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2. REVISÃO DE LITERATURA: UM OBJETO, MÚLTIPLOS OLHARES

2.2 SOBRE AS TESES E DISSERTAÇÕES

O percurso investigativo e a identificação de teses e dissertações ocorreram de maneira diferente em relação aos artigos anteriormente resenhados. Antes de recorrermos aos sites de busca, realizamos um levantamento das pesquisas que associaram gênero/feminino/mulher e livro didático em dois estados da arte que mapearam e avaliaram a produção acadêmica em expansão nas décadas de 1980 e 1990 sobre educação e mulher. Propostos pela Fundação Carlos Chagas, trata-se de trabalhos singulares tendo em vista o volume e a dificuldade de acesso, na época, a estudos produzidos em universidades de todo o país.

O primeiro, ―A imagem da mulher no livro didático: estado da arte‖, de Negrão e Amado (1989), reuniu obras publicadas entre 1970 e 1986 que se referiam à imagem da mulher no livro didático objetivando ―desvendar e retraçar os caminhos percorridos pela crítica ideológica ao livro didático, perceber suas lacunas, interpretar sua atuação e antever, e então alterar, seu curso‖ (p. 14). Nesse levantamento, as autoras identificaram, entre outros formatos, 8 trabalhos (6 dissertações de mestrado e 2 teses de doutorado).

O segundo estado da arte, ―Mulher e educação formal no Brasil: estado da arte e bibliografia‖, escrito por Fúlvia Rosemberg, Edith Piza e Thereza Montenegro (1990), não trata exclusivamente do livro didático, mas também de outros aspectos decorrentes da interseção dos dois campos – mulher e educação – em publicações de 1975 a 1989.

Com um enfoque deliberadamente mais crítico que aquele utilizado no texto anterior, as autoras elevam o tom da crítica quando apresentam um panorama das teses e dissertações:

[...] a leitura de inúmeras dissertações de mestrado [...] permite um balanço não muito otimista quanto ao significado da pesquisa que está sendo veiculado pelos cursos de pós-graduação em educação. A seleção de recortes dentro de temas nem sempre relevantes [...]; a elaboração de um projeto em torno de uma técnica de análise, independentemente do seu significado ou de sua pertinência ao projeto de estudo; a interpretação inadequada ou tortuosa de textos escritos por outras pessoas [...] (ROZEMBERG; PIZA; MONTENEGRO, 1990, p. 12).

Entre outros apontamentos, as autoras já defendiam a necessidade de se transcender as interpretações binaristas, privilegiando-se a perspectiva das relações de gênero e concluem anunciando aquilo que se transformaria numa tendência dos estudos posteriores: ―A proposta de que partimos – a de ultrapassar a perspectiva de estudar educação formal da mulher e pensar a educação sob a ótica das relações de gênero – parece-nos, ao fim do trabalho, enriquecedora e necessária [...]‖ (ROZEMBERB; PIZA; MONTENEGRO, 1990, p. 167).

Foram identificados 765 textos acadêmicos de diferentes gêneros. Especificamente sobre o livro didático, foram arroladas 40 referências bibliográficas. Entretanto, apenas 8 são teses ou dissertações. Contudo, os resultados apenas repetem o quadro já apresentado por Negrão e Amado (1989).

Importante mencionar que essas teses e dissertações, ainda que tenham sido defendidas há mais de 40 anos, deram a tônica conceitual e metodológica para estudos posteriores sobre gênero e livro didático, sendo possível ainda encontrá-las em referências bibliográficas mais recentes. Dessa forma, decidimos apresentá-las brevemente no quadro a seguir:

Quadro 5 – Dissertações e teses década de 1970 e 1980

TÍTULO AUTOR ANO DE DEFESA / INSTITUIÇÃO COMENTÁRIO D ISSE R T A Ç Õ E S O trabalho: uma análise da ideologia do livro didático Ana Lúcia G. de Faria 1980 / UFSCAR

A partir da perspectiva marxista, a autora analisa como o conceito de

trabalho é apresentado em livros

didáticos de 2ª/3º a 4ª/5º séries/ano do Ensino Fundamental. Sem explicar as especificidades da relação mulher e trabalho, a autora conclui que, em geral, a mulher é discriminada, pois não é apresentada como uma trabalhadora, mas apenas como mãe ou "rainha do lar".

