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3. SOBRE O FEMININO: GÊNERO, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

3.1 MOVIMENTO FEMINISTA: UMA TRAJETÓRIA DE (DES)ENCONTROS

3.2.1 Gênero: um termo, múltiplas perspectivas

O termo gênero surge num momento específico do Movimento Social Feminista de 1970, como uma rejeição ao determinismo biológico e à naturalização das distinções fundamentadas no sexo. Sobre essa nova forma de categorização, Nader e Rangel (2014) escrevem que

No campo das ciências humanas, principalmente na área de estudos sobre as mulheres, o termo gênero foi tomado de empréstimo passando a designar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, implicando, portanto, na rejeição do determinismo biológico implícito nessa categoria e estabelecendo o caráter relacional das identidades feminina e masculina. Ou seja, representando o aspecto social das relações entre homens e mulheres, gênero é um conceito que se distingue do conceito biológico de sexo (p. 12).

Também versando sobre o tema, Adriana Piscitelli (2009) resgata a constituição histórica desse conceito, que foi inovador em diversos aspectos, ao explicar que

[...] O termo gênero, em suas versões mais difundidas, remete a um conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outras são percebidas como resultado dessas diferenças. Na linguagem do dia a dia e também das ciências a palavra sexo remete a essas distinções inatas, biológicas. Por esse motivo, as autoras feministas utilizaram o termo gênero para referir-se ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade (p. 119).

Entretanto, Piscitelli (2009), numa interlocução com a historiadora Donna Haraway, indica, posteriormente, um possível precursor do conceito de gênero cuja origem não estaria vinculada a teorias feministas: elas atribuem ao psicanalista estadunidense Robert Stoller a responsabilidade pela introdução do termo gênero para estabelecer uma distinção mais clara entre natureza e cultura, no Congresso Psicanalítico Internacional em Estocolmo, em 1963. Portanto, anterior à apropriação do termo pelo Movimento Social Feminista na década de 1970, como mencionado anteriormente.

Piscitelli explica que para Stoller, ―quando nascemos somos classificados pelo nosso corpo, de acordo com os órgãos genitais, como menina ou menino. Mas as maneiras de ser homem ou mulher não derivam desses genitais, mas de aprendizados que são culturais, que variam segundo o momento histórico, o lugar, a classe social‖ (2009, p. 124, grifo da autora). Stoller estabelece, portanto, essa distinção como forma de explicar, à luz da psicanálise, a identidade de gênero.

Mas foi o movimento feminista da década de 1970 que atuou decisivamente na formulação do conceito de gênero em função de uma luta social e de uma articulação teórica que evidenciasse que as distinções entre o masculino e feminino são de caráter social.

Importante lembrar que essa não foi a primeira bandeira do movimento feminista, que atuou desde o final do século XIX, início do século XX – a chamada ―primeira onda‖ feminista – em prol da igualdade entre os sexos com reivindicações que vão desde o direito ao voto, o acesso à educação, direito ao divórcio, etc. São conquistas de extrema relevância para que, nos momentos subsequentes, outras bandeiras fossem levantadas, muitas vezes, reivindicando direitos mais sutis e, por isso, mais difíceis de serem logrados.

Piscitelli (2009) destaca também, como marco nessa luta pela igualdade de direitos, a publicação do livro ―O segundo sexo‖, da filósofa francesa Simone de Beauvoir, publicado em 1949 – uma obra pensada para o meio acadêmico, para os círculos filosóficos, mas, posteriormente, apropriada pela militância do que se convencionou chamar de movimento femininsta da ―segunda onda‖, datado entre as décadas de 1960 e 1970.

