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1.2.5 – A LTERIDADE E O P ROCESSO DE S OCIALIZAÇÃO

1.2 – CIRCUNSTANCIANDO O OLHAR

1.2.5 – A LTERIDADE E O P ROCESSO DE S OCIALIZAÇÃO

Ao nascermos, iniciamos um processo de diferenciação entre o eu e o outro (o não eu). Antes mesmo de se conceber como alguém (identidade), a criança já se constitui, para o outro, num universo polissêmico. Tal processo acaba por criar, para a criança, uma identidade social conferida. A partir daí todos começam a tratá- la conforme o lugar simbólico para ela estruturado (o primogênito, a menina, o filho que vai ser doutor, o Júnior, etc.). Segue-se a esses processos uma progressiva interiorização, por parte da criança, do seu lugar social, num universo de significados coletivamente construídos e tradicionalmente estabilizados (DUVEEN, 1998). É, portanto, na relação com os outros homens que a criança vai se constituindo num deles e se singularizando, por meio das relações que vai estabelecendo com eles e com o meio, entendido de forma ampla, ou seja, enquanto história e cultura.

A capacidade de representar ou ainda a possibilidade de diferenciar e coordenar significado e significante inaugura um universo novo de possibilidades para a criança, no que se refere às construções do ponto de vista intelectual, principalmente no que concerne ao processo de socialização. Entretanto, conforme destaca Duveen (1998), a possibilidade de reter, no plano das representações, o objeto se desdobra da sua ausência, assim, “é a experiência da perda que subjaz ao surgimento da coordenação para recobrar o objeto” (p.89). Isomorficamente, os mesmos mecanismos endógenos, que sustentam a construção do objeto permanente, dão suporte à construção da diferenciação do eu e do outro, ou seja, ao processo da alteridade. Assim é que o eu e o outro têm nascimentos simultâneos. Diante disso, podemos conceber coerência na idéia de que a função semiótica consiste no esforço para recuperar o que está ausente, num patamar superior (imagético), para estruturar o EU, dada a sua imbricação natural com o outro (o que se quer ausente ou que se percebe como tal).

Acreditamos oportuno destacar que Gerard Duveen (1998), em sua pesquisa sobre o desenvolvimento das concepções de amizade da criança, traçou

uma evolução na compreensão da amizade como relação social pela criança. Relata que, contrariando suas expectativas (Piagetianas), o cruzamento dos dados de pesquisa, obtidos a partir das entrevistas clínicas, indicou que as diferenças mais significativas, em termos de concepções sobre a amizade, estavam mais fortemente relacionadas ao gênero das personagens, nas situações propostas às crianças. Assim, as crianças, de ambos os sexos, tendiam a atribuir o comportamento de submissão (na relação de amizade) ao personagem do sexo feminino na mesma intensidade, quando atribuíram à criança uma posição de submissão na relação de amizade com um adulto. Dessa forma, acaba por concluir que as representações sociais, a respeito da questão do gênero, influenciaram significativamente o julgamento infantil.

O autor, anteriormente citado, parece propor uma relação de preponderância de dados contingenciais (representação social de gênero) sobre as características operatórias (capacidade de operar por reciprocidade), o que, se interpretado de forma aligeirada, poderia projetar a idéia de abalo nos pilares que sustentam a teoria Piagetiana. Porém, Piaget, em várias de suas obras10, menciona que o fato de ter construído a capacidade de operar num patamar superior, não garante o desempenho de ações coerentes, com aquele nível operatório, isto porque existem condicionantes sócio-históricos, que trabalham na direção de favorecer este ou aquele comportamento.

Podemos afirmar que o processo de diferenciação do sujeito (alteridade) e a construção da identidade são construções derivadas das diferenças, ou seja:

Identidade, não é uma coisa, como uma atitude ou crença, mas a força ou poder que liga uma pessoa ou grupo a uma atitude ou crença, uma palavra, a uma representação. A identidade é uma luta pelo reconhecimento e a alteridade é construída no decorrer dessa luta (DUVEEN, 1998, p.99).

Entendemos que a questão da alteridade está na gênese do funcionamento das interações sociais e, mais, que estas últimas são condições necessárias à construção da capacidade de operar, visto que tanto os sistemas de significações, quanto os sistemas lógico-matemáticos do sujeito concorrem, simultaneamente, para a efetivação de uma dada ação. Além disso, as representações sociais surgem como um esforço para estabilizar significados no

contexto social, fragmentado pelas divisões sociais que, por sua vez, geram rupturas na cultura (Idem).

