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A linguagem no entre-lugar: algumas perspectivas de fronteiras

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 63-69)

CAPÍTULO 2 – PENSANDO NUMA ABORDAGEM PARA ALÉM DAS

2.4 A linguagem no entre-lugar: algumas perspectivas de fronteiras

O conceito de fronteira que propomos para este estudo, considerando as colocações de Hanciau (2010), vai além da noção de espaço geográfico. As fronteiras são, sobretudo, produto da capacidade de representação do indivíduo sobre a realidade a partir de “um mundo paralelo de sinais que guiam o olhar e a apreciação, por intermédio dos quais homens e mulheres percebem e qualificam a si mesmos, o corpo social, o espaço e o próprio tempo” (HANCIAU, 2010, p.136). Souza (2009) aponta, numa perspectiva sociológica e visando a disputa pela

conquista de terra, a situação de conflito social como uma perspectiva mais relevante para definir fronteira no Brasil. Para o autor é nesse conflito social que a fronteira denomina-se como um espaço de alteridade, pois “À primeira vista, é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si” (SOUZA, 2009, p.133) e, nessa descoberta do outro, torna-se também um lugar de desencontros, sendo estes resultado de distintas formas de ver o mundo, ou seja, da temporalidade histórica, pois cada grupo ou individuo está localizado diversamente num tempo da história (id.).

Embora a fronteira seja lugar do encontro com o diferente não quer dizer que sempre seja entendida como espaço de divergências e desencontros. Parece-nos mais produtivo, principalmente levando em conta os tempos atuais, concebê-la como uma zona porosa, permeável, flexível, singular, sem definições totalizadoras. Além disso, pesquisá-la, como propõe Hanciau (2010), não garante solucionar essa “problemática”, mas pelo mesmo nos permite compreender “o sentimento de inacabamento, ilusão nascida da incapacidade de conceber o ‘entre-dois-mundos’, a complexidade deste estado/espaço e desta temporalidade” (id., p.133). Nessa dimensão, Pasavento (2001) caracteriza a fronteira num “ir-e-vir”, num estado de deslocamento, não só de lugar, mas também de situação ou época, que possibilita durante este processo a criação de algo diferente, novo, misturado, um terceiro lugar. Neste sentido, os enfrentamentos na fronteira podem resultar em processos tanto conflituosos quanto consensuais.

Para dar conta dos sujeitos dessa fronteira e da realidade misturada e mesclada na qual se encontram, fazemos uso do conceito transculturalidade apresentado por Cox e Assis-Peterson (2007). Diferentemente de transculturação que implica a perda de uma cultura anterior, o termo transculturalidade é entendido como a noção de tradução proposta por Hall (2006), no sentido de que não há perda ou assimilação, mas sim negociação e mudança cultural, isto é: as pessoas são “o produto de varias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e ao mesmo tempo a varias ‘casas’... estão irrevogavelmente traduzidas” (id., p. 89). Este conceito remete a formações identitárias de pessoas que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, que negociam com as novas culturas nas quais são inseridas.

Segundo Sturza (2006), no que diz respeito às fronteiras do Brasil com países hispano-americanos algumas são marcadas por áreas de grande população, como é o caso do sul do país, e outras por obstáculos geográficos naturais como ocorre na região norte, onde, ainda segundo a autora, há pouca presença humana, embora a fronteira Pacaraima-BR/Santa Elena-VE não se enquadre nesta constatação, pois existe um fluxo grande de pessoas em ambas cidades movimentado principalmente pelo comércio e turismo na fronteira.

Couto (2009), partindo de uma abordagem ecolinguística29 leva em consideração o ecossistema, “formado pelo agrupamento de pessoas que convivem no lugar e suas inter-relações entre si e com o meio ambiente, sobretudo o território” (id., p.160) para estudar os tipos de contato linguístico. Nesta perspectiva o autor apontar a situação de fronteira como um quarto tipo de contato linguístico, porém ressalta que as zonas de fronteira se distinguem em duas: aquelas onde ocorrem acidentes geográficos, ou seja, separadas por rios, montanhas, etc., e os casos em que não há. Embora o autor não deixe claro, parece considerar como quarto tipo de contato somente os casos de fronteira onde há acidente geográfico. O quarto tipo de contato implica a existência de dois povos com suas respectivas línguas e de dois territórios, como elucida a figura abaixo proposta por Couto (2009):

Imagem: Quarto tipo de contato de línguas (Couto, 2009, p. 54)

A ideia é que cada um dos povos, ou parte deles, possa usar a própria língua ao se deslocar para o território do outro, porém pode haver a predominância de uma das línguas quando esta possui mais prestígio. Usando o exemplo da fronteira Chui (Brasil)/Chuy (Uruguay), onde a única divisão física entre as duas

cidades consiste em uma avenida, Couto expõe as razões pelas quais as fronteiras inexistentes de acidente geográfico não se encaixam nesse quanto tipo de contato de línguas. Para o teórico, considerando a concepção da ecolinguística, a fronteira Chui (Brasil)/Chuy (Uruguay) se trata de uma única comunidade de fala, uma vez que a considera constituída por “um território (T), uma população que não se divide em duas (P) e uma maneira de se interagir verbalmente (L), mesmo que às vezes em uma língua, às vezes em outra, ou até, em nenhuma delas, mas em uma terceira alternativa, o portunhol” (COUTO, 2009, p. 161).