Beauvoir inaugura uma nova perspectiva sobre a conformação das identidades sexuais, sem que as relações de gênero sejam consideradas apenas a partir do movimento opressor versus oprimido. Para ela, ―é preciso transcender às ideias de superioridade, inferioridade e igualdade

nas discussões sobre homem e mulher‖ (ELISBON, 2009, p. 16) e compreender os aspectos sociais dessa relação:

[...] retirar as mulheres desse lugar só seria possível ao se combater o conjunto de elementos que impediam que elas fossem realmente autônomas: a educação que preparava as meninas para agradar aos homens, para o casamento e a maternidade; o caráter opressivo do casamento para as mulheres, uma vez que, em vez de ser realizado por verdadeiro amor, era uma obrigação para se obter proteção e um lugar na sociedade; o fato de a maternidade não ser livre, no sentido de que não existia um controle adequado da fertilidade que permitisse às mulheres escolherem se desejavam ou não ser mães; a vigência de um duplo padrão de moralidade sexual, isto é, de normas diferenciadas que permitiam muito maior liberdade sexual aos homens; e, finalmente, a falta de trabalhos e profissões dignas e bem remuneradas que dessem oportunidade às mulheres de ter real independência econômica [...] (PISCITELLI, 2009, p. 131).

Enfim, Beauvoir considera que a posição ocupada pela mulher é construída socialmente. Em suas palavras, ―[...] o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade [...]‖ (BEAUVOIR, 1980, p. 57). Daí a célebre frase, ―Ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖ (BEAUVOIR, 1967, p. 9), que inicia o segundo volume do seu livro ―O segundo sexo: a experiência vivida‖, mas, em algumas situações, apropriada indevidamente, também graças a sua popularização.

Beauvoir não nega as condições biológicas e sexuais que diferenciam o homem da mulher. Porém, entende que tudo que a sociedade construiu sociologicamente, moralmente, profissionalmente está, na verdade, assentado sobre outra base que não a fisiológica. Em suas palavras, ―nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino‖ (BEAUVOIR, 1967, p. 9).

Em entrevista, Simone de Beauvoir reafirma aquilo que já havia declarado em seu livro de que, mesmo não tendo o ―seu destino fixado na eternidade‖, é inegável que ―a mulher é um produto elaborado pela civilização‖ (BEAUVOIR, 1967, p. 494), pois

Desde que as meninas são pequenas que a sociedade fabrica as mulheres. As brincadeiras não são as mesmas, os brinquedos não são os mesmos, as leituras não são as mesmas. E, mais tarde, a formação profissional também

não será a mesma. As mulheres são fabricadas de forma que elas sejam dedicadas e sirvam aos homens e aos seus filhos, seja na maternidade, seja nas tarefas domésticas (GLOBO NEWS, 2015, grifo meu).

A natureza vanguardista e o incontestável legado deixado pelo livro de Simone de Beauvoir aos estudos feministas em suas mais diversas e contrárias filiações ideológicas também são destacados por Piscitelli (2009), mesmo para aqueles que questionam o caráter natural da subordinação tal qual descrito por Beauvoir:

Várias das ideias presentes nesse livro são retomadas por vertentes que, embora diversas, compartilham algumas concepções centrais. Em termos políticos, consideram que as mulheres ocupam lugares sociais subordinados em relação aos homens. A subordinação feminina é pensada como algo que varia de acordo com a época histórica e o lugar. No entanto, ela é pensada como universal, na medida em que parece ocorrer em todas as partes e em todos os períodos históricos conhecidos (PISCITELLI, 2009, p. 133).

Foram, consequentemente, a partir das formulações de Beauvoir que, tanto no campo teórico, quanto militante, novas categorizações puderam ser elaboradas ou ressignificadas. A categoria mulher, por exemplo, foi concebida pela ―segunda onda‖ do feminismo antes mesmo de se delinear os limites da própria noção de feminismo. Essa categoria visava ultrapassar questões de classe e raça, pois, naquele instante, defendia-se que a opressão atingia as mulheres independentemente da classe ou da raça às quais elas pertenciam. O objetivo era unir as mulheres em prol de uma ―causa maior‖ e, assim, criar uma identidade entre elas.

