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Primeiras impressões na língua do outro: “não! no começo Ave Maria!”

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 94-98)

CAPÍTULO 4 – UM OLHAR SOBRE SUJEITOS ENTRE-LÍNGUAS E ENTRE-

4.3 Primeiras impressões na língua do outro: “não! no começo Ave Maria!”

De modo geral, os participantes, exceto Daniel, relataram que não falavam a língua espanhola antes de residir em Santa Elena, conforme afirma Júlia, Camila e Sara nos respectivos fragmentos:

(...) eu não entendia nada nada nada nada podia me xingar de todo nome que eu não sabia o que era (...) é muito ruim assim né a gente morar num lugar onde a gente não sabe de nada, as pessoas fala com a gente e a gente nunca entende nada (...)

(...) quando a gente resolveu morar pra cá aqui, quem mais vivia aqui era meu pai, então meu pai é brasileiro (inint.), então quando ele chegava em casa lá em Boa Vista ele só falava português com a gente né, não tinha esse negócio(de falar espanhol), quando a gente veio morar pra cá todo mundo era brasileiro ninguém entendia nada (...)

Portanto, admitem que no início tinham algumas dificuldades para interagir na língua do vizinho o que resultou em episódios intitulados pelos próprios participantes como constrangedores ou engraçados. Por exemplo, na atividade do GF, Camila relata:

Ao ouvir esse depoimento, Sara relembrou um episódio que aconteceu com a amiga, Camila, no supermercado em Santa Elena, no qual, por não entender como funcionava a moeda venezuelana e não compreender a explicação em espanhol do caixa sobre a quantia que deveria pagar, imaginou que estava sendo enganada:

(...) eu não sabia escrever em espanhol falar muito menos eu não ia ter condição (para estudar em Santa Elena), tipo assim, muito menos, mas eu ia me sentir muito tipo assim fora de órbita, assim que muitas vezes eu não conhecia a palavra o que as pessoas falavam (...)

(...) aí uma vez eu fui num comércio comprar bolacha né, aí pedi lá a bolacha e fui pagar né, aí o homem pegou e me perguntou... não eu que perguntei quanto era o preço, aí ele pegou e falou lá né, não entendi nada não entendia nada de dinheiro assim, a quantidade quanto é que era que não o que, aí eu dei o dinheiro lá, aí o homem “não mas tá faltando” aí eu “sim sim” [risos] aí falou assim “não mas tá faltando” e eu “sim sim sim” não sabia nem o que ele tava falando.

(...) acho que foi ela que falou que chegou no comércio e pediu uma quadribola né, um chiclete né, pequeno né, aí ela pediu aí ela falou assim “quanto é?” aí ele falou assim “mil bolívar”, aí ela falou assim “mil?” (inint) “mil, um chiclete um chiclete” aí ele disse “sim mil bolívar” {risos} “você tá roubando” (inint.) “pai esse homem tá me roubando” aí o pai dela começou a rir, aí uma amiga (mostrou pra ela) mil bolívar, aí ele tirou tipo uma moeda (risos), aí depois ela “ah tá bom” ficou constrangida (...)

Da mesma forma Camila relata dois episódios vivenciados pela sua mãe que desconhece o significado das palavras ventana e apellido41:

Notei, tanto no grupo focal quanto na entrevista individual, que Camila foi uma das participantes que mais manifestou resistência quanto ao uso da língua e aos elementos culturais do país vizinho. Como demonstro nos fragmentos anteriores, as dificuldades iniciais no uso da língua podem ter contribuído para essa situação, mas não só isso, possivelmente, também outros fatores de ordem extralinguísticos. Não me deterei neste momento em esclarecê-los porque o farei na próxima seção. Assim, reitero a forma como Camila conclui a sua experiência e da sua família com os elementos culturais e a língua venezuelana: “quando você não tem aquele conhecimento às vezes você se enrola demais”.