Guareschi (1998) partindo da premissa de que não há, no âmbito da ação humana, nenhuma situação em que a concepção de ser humano não esteja presente, parte dela para fazer uma análise das formas de alteridade delas derivadas. Neste particular, tipifica uma primeira categoria – ser humano-indivíduo – marcada pela idéia de um ser que é (em si mesmo) e que, para tanto, se isola dos outros. Em seguida, o autor destaca o ser humano como membro de uma totalidade (a humanidade), concepção de caráter coletivista e totalistarista, que desloca o eixo do interior do sujeito para o que lhe é externo, diluindo, assim, sua participação e importância, por meio do fortalecimento das instituições. Finalmente, na concepção - ser humano-relação -, delineia-se alguém que é um, que constitui uma unidade, mas não pode alcançar a plenitude de ser sem os outros.

Quais as implicações pedagógicas de conceber o outro como sendo pessoa-relação?

A cosmovisão fundada no ideal de totalidade fechada restringe não só a possibilidade de transformação da realidade como, também, a construção de uma alteridade radical, onde o ser humano não se percebe como o dono, o melhor, o primeiro, mas como alguém disposto a se relacionar em condições de simetria com os outros. Na visão onde o ser humano é o centro de tudo, é ele quem decide e detém a única palavra válida ao decidir, por exemplo, se algo é justo ou não, o outro não interessa. Tal situação decorre de que o outro não faz, é considerado como parte de nós, ele é o excluído (independente do seu conteúdo social). De forma similar, os conhecimentos hegemônicos exercem sobre o saber popular uma ação excludente, na medida em que o desvaloriza, por extensão, aquele que o domina (educando) vê-se, também, excluído a partir da dimensão epistemológica.

Caberia perguntar: Quais são, nessas condições, os procedimentos pedagógicos mais eficazes na formação de cidadãos susceptíveis à verdadeira cooperação inter e intra grupal?

Dois outros conceitos distintos tornam-se indispensáveis para a compreensão da construção da alteridade: singularidade e subjetividade. No processo de estabelecimento de relações, cada um incorpora, de forma particular

(singular), os conteúdos sociais e com eles se plasma. De forma complementar à singularização, desencadeia-se a subjetividade, que consiste não no que me diferencia do outro, mas do que contém o ser, realça, por conseguinte, a dimensão do outro em nós, em complementação à diferenciação promovida pela singularidade. Cabe-nos perguntar: quais são as implicações desse processo para a relação com o outro?

Quando entendemos o outro como indivíduo, alguém que em nada se vincula ao outro, o outro se coisifica e as relações se empobrecem. Neste contexto, as ligações apresentam necessariamente um caráter bipolar vertical (BOHOSLAVSKI, 1981). No extremo oposto, quando da representação do ser humano como parte do todo, a alteridade é presidida por um desprezo dirigido ao outro, onde o outro pode representar tanto o inferno, quanto o paraíso para o eu. Numa posição de equilíbrio relacional, encontra-se a concepção de ser humano- relação, onde a existência do outro é inegável, negá-lo implica em excluir a sua própria possibilidade de ser. Desta forma, a idéia de pessoa-relação guarda em si os dois sujeitos (eu-outro), assim, como quando falamos em “professor”, não podemos concebê-lo fora da relação entre alguém que ensina e alguém que aprende, mesmo que os sujeitos possam mudar de posição na relação.

Partindo das construções efetivadas, no âmbito pedagógico, podemos dizer que a coação representa do ponto de vista da alteridade, a diferença entre o eu e o outro, que é sempre acentuada e marca a exclusão do outro. De forma contrária, na cooperação, a alteridade surge como mecanismo diferenciador e estruturador do duo – eu-outro, e a diferença aparece com um valor positivo no desenvolvimento do sujeito. Assim, toda vez que se fala em relação, remete-se à ambiência de relatividade, ou seja, algo que não é absoluto, que depende de um outro para ser (GUARESCHI, 1998; DUVEEN, 1998).

Para que possamos entender a situação atual da educação e poder exercitar efetivamente o modelo democrático, precisamos de uma razão múltipla e plural, feita de ambigüidades, onde temos que arbitrar constantemente de forma coletiva e participativa. Para tanto, precisamos aprender a valorizar dimensões como a criatividade, que nos tira do fatalismo mecanicista. É preciso, enfim, resgatar o nosso potencial criador e, incluindo, é claro, o de nossas crianças, numa ética do

espanto, que se indigna com a injustiça e com a exclusão das quais somos, diariamente, agentes e pacientes.

Hannah Arendt (1989) diz que a sociedade moderna transformou os interesses da esfera privada em interesses de ordem coletiva. Assim, a dependência recíproca estabelecida entre os homens, para a manutenção da sobrevivência, alçou significância pública.

O lar, espaço interior e pessoal, passa ser o lugar autêntico das expressões humanas. Mas esse mundo familiar e aconchegante não substitui a realidade do mundo em sua multiplicidade. Aliás, é justamente esta multiplicidade do mundo que amedronta o homem, hoje é aprisionado em seu mundo interior, em seu gueto (FRANÇA, 1996, p. 140).