Um próximo passo seria a redefinição de político no que se refere às relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres sob a alegação de que ―o pessoal é político‖ – concepção matriz da noção de patriarcado. De acordo com Piscitelli (2009),

[...] Em termos de prática política, as feministas procuraram desvendar a multiplicidade de relações de poder presentes em todos os aspectos da vida social, nas esferas pública e privada. Em termos teóricos, elas trabalharam com uma ideia global e unitária de poder, o patriarcado numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como uma relação política [...] (p. 134).

Assim, por essa perspectiva feminista, o patriarcado estaria disseminado nas instituições sociais no decorrer do tempo e em diferentes organizações culturais e seria, portanto, o responsável pela opressão feminina. Como forma de combater seus efeitos, pensadoras feministas passam a reivindicar a revisão da história, da antropologia, da sociologia, da

política, disciplinas das quais o ponto de vista feminino havia sido rechaçado pela dominação masculina no interior desse sistema patriarcal.

Esse sistema, com o passar do tempo, passa a receber inúmeras críticas alegando-se o esvaziamento do conceito de patriarcado dada a sua utilização indiscriminada e porque essa categoria de análise teria se tornado sinônimo de dominação masculina, enquanto processo imutável e universal. Ou seja, a crítica reside no caráter essencializante que a noção de patriarcado passa a assumir e por desconsiderar o caráter instável do poder em diferentes períodos históricos e contextos sociais. Judith Butler (2015), uma importante representante da ala dos estudos de gênero contrária ao uso indiscriminado dessa categoria de análise, justifica que ―[...] a noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em anos recentes, por seu fracasso em explicar mecanismos da opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe [...]‖ (p. 21).

Alguns teóricos feministas também receberam muitas críticas por associarem o conceito de patriarcado a uma ideia de origem. Por esse ponto de vista, haveria um tempo anterior a esse sistema ao qual poderíamos retornar. Nos termos de Butler (2015), ―[...] a teoria feminista se sentiu atraída pelo pensamento de uma origem, de um tempo anterior ao que alguns chamariam de ―patriarcado‖, capaz de oferecer uma perspectiva imaginária a partir da qual estabelecer a contingência da história da opressão das mulheres [...] (p. 71).

Butler (2015) não apenas descreve esse fenômeno, como alerta para o risco da universalização do conceito de patriarcado amplamente utilizado, na mesma medida em que é rechaçado, pelos movimentos feministas. Dito de outro modo, a autora adverte para o risco de se recorrer a um passado imaginário, de forma que o futuro não esteja comprometido por essa noção idealizada do passado, por um ideal nostálgico e, possivelmente, excludente para uma noção de gênero, bem como para as necessidades da contemporneidade. Ela explica que

A auto justificação de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre se baseia no histórico de como eram as coisas antes do advento da lei, e de como se deu seu surgimento em sua forma presente e necessária. A fabricação dessas origens tende a descrever um estado de coisas anterior à lei, seguindo uma narração necessária e unilinear que culmina na constituição da lei e desse modo a justifica. A história das origens é, assim, uma tática astuciosa no interior de uma narrativa que, por apresentar um relato único e autorizado sobre um passado irrecuperável, faz a construção da lei parecer uma inevitabilidade histórica (BUTLER, 2015, p. 72).

A despeito da advertência empreendida, Butler (2015) reconhece a influência do discurso do patriarcado universal nas bases da luta feminista: ―Embora afirmar a existência de um patriarcado universal não tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a noção de uma concepção genericamente compartilhada das ‗mulheres‘, corolário dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil de superar (p. 22)‖.

É nesse cenário de embates conceituais que terá origem o conceito de gênero. Ele surge, portanto, como uma categoria de análise que contraria as ideias de inevitabilidade e de universalismo da opressão, que estão na base da noção de patriarcado.

