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1.2 – CIRCUNSTANCIANDO O OLHAR

1.2.3 – C ONSCIÊNCIA M ORAL E E DUCAÇÃO

Falar em democratização e na sua relação com a escola nos obriga a tratarmos da consciência moral. E a consciência humana é produto da práxis e da atividade dos sujeitos sociais. Falamos de uma consciência democrática que se diferencia da consciência autoritária por se basear na diferença, na pluralidade, na existência e no reconhecimento do outro (DORNELLES, 2001).

Proclamar que a educação visa o pleno desenvolvimento da personalidade7 significa dizer que a escola deve configurar-se no espaço privilegiado de trocas simétricas, entre os sujeitos do processo de ensino- aprendizagem, numa progressiva inserção, como valor, nos diversos âmbitos da vida social. Assim, buscar o pleno desenvolvimento da personalidade, em consonância com os ideais de democracia de direitos e de deveres, “consiste em formar indivíduos capazes de autonomia intelectual e moral e respeitadores da autonomia em outrem, em decorrência da regra de reciprocidade que a torna legítima para