As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos de

leitura das quatro primeiras séries do 1º grau Maria de Lurdes C. D. Nosella 1978 / PUC-SP

Foram analisados 166 títulos de Comunicação e Expressão utilizados em escolas do Espírito Santo em 1977. Sob a ótica marxista, a autora contrapõe o mundo imaginário e perfeito do livro didático ao mundo real. E, apesar de tratar das figuras idealizadas da mãe e da professora pelo livro didático, as questões sexistas não são abordadas no texto.

A mensagem social do texto infantil: um estudo das redações escolares Maria de Lurdes B. de Oliveira 1981 / UFSCAR

Investiga o significado social do texto produzido na escola por alunos e alunas da 4ª/5º série/ano do EF. A autora destaca as relações familiares e de trabalho dadas a ver nessas redações que, em sua concepção, refletem estereótipos presentes nos livros didáticos. O livro didático e a democratização da escola Regina Pahim Pinto 1981 / USP

Trabalho considerado paradigmático para os estudos de gênero e livro didático, principalmente, pelo rigor metodológico, a relevância das análises empreendidas e o viés histórico. Pahim Pinto (1981) reuniu e avaliou, minuciosamente, os perfis femininos e masculinos representados em imagens e textos de 48 livros didáticos da 4ª/5º série/ano do EF, publicados entre 1941 e 1976, concluindo que em quase quatro décadas, praticamente, nada mudou nas representações verificadas nos livros didáticos. Leituras de Comunicação e Expressão: análise do conteúdo Maria Filomena Rego 1976 / FGV-RJ

Propõe-se a apurar a função social dos textos didáticos entrevista pelas mensagens e representações de 18 livros de Comunicação e Expressão de 3ª/4º e 4ª/5º séries/ano adotados em 1975. A autora critica o simplismo e o caráter normativo de textos didáticos que pregam a "subordinação, a obediência e a dependência".

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Para a investigação no Banco de Teses e Dissertações da Capes, na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e no repositório da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), optamos por não restringir o período porque, diferentemente dos artigos, acreditávamos não encontrar tantas produções com esse enfoque. Entretanto, mantivemos os mesmos descritores de busca que, nos três casos, apontaram inúmeras

Falas e silêncios no discurso pedagógico dos textos didáticos: análise dos estereótipos comportamentais masculinos e femininos veiculados pelos livros de Comunicação e Expressão - 1º grau Zoya Dias Ribeiro 1981 / UFCE

Em livro didático das quatro primeiras séries do antigo 1º grau, a autora examinou os estereótipos comportamentais das personagens femininas e masculinas. O trabalho destaca-se dos demais pela atenção dada aos estereótipos masculinos igualmente rígidos e imutáveis, sem, contudo, preconizar a simples troca de papéis. T E S E S Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e a literatura escolar na República Velha Marisa Lajolo 1979 / USP

Lajolo denuncia, diante da análise da produção didática de Olavo Bilac, os riscos da instrumentalização dos textos literários. A desigualdade entre os universos masculino e feminino também é observada na obra desse poeta, além das limitações e a reclusão doméstica impostas à mulher. Livros didáticos de leitura e interesses de escolares em leitura Paulo de Tarso Oliveira 1972 / USP

Assumindo feições descritivas, o texto concentra-se nos aspectos psicológicos do aprendizado da leitura. A partir de 31 livros de leitura da 2ª/3º a 4ª/5º série/ano, são apontadas discrepâncias entre presença feminina nos textos (33%) e a masculina (59%), porém, não são exploradas as implicações desses dados.

pesquisas11 que não atendiam aos propósitos imediatos de nossa pesquisa, com algumas exceções.

Pelo portal da Capes, identificamos duas dissertações de mestrado: ―Representações identitárias em livros didáticos de língua portuguesa‖12, defendida em 2012, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), por Alexandra Soares dos Santos, e ―Multimodalidade e representações sociais da mulher em livros didáticos de língua inglesa para o Ensino Médio‖, defendida também em 2012, na Universidade Estadual do Ceará (UECE), por Edina Maria Araújo de Vasconcelos.

No site da BDTD tivemos acesso a duas teses de doutorado que investigaram as relações e representações de gênero em livros didáticos de língua estrangeira – francês e inglês. A primeira, de Sérgio Luiz Baptista da Silva, intitulada ―Masculinidades e feminilidades dentro dos manuais do FLE (Francês Língua Estrangeira): visões sexistas às relações de gênero‖, defendida em 2008, pela Universidade de São Paulo, e a segunda, intitulada ―Representações de gênero em livros didáticos de língua estrangeira: reflexos em discursos de sala de aula e relação com discursos gendrados que circulam na sociedade‖, de Ariovaldo Lopes Pereira, defendida também em 2008, pela Universidade Estadual de Campinas.

