No âmbito dos estudos literários, a representação – que tem uma historicidade própria remissiva à mímesis grega, mas dela já diferida – é uma modelação estética capaz de dialetizar com a realidade, materializando as ficções através da voz selvagem da língua; a categoria de prática, para o crítico literário ou o historiador da literatura, remete à lide propriamente analítica com textos de imaginação e com o discurso estético, bem como ao contínuo aperfeiçoamento do aparato teórico e conceitual, sem o qual se esboroa a especificidade da literatura; as modalidades de apropriação com as quais o campo literário lida levam às revisões do cânon, à verificação dos critérios de inclusão e exclusão de obras no repertório literário (NUÑEZ, 2011, p. 58).

Para encerrar a lista de Nuñez, o terceiro elemento basilar na trajetória de Roger Chartier – a tarefa intelectual – diz respeito ao empenho do autor em retomar a historicidade dos textos ligados às diferentes modalidades de sua transmissão, como forma de pensar, a partir e além do passado, ―o destino do mundo da leitura, numa cultura midiática e num contexto hiperestetizado, que prestigia a cultura de massa e sofre um abalo de hábitos imemoriais, substituindo-os ostensivamente pelo consumo imediatista de produtos superficialmente estéticos‖ (NUÑEZ, 2011, p. 61), sem, entretanto, buscar interpretações ―corretas‖ ou usos ―apropriados‖ dos textos.

De maneira semelhante, pretendemos pensar o livro didático e, particularmente, o feminino nesse objeto cultural, sem por um lado adotarmos uma postura prescritiva e, por outro, sem ignorarmos suas limitações ou os constrangimentos aos quais está submetido. Não se trata,

como já mencionado anteriormente, nem de reivindicar um status incompatível com os usos e contextos vigentes, nem desconsiderar, como adverte Dalvi (2010), que

[...] o manual escolar pode ser um espaço de rasura: não se pode prever ou controlar a apropriação que dele se faz. Nesse sentido, ainda que com as lacunas todas já fartamente apontadas pela produção acadêmica na área, o livro didático – e, especialmente, no nosso caso, o de língua portuguesa e literatura para o ensino médio – pode ser apropriado ativamente, pode fomentar a errância, legitimando a autoria e estimulando a autonomia do leitor (p. 37).

Todo esse esforço de Nuñez (2011) em compendiar o pensamento charteriano vai ao encontro da postura reflexiva de Chartier acerca de seus fundamentos teórico-metodológicos, bem como da própria disciplina.

Dessa ―crise‖ metodológica da História e da área da História Cultural no bojo da cultura escrita surge, portanto, a necessidade de Chartier de explicar suas escolhas metodológicas, sistematizadas pelo próprio pesquisador em três polos, normalmente pensados separadamente pela tradição acadêmica, mas que ele enxerga como elementos indissociáveis:

[...] de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos agenciamentos e estratégias; de outro lado, a

história dos livros e, para além, de todos os objetos que contêm a

comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferençadas [...] (CHARTIER, 1991, p. 178, grifo meu).

Consequentemente, uma pesquisa sobre a multiplicidade de significações de um texto requer uma atenção especial para as relações historicamente estabelecidas entre o texto e o leitor em diferentes contextos, haja vista duas formulações essenciais:

[...] A primeira hipótese sustenta a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes). (CHARTIER, 1991, p. 178).

Essa postura não só metodológica, mas de perspectiva epistemológica, é tributária, principalmente, dos postulados sobre campo intelectual, bens culturais e sistemas simbólicos de Pierre Bourdieu – para quem uma das questões capitais é compreender o vínculo

estabelecido entre as condições de existência do sujeito e suas formas de percepção e atuação em seu grupo, ou mesmo fora dele.

Ancorado nessa e em outras reflexões, o interesse de Chartier pelas práticas de leitura como importante forma de vida social surge na medida em que reconhece que os sentidos são produzidos historicamente e que ―uma configuração narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria experiência‖ (CHARTIER, 2002b, p. 24):

[...] No ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo [...] (CHARTIER, 2002b, p. 24).

É a partir dessa perspectiva que Chartier percebe na história do livro e da leitura um campo fértil de pesquisa que o possibilitava acessar diferentes formas de representações culturais do passado em contextos específicos. De modo que tanto a apropriação e a recepção quanto a materialidade das obras, historicamente dissociadas pela tradição ocidental, integram igualitariamente o processo interpretativo, à medida que ajudam a

[...] compreender como as apropriações concretas e as invenções dos leitores (ou dos espectadores) dependem, em seu conjunto, dos efeitos de sentido para as quais apontam as próprias obras, dos usos e significados impostos pelas formas de sua publicação e circulação e das concorrências e expectativas que regem a relação que cada comunidade mantém com a cultura escrita. (CHARTIER, 2010, p. 43).