Outros trabalhos, assim como o de Couto (2009), exemplificam a complexidade e relevância dos estudos das praticas linguísticas na fronteira. Na região Norte, mais especificamente no estado de Roraima, existem poucas pesquisas deste cunho, a saber: um estudo realizado por Amorim (2007) sobre as interações orais entre comerciantes brasileiros e clientes venezuelanos com o objetivo de analisar o fenômeno linguístico intitulado pela autora como portunhol, onde constatou evidencias de alternância de código nas realizações orais devido às estratégias dos informantes para facilitarem o comunicativo; o outro refere-se ao trabalho de dissertação realizado por Braz (2010), que teve como objetivo analisar as representações dos comerciantes brasileiros sobre as línguas e nacionalidades que envolvem o contexto de fronteira. Uma das conclusões apresentadas pela autora diz respeito às línguas concerne na política de homogeneização da língua espanhola no Brasil como grande influencia na construção de representações de variantes linguísticas não legitimadas do espanhol, que, segundo Braz (2010), “corresponde ao falar da fronteira ou mesmo à América Hispânica” (id., p.105). Ainda entre as constatações da autora, vale ressaltar, no que concerne as representações identitárias de nacionalidade, que a identidade venezuelana é representada “como sendo oposta a brasilidade, uma representação que corresponde a uma situação concreta de oposição entre os dois países, em lados opostos da fronteira” (id., p. 105). O que nos permite observar, se levarmos em consideração as colocações de Couto (2009) sobre a fronteira Chui (Brasil)/Chuy (Uruguay), quão singular deve ser o tratamento dado a zonas de contato linguístico, visto que, embora os dois contextos relatados aqui tenham em comum a inexistência acidentes geográficos e abordem perspectivas teóricas distintas, os resultado são de alguma forma divergentes, porém não excludentes.

Em um estudo sociolinguístico realizado com alunos de uma escola do município de Oiapoque, Amapá, cidade que faz fronteira com a comunidade de Saint-Georges na Guiana Francesa, Santo (2011) busca compreender como se dá a interação entre as línguas, portuguesa, francesa, crioula de base francesa e indígenas,30 na região. Em suas conclusões, a autora observou que devido às condições política, econômica e social no qual o território guianense se encontra os alunos brasileiros têm atitudes positivas em relação à língua francesa. Outro aspecto interessante apontado neste estudo consiste na distinção da situação linguística encontrada entre a fronteira Sul e a fronteira norte do Brasil, este representado pelo contexto de pesquisa da autora. Segundo Santo (2011), as diferenças econômicas sociais e linguísticas na fronteira entre o Oiapoque e Saint-Georges são mais acentuados se comparadas às cidades fronteiriças do sul. Três questões principais são apontadas como responsáveis por esta situação: a semelhança das línguas em contato na fronteira do Sul, o português e espanhol; a situação econômica e social do Brasil perante os países dessa fronteira não ser tão díspares, visto que, ambos são territórios pertencentes ao Mercosul o que viabiliza acordos políticos que ajudam nessa neutralização; e o peso da política linguística nas escolas bilíngues dessa fronteira, uma consequência também dos acordos entre os países do Mercosul, como é o caso do Projeto Escola intercultural bilíngue de Fronteira (PEIBF).

Na fronteira do Brasil com o Paraguai Pires Santos (2004), pesquisa, através das práticas discursivas, aspectos identitários dos alunos “brasiguaios”, filhos de brasileiros e descendentes, em sua maioria, de alemães e italianos. Esses alunos foram alfabetizados no Paraguai e ao retornarem para Brasil tiveram dificuldade com a língua portuguesa considerada padrão na modalidade escrita. Para Pires Santos, essa situação fez com que os alunos se invisibilizessem na tentativa de “apagar sua identidade híbrida e se identificarem com o grupo de maior prestígio, os ‘estabelecidos’ da comunidade escolar e do entorno social” (PIRES SANTOS, 2004, p.8) o que, na visão da pesquisadora, elucida a manutenção do mito do monolinguismo linguístico e, por conseguinte, do apagamento da realidade multilíngue, multidialetal e multicultural do Brasil.

30 Quatro etnias habitam essa região de fronteira, segundo a autora: os Palikur, os Galili, os Wãiapi e os Karipuna.

Todas essas questões sobre fronteira não podem ser compreendidas sem considerar as consequências de um processo mais amplo, a globalização, onde mudanças que atuam em uma escala global no mundo contemporâneo perpassam as fronteiras geográficas, integrando e conectando as comunidades e organizações, o que possibilita o surgimento de novas combinações de espaço-tempo, deixando o mundo mais interconectado (Hall, 2006). Embora esse processo de globalização propague um discurso de homogeneização cultural tal argumento não se cumpre, tendo em vista que a globalização “é muito desigualmente distribuía ao redor do globo, entre diferentes estratos da população dentro das regiões”, isto é, segundo Doreen Massey, nas palavras de Hall (id., p. 78) tem sua “geometria de poder”. Além disso, concomitante a essa tendência homogeneizadora há a fixação pelo diferente, ou seja, “um novo interesse pelo ‘local’” (id., p. 77). Esse cenário, conforme ressalta Pires Santos (2004), tem contribuído para novas configurações sociais econômicas e políticas que não possuem embasamentos numa força unificadora, como os mitos fundacionais, inexistindo, conforme afirma Hall (2006) “qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais” (p. 62).

Nesse processo de Globalização, as identidades culturais estão sendo, a todo instante, revitalizadas pelo que Hall (2006, p 62) chama de “impacto da compressão espaço-tempo” e o fenômeno da migração, fomentado na maioria das vezes por questões econômicas, é um importante aspecto desse processo, já que contribui para a construção de identidades complexas, marcadas pelo deslocamento, ou também pelo “redeslocamento”, como é o caso, por exemplo, do contexto de pesquisa deste estudo, que apresentaremos mais adiante..

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 63-69)