Por último, no site do repositório da Ufes, ainda que tenhamos encontrado alguns trabalhos sobre gênero/mulher/feminino, nenhum deles tinha o livro didático como objeto de análise. Os trabalhos arrolados até aqui, e outros que identificamos, revelam duas tendências: o interesse de inúmeras disciplinas pelas representações sociais (gênero, raça/etnia), antes restrito, de modo geral, à História e à Língua Portuguesa; e o outro dado refere-se ao retorno do livro didático ao circuito dos interesses acadêmicos, após um hiato temporal entre o boom das década de 1980 e 1990 e a atualidade.

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Considerando-se os descritores, os resultados apresentaram-se da seguinte forma: ―livro didático‖ (Capes – 311; BDTD – 138; Ufes – 8), ―livro didático de língua portuguesa‖ (Capes – 4; BDTD – 38; Ufes – 0), ―representação feminina‖ (Capes – 19; BDTD – 256; Ufes – 1), ―representações de gênero‖ (Capes – 33 ; BDTD – 1; Ufes – 0), ―relações de gênero no livro didático‖ (Capes – 0; BDTD – 1; Ufes – 0), ―livro didático do ensino médio‖ (Capes – 5; BDTD – 20; Ufes – 2), ―representação de gênero no ensino médio‖ (Capes – 0; BDTD – 0; Ufes – 0) e ―representação feminina no livro didático‖ (Capes – 0; BDTD – 0; Ufes – 0).

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Esta dissertação não está disponibilizada na versão digital. Tivemos acesso apenas ao resumo que anuncia entre outras conclusões que o livro didático continua veiculando estereótipos sobre a mulher e omitindo-se diante das desigualdades sociais.

Apesar da indiscutível contribuição de outras disciplinas, trataremos mais detidamente de duas pesquisas que abordaram relações de gênero, especificamente, em livros didáticos de língua portuguesa e que, dessa forma, dialogam estritamente com nosso objeto de pesquisa. E, ainda que não focalizem o Ensino Médio, segmento da educação básica de nosso interesse, mas, historicamente, negligenciado pelas pesquisas como já mencionado por nós e ratificado por Dalvi (2010) em sua tese de doutorado:

[...] os livros didáticos de língua portuguesa e literatura destinados ao ensino médio têm recebido, proporcionalmente ao seu largo uso e à sua importância na formação de leitores e na consolidação de pertencimentos geracionais (pela instituição de cânones que correm em paralelo ao discurso crítico- historiográfico), pouca importância (DALVI, 2010, p. 110).

Estas duas pesquisas lidam com as mesmas especificidades de um suporte que contempla gêneros textuais variados e com os desdobramentos dessa variedade, pois as representações dadas a ver num texto literário, por exemplo, não podem ser interpretadas da mesma maneira que em um texto não ficcional.

Importante esclarecer que tomamos conhecimento tanto da dissertação (SOUZA, 2009) quanto da tese (MOURA, 2007), aqui analisadas, através das referências bibliográficas de outras pesquisas, pois elas não apareceram nos sites de busca mencionados (nem no primeiro momento dentre os resultados gerados pelas palavras-chave, nem quando inserimos os títulos ou os autores correspondentes). São informações que sinalizam a fragilidade desses bancos de teses e dissertações alimentados pelos programas de pós-graduação brasileiros, conforme também observado por Dalvi (2013a):

[...] Sabemos que há muitos trabalhos defendidos e aprovados em Programas de Pós-Graduação pelo país que não foram lançados ou pelo menos não foram lançados adequadamente no Banco da Capes (que, atualmente, é o mais completo, quando se põe como meta o conjunto da pós-graduação no país); no entanto, entendemos que essa fragilidade é parte das limitações de pesquisa com que temos que lidar (p. 388).

Um bom exemplo de como aliar análise quantitativa e qualitativa, a dissertação de Jeanne de Freitas Pinheiro Souza (2009) representa um novo fôlego à metodologia de análise da representação de gênero em livros didáticos, na medida em que propõe categorias e perfis mais afinados com os contextos social e cultural atuais, como, por exemplo, a observação das

representações no esporte, na dança ou no teatro e, dessa forma, foge ao fluxo de pesquisas que replicaram e permanecem replicando categorizações utilizadas nos idos 1980.