De forma diversa, entendemos que essa aparente retomada do “interior”, se vê falseada pelo apelo societário à lógica individualista, cuja exterioridade aponta para dentro do individuo, mas, na realidade, representa um estado de inconsciência do EU, vez que relega ao “outro” uma posição secundária, quando não podemos falar de um EU sem o OUTRO, vez que ambos se constituem e se mantêm numa relação de inter-relação necessária, portanto fundante.

Se o homem está só, por não perceber-se como relação, surge a idéia: é possível ou necessário se falar em ética ou em moralidade? Obviamente que não. Pois não podemos falar nesses conceitos fora da relação, onde se percebem enquanto tal. Mas podemos pensar: como o sujeito pode não se relacionar com outros homens? Pode, na medida em que age centrado em si, ou seja, a partir de um egocentrismo exacerbado. Ao desconsiderar um ponto de vista diferente do seu, acaba por inviabilizar a relação por reciprocidade, capaz de instaurar o ethos solidário. Por outro lado, ao tomar contato consigo mesmo, com sua sombra e com sua luz, o homem constrói a competência necessária para perceber e considerar o outro, em suas escolhas e decisões, saindo de uma heteronomia coisificante, na direção da autonomia humanizante. Entretanto, nessa forma de entender, a liberdade assume um significado que implica a capacidade individual de exercer um ato de vontade, considerando as implicações deste para o coletivo – agir político. A autonomia, nesse sentido, supera a idéia de um livre querer, postulando um livre- querer-responsável.

Para aparecer, a liberdade precisa da presença de outros homens. Requer um espaço publicamente organizado para que as instituições políticas possam realizar suas obras e homem possa nelas se inscrever por atos e palavras. Contudo, este mundo não pode ser regido por interesses

efêmeros e descartáveis de uma geração, mas por um campo político de inscrição das experiências humanas, constituindo-se como espaço público para a liberdade realizar-se concretamente em palavras e atos (FRANÇA, 1996, p. 141).

As relações interpessoais não ocorrem desconectadas dos sentimentos que os sujeitos nutrem entre si a partir de suas convivências. Assim, a constituição da autoridade não pode prover exclusivamente do funcionamento da razão. Para tal concorre, também, ou quem sabe preponderantemente, a afetividade (ARAÚJO, 1999). O sentimento de respeito é experimentado nas relações interpessoais e a partir das reflexões intrapessoais. Isto, porque podemos sentir respeito por outrem ou por nós mesmos.

Portanto, hoje em dia, a escola já não é mais norteada por um modelo-tipo de indivíduo. Desenvolveu-se um individualismo “vazio”, isto é, cada vez mais consciente e reflexivo em suas técnicas e competências individuais e cada vez menos certo de seus ideais. De fato, duas grandes concepções de individualismo estão atuando. Uma centrada no desempenho, na capacidade de domínio do ambiente, uma racionalidade, que concilia os meios e os fins: instrumental e estratégica. A outra se baseia na expressão, no desejo de fazer valer a sua autenticidade, uma razão “humanitária”, engajada numa relação comunicativa com o outro e expressiva consigo mesma (BARRERE, 2002).

Criamos padrões operatórios, em conformidade com a visão de mundo e de homem que construímos. Se essa cosmovisão funda-se no dualismo e na existência de uma auto-imagem idealizada, temos dificuldade em acolher outros esquemas de pensamento – ação, visto que operamos por exclusão e não por reciprocidade. Por isso, “é necessário descobrir as crenças subjacentes a qualquer resistência forte de enfrentar as áreas sombrias do eu” (PIERRAKOS, 1998, p. 27)

A escola fez da relação com o OUTRO um tema essencial de sua mensagem moral, o respeito que lhe deve - assim como aos envolvimentos, aos deveres com a coletividade, ao sentido da responsabilidade, à solicitude e até ao sacrifício, em suas versões religiosas ou patrióticas - sempre participou do cânone moral transmitido, prática e intelectualmente, pelas escolas. A relação com o OUTRO não deve mais se construir em torno de deveres ratificados pela tradição e animados por fortes princípios hierárquicos, mas por considerações imanentes que participam do projeto de uma boa vida.

As escolas se encontram permeadas e influenciadas por uma série de normas e padrões de conduta mesmos que não encarem diretamente essa atividade. Esse código de valores vem sendo transmitido e reproduzido através do currículo (entendido de forma ampla). Entretanto, muitas vezes, o que está expresso nos discursos oficiais (documentos, regimentos, Leis de Diretrizes e Bases da Educação e PCN) e preconiza, ao nível proposicional, um padrão ético/moral bastante diferente do que é operacionalizado na escola real. Isto, talvez, se explique pelos pressupostos de universalidade e homogeneidade subjacentes a essas formulações, ao desconsiderarem a pluralidade e a especificidade intrínsecas a cada realidade.