Essa importante ferramenta analítica difundiu-se, sobretudo, ―a partir da formulação da antropóloga estadunidense Gayle Rubin. Seu ensaio ―O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo‖, publicado em 1975, [...] se tornou uma referência obrigatória na literatura feminista‖ (PISCITELLI, 2009, p. 137), pois estabeleceu novos parâmetros para se entender a origem do sistema sexo/gênero, em que a sociedade apropria-se do sexo enquanto matéria prima para, na sequência, transformá-lo num produto dessa mesma sociedade. Rubin (1993) esclarece que, ainda que não tenha encontrado uma denominação mais ―elegante‖, adota como definição preliminar de um sistema sexo/gênero, como sendo ―um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas‖ (p. 2). Contudo, na mesma medida em que essa perspectiva dual sexo/gênero consolidou-se enquanto ferramenta teórica, foi também alvo de inúmeras críticas, o que suscitou uma reformulação do conceito de gênero.

Certamente, Joan W. Scott está entre as pesquisadoras que mais agitou as bases dos estudos de gênero. A historiadora norte-americana, em sua obra mais popular, ―Gênero: uma categoria útil para análise histórica‖, recupera as múltiplas apropriações dessa categoria analítica. Desde a insistência no caráter fundamentalmente social das relações de gênero e a rejeição ao determinismo biológico atrelado ao uso do termo sexo, até a defesa da vinculação da história das mulheres à história tradicional, iniciativa também criticada por Chartier, como apontamos anteriormente.

Contudo, sua crítica vai além. Scott (1995) censura as pretensões de algumas feministas em presumir que as pesquisas sobre mulheres transformariam os paradigmas analíticos de outras disciplinas: ―[...] As pesquisadoras feministas assinalaram desde o início que o estudo das

mulheres não acrescentaria somente novos temas, mas que iria igualmente impor um reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico existente‖ (p. 73). O que não ocorreu, pelo menos na dimensão esperada. Primeiro pelo caráter sintético e descritivo dos estudos desenvolvidos até aquele instante, depois, pelas generalizações. Scott (1995), por conseguinte, eleva o tom da crítica a essa tendência descritiva, em detrimento de um viés realmente analítico desses estudos:

[...] Estas teorias tiveram, no melhor dos casos, um caráter limitado, porque elas têm tendência a incluir generalizações redutivas ou demasiadamente simples, que se opõem não apenas à compreensão que a história como disciplina tem sobre a complexidade dos processos de causação social, mas também aos compromissos feministas com análises que levem à mudança [...] (p. 74).

Posteriormente, ela reconhece que essa mudança só será possível mediante uma transformação nos paradigmas teóricos, pois a forma como o termo gênero vinha sendo adotado, e sabemos que continua sendo – como um substituto para o termo mulheres e representando apenas uma tentativa de legitimação acadêmica dos estudos feministas – engloba as mulheres, mas sem contemplá-las efetivamente:

Na sua utilização recente mais simples, ―gênero‖ é sinônimo de ―mulheres‖. Os livros e artigos de todos os tipos que tinham como tema a história das mulheres substituíram, nos últimos anos, nos seus títulos o termo ―mulheres‖ por ―gênero‖. Em alguns casos, mesmo que essa utilização se refira vagamente a certos conceitos analíticos, ela visa, de fato, obter o reconhecimento político deste campo de pesquisas. Nessas circunstâncias, o uso do termo ―gênero‖ visa sugerir erudição e a seriedade de um trabalho, pois ―gênero‖ tem uma conotação mais objetiva e neutra do que ―mulheres‖. ―Gênero‖ parece se ajustar à terminologia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim, da política (supostamente ruidosa) do feminismo. Nessa utilização, o termo ―gênero‖ não implica necessariamente uma tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder, nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisível) [...] (SCOTT, 1995, p. 75).

Outros aspectos da utilização desse conceito também são criticados pela historiadora: a leitura redutora de um sistema complexo de relações que vão além do sexo e/ou da sexualidade; a vinculação do mundo das mulheres ao mundo dos homens; a absoluta rejeição das justificativas biológicas e a referência às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres; a restrição dos estudos a apenas alguns setores da sociedade (família, crianças, relações de gênero, vida doméstica), enfim, ao que Scott denomina de ―estudo das coisas relativas às mulheres‖; a universalização das categorias

feminino/masculino empregadas em sua dimensão fixa e permanente enquanto simples oposição binária; a noção a-histórica e essencialista das mulheres.