O estudo visa identificar como os gêneros surgem representados nos livros didáticos de língua portuguesa da 7ª e 8ª séries, das coleções mais adotadas entre 2000 e 2006, no estado da Bahia.

Entretanto, ao descrever o percurso de constituição do corpus, a autora revela que pretendia, em princípio, analisar os livros didáticos de língua portuguesa de 5ª a 8ª séries, mas optou por excluir os volumes correspondentes as 5ª e 6ª séries porque havia constatado que esses volumes ―eram constituídos de pouquíssimos textos e ilustrações referentes à representação de gênero. Fato esse que tornava inviável inseri-los na pesquisa‖ (SOUZA, 2009, p. 95).

Compreendemos a escolha, tendo em vista a preocupação do pesquisador em apresentar resultados, números e matéria que lhe permita exercitar sua argumentação. Mas acreditamos que essa ausência é também indício, marca de um processo de invisibilização que merece ser igualmente investigado, assim como suas implicações.

Trata-se do mesmo processo de invisibilização denunciado pela própria autora, mas em outros contextos, como o campo literário, por exemplo, e que nos interessa sobremaneira, dada a proximidade que guarda com nossa própria abordagem. A pesquisadora coteja a (des)proporção de textos literários de autoria masculina e feminina localizados no livro didático e aponta a quase inexistência de textos ou imagens de autoria feminina: ―a imagem da mulher escritora não é visível; há um total esvaziamento da produção literária feita por mulheres‖ (SOUZA, 2009, p. 119). Sem querer ―atribuir uma categorização sexual à escrita literária‖ (p. 166), a tônica da sua perspectiva consiste em reivindicar a democratização do espaço, o reconhecimento da literatura produzida por mulheres, em focalizar a necessidade do livro didático incorporar ―todos os tipos de textos literários, sem ocultar o fazer literário da mulher, nem tampouco de autores considerados como produtores de uma literatura menor‖ (p. 167).

Assim como Souza (2009), também julgamos primordial a democratização do espaço, porque impacta não apenas na configuração do cânone, ou no universo literário, enquanto campo de trabalho. Mas, para além dessa dimensão privilegiada pela autora, entendemos que mais do que espaço, é necessário garantir a democratização do discurso, da perspectiva, de oportunizar

às alunas a identificação com uma voz que lhe soe familiar. Que as mulheres sejam, também, apresentadas por mulheres. Que os homens possam, também, ser apresentados por mulheres. Outra questão que precisaria ser mais bem resolvida diz respeito ao papel e à relação que o livro didático estabelece com a sociedade. O texto apresenta passagens contraditórias a esse respeito. Ora reconhece que ―cada elemento que o compõem é um signo que nos permite ler a imagem a partir de sistemas de referentes que existem na vida social‖ (SOUZA, 2009, p. 167), ou ainda que ―as imagens representadas nos livros didáticos fazem parte de uma estratégia específica, composta de significados que constroem, constituem e reproduzem princípios, na maioria das vezes, de uma hegemonia cultural dominante [...] (SOUZA, 2009, p. 169); ora o livro didático é acusado de produzir preconceitos e impor representações distantes do ―real‖. Nesse sentido, observa-se uma tendência em culpabilizar o livro didático e supervalorizar certas conquistas recentes:

Entendemos que o tipo de informação e de conhecimento que é passado pelo livro didático, por meio das representações, no que diz respeito à participação da mulher e do homem no mercado de trabalho, é distorcido dos acontecimentos sociais e econômicos contemporâneos, o que vem favorecer a construção de atitudes discriminatórias por parte dos usuários do livro, em especial o aluno (SOUZA, 2009, p. 112).

[...] as imagens por nós aqui apresentadas não deviam caber mais em livros didáticos destinados a adolescentes, o que poderá contribuir para uma formação não consentânea com a evolução das sociedades e as conquistas adquiridas, especialmente, no que concerne a questões de gênero (SOUZA, 2009, p. 162).

Como também uma atitude incauta de negação dos conflitos:

Acreditamos que não se pode determinar ambientes especificamente só masculinos ou femininos, pois essa linha que tenta separar as relações de

gênero no esporte ou em qualquer situação da vida já foi ultrapassada e

o que nos resta é discutir porque os códigos, os símbolos, as instituições ainda estão impregnadas com e por esse discurso (SOUZA, 2009, p. 135, grifo meu).