41 Os vocábulos, ventana e apellido, significam respectivamente em português janela e sobrenome. (...) tava fazendo uma pesquisa lá (em Santa Elena ) não sei pra quê, aí pediram o nome da minha mãe completo, aí que o sobrenome lá fala “apellido” né, aí minha mãe “não mas eu não tenho apelido, não,meu nome só é Ana, eu não tenho apelido” “não mas o seu apelido senhora, seu nome é Ana o quê?” “não não tem mais apelido, só é Ana, meu nome é Ana só Ana”, Aí eles ficaram assim, aí depois foi que uma amiga dela chegou “não aquilo dali é sobrenome”, “ah tá” (respondeu a mãe) (inint.) quando você não tem aquele conhecimento as vezes você se enrola demais.

(...) botaram uma janela lá em casa... aí janela lá (em Santa Elena) fala “ventana” né (...) “não que a gente” (inint.), aí minha mãe “não, não é aqui não, aqui não mora nenhuma ventana meu senhor, não é aqui” {risos}... “mas é aqui o endereço”, “não o senhor tá enganado, eu me chamo Ana Lúcia (...) não mora nenhuma ventana aqui não” (...)

A maioria dos participantes foi adquirindo a língua de maneira informal, interagindo com amigos e algum membro venezuelano da família, por exemplo, Daniel e Júlia afirmam não terem passado por muitas dificuldades porque sempre foram auxiliados pelos cônjuges dos pais, no caso, o padrasto de Daniel e a madrasta de Júlia. O caso de Daniel se distingue dos demais no que se refere à aquisição da língua espanhola, pois vive em Santa Elena desde os dois anos de idade, quatorze anos não ininterruptos, já que morou algum tempo em Manaus-AM, cidade onde nasceu. Segundo o participante, o português e o espanhol foram adquiridos na infância: “...com meus três quatro anos eu já falava as duas línguas...”. Além disso, o fato de uma parte dos familiares (padrasto, irmãos, cunhado e sobrinhos) ser venezuelana permitiu-lhe maiores oportunidades de interação em espanhol, embora, conforme apresentarei em outro momento da análise, o participante afirme fazer uso predominante da língua portuguesa nos três contextos mais citados durante a coleta de registro, ou seja, no ambiente familiar, no comércio em Santa Elena e na escola em Pacaraima. De modo geral, os participantes relatam questões de variedade e estrutura da língua ao mencionarem alguma dificuldade no uso do espanhol.

Júlia ressalta que no início, quando começou a interagir em espanhol, a forma rápida como os venezuelanos se expressavam de alguma maneira a deixava confusa e acabava tendo dificuldades para se comunicar:

Na descrição de Júlia, não parece haver um problema de incompreensão linguística, mas sim de produção oral que ocorre pelo fato da participante querer manifestar-se verbalmente com o mesmo desempenho de um falante venezuelano já

(...) hoje em dia a gente entende tudo mas antigamente era difícil (...) a forma de se expressar porque eles se expressam muito rápido né aí as vezes a gente se enrola toda e não sai a palavra... até hoje eu ainda tenho isso ainda comigo um pouco eu fico nervosa assim com medo de... porque muitos deles bagunçam quando os brasileiros falam aí eu tenho medo de falar e errar assim aí eu fico nervosa e enrolo tudo [hum] é ruim o sotaque né.

que a desaprovação do mesmo com a forma de falar dos brasileiros a deixa nervosa ao se comunicar em espanhol. A participante afirma ter medo de falar errado, sendo esse erro provocado pela rapidez com a qual seu interlocutor, o venezuelano, interage na língua. Quando confessa “fico nervosa e enrolo tudo (hum) é ruim o sotaque né” sugere que sua proficiência oral seja ruim ou inaceitável pelos venezuelanos. Ao afirmar “tenho medo de falar e errar”, ao que parece, Júlia representa o erro como a produção de “sotaque ruim”, ou seja, sem a pronúncia característica da variedade linguística de Santa Elena. Da mesma forma, Camila aponta um aspecto estrutural da língua que marca o processo de aquisição do espanhol:

A participante descreve a língua espanhola como “bem enrolada” e ressalta a distinção fonológica para a mesma palavra em português e espanhol, principalmente, no que diz respeito à pronúncia do fonema /r/, como um elemento que marca sua competência linguística no sentido de tornar-se um complicador para falar bem a língua. Embora não fique completamente claro o que Camila entende por “falar bem a língua”, parece-me possível afirmar que, assim como no caso anterior, se trata de dominar a variante venezuelana falada em Santa Elena.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 94-98)