Scott oferece, portanto, uma revisão daquilo que ela considera como problemas no emprego do gênero enquanto categoria analítica. Em sua reformulação, o gênero, sem ignorar as diferenças sexuais, é também considerado em sua dimensão social, mas não de forma restrita e imutável. Sua proposta é analisar as múltiplas formas de feminilidade e masculinidade reveladas nas ações políticas por meio de alguns elementos centrais: os símbolos culturalmente disponíveis; as interdições desses símbolos presentes nos discursos religiosos, científicos, políticos, jurídicos, etc., que restringem, de forma categórica, as representações aceitáveis, possíveis e desejadas do feminino e do masculino e, por fim, a normalização dessas formas pelo apagamento das lutas sociais ―como se essas posições normativas fossem o produto de um consenso social e não do conflito‖ (SCOTT, 1995, p. 87).

Em suma, Scott defende que o gênero só se constituirá, efetivamente, uma categoria analítica, quando considerar a dimensão política das representações de feminilidade e masculinidade, quando ocupar-se em não apenas descrever, mas ―descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva a aparência de uma permanência eterna na representação binária dos gêneros‖ (SCOTT, 1995, p. 87), pois, as estruturas hierárquicas legitimam-se graças a ―compreensões generalizadas das assim chamadas relações natural entre homem e mulher‖ (SCOTT, 1995, p. 91).

O gênero enquanto categoria analítica possibilitaria desvelar a origem dos sentidos culturalmente construídos para o feminino e o masculino, sem dualismos. Dessa forma, a historiadora não vê lógica em se ordenar o sexo no campo da natureza e o gênero no campo da cultura, se a distinção entre natureza e cultura também é um produto da própria cultura. Seguindo o mesmo preceito, a americana Judith Butler questiona essa dicotomia entre sexo e gênero em que apenas este último poderia ser historicizado, enquanto o sexo estaria vinculado ao corpo, logo, à natureza. Butler (2015) antecipa que ―o próprio construto chamado ‗sexo‘ seja tão culturalmente construído quanto o gênero‖, para, na sequência, sumarizar que ―[...] O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado [...] Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele (o sexo) é também um meio discursivo/cultural‖ (2015, p. 27, grifo meu). O

sexo, consequentemente, o corpo, não são atemporais ou estão fora da cultura. Em diferentes momentos e culturas, o corpo é/foi interpretado também de diferentes maneiras.

É importante esclarecer que esse discurso, por Butler combatido, é, ao mesmo tempo, efeito e garantia de permanência e estabilidade dessa estrutura binária em que a ordem compulsória da heterossexualidade e da coerência entre sexo/gênero/desejo estaria assegurada por dois sexos estáveis, inteligíveis e coesos. Nas palavras de Butler (2015), ―a ideia de que gênero é construído sugere certo determinismo de significados do gênero, inscrito em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável‖ (p. 28).

Observa-se, pelos temas e abordagens evidenciadas até aqui, a convergência das perspectivas de Joan Scott e Judth Butler acerca do gênero enquanto categoria analítica, especialmente, no que tange, primeiro, a arbitrariedade dos pares sexo/natureza e gênero/social, pois tanto uma quanto outra sustentam a historicização do sexo enquanto construção cultural, como presume Butler (2015) de que ―[...] se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero [...]‖ (p. 27, grifo meu); segundo, a crítica à adoção do patriarcado como promessa de um retorno à origem, como já tratado anteriormente.

A dualidade do par sexo/gênero e a crítica ao patriarcado são pilares fundacionais do feminismo postos em xeque por essas duas pesquisadoras. Todavia, Butler entretece, ainda, nesse debate, outros dois pontos centrais e completamente imbricados que, em sua concepção, constituem-se problemas de gênero e aos quais já fizemos menção: o essencialismo do sujeito mediante o modelo de gênero e, por conseguinte, a inviabilidade de se constituir um sujeito