Por outro lado, o texto distingue-se por abordar não apenas as representações femininas, mas também as representações masculinas. As implicações dessas configurações sociais são questionadas para denunciar as coerções impostas aos dois gêneros, pois, apesar do processo

histórico de submissão feminina, os homens também precisaram, e ainda precisam, se adequar às conformações específicas do seu gênero, como revelado na crítica a seguir às explicações calcadas em aspectos fisiológicos e, portanto, naturalizantes, para justificar estereótipos sociais:

Dessa forma, perpassa a concepção de que o futebol não está para a mulher assim com o ballet não está para o homem, pois no futebol a pessoa precisa de virilidade para praticá-lo e no ballet de leveza. Nem a mulher nem o homem se enquadram, respectivamente, nesse perfil, pois não são aptos para tais habilidades (SOUZA, 2009, p. 134).

Sobre a tese de doutorado de Neide Cardoso de Moura (2007), ―Relações de gênero em livros didáticos de língua portuguesa: permanências e mudanças‖, diferente de algumas pesquisas que não declaram filiação epistemológica, ela se destaca exatamente por sua fidelidade teórico-metodológica. Apropriando-se da teoria da ideologia de John B. Thompson e do conceito de gênero de Joan W. Scott, a autora adota uma perspectiva diacrônica e se propõe a investigar as permanências e mudanças no que se refere a discriminações de gênero presentes em livros didáticos de língua portuguesa da 4ª série do Ensino Fundamental, publicados entre 1975 e 2003.

A escolha desse intervalo temporal justifica-se pela intenção de dar prosseguimento à dissertação de mestrado de Regina P. Pinto (1981) que, também numa perspectiva diacrônica, analisou livros didáticos de língua portuguesa da 4ª série, publicados entre 1941 e 1976. Daí a referência para se julgar as mudanças e permanências nas relações de gênero, tal como antecipado por Moura (2007):

[...] a despeito de toda movimentação no campo da produção desses livros; do incremento da temática ―sexo/gênero‖ na agenda das políticas públicas [...] das avaliações promovidas pelo Ministério da Educação/MEC, representado pelo PNLD, o livro didático permanece como veículo das discriminações de gênero, apesar de apresentar mudanças, mesmo que, ainda insuficientes (MOURA, 2007, p. 6).

Com o mesmo rigor metodológico empreendido por Pinto (1981), Moura (2007) estabelece categorias de análise em três esferas: no livro; na unidade de leitura e na personagem no texto; na capa e na ilustração.

Dentre outros aspectos observados, destaca-se a crítica à forma fragmentária de apropriação dos textos literários pelos livros didáticos. Moura (2007) encara de maneira positiva a presença de autores do cânone brasileiro, mas condena a transposição apenas de fragmentos em detrimento da utilização dos textos integrais. Para ela, isso ―acarreta uma sensação de esvaziamento, de ausência de tensão, de esfumaçamento das personagens‖ (p. 125). E, acrescentaríamos a essa lista, o distanciamento do leitor, pois sua leitura será sempre indireta dada a interposição da figura do autor do livro didático que define o que deve ser privilegiado ou ignorado no texto literário. Isso sem mencionar as interpretações guiadas por atividades de ―interpretação de texto‖. As consequências desse contato controlado aos textos literários são apontadas por Dalvi (2010). Para ela,

[...] o leitor, como leitor em formação, vê-se, em geral, constrangido pelo discurso autoritário do especialista na área – o autor do livro didático, que seleciona, recorta e interpreta o paideuma literário nacional –, legitimado, por sua vez, seja pelo selo editorial, seja pela escolha do professor (como figura de autoridade) em adotar tal ou qual manual, seja pela avaliação realizada pelos especialistas da área para o PNLEM [...]. Se a compreensão ou percepção da obra literária em questão pelo leitor em formação diverge, só pode ser ele, leitor em formação [...] quem está inadequadamente posto, quem não detém ou dispõe de todas as informações que deveria deter ou de que deveria dispor (p. 37-38).

É inegável a contribuição desse estudo para o campo, considerando-se as concepções e as análises propostas, sobretudo, pela orientação histórica de um projeto cujos limites não são determinados pelos objetivos exclusivos de um pesquisador, mas constitui um esforço que não fora iniciado nessa pesquisa e nem se encerra com ela. Assim como também são inegáveis os aspectos conceituais e metodológicos que distanciam a nossa pesquisa do trabalho desenvolvido por Moura. Mas longe de se configurar uma oposição conflituosa, trata-se de um exercício dialético essencial à constituição de outras vias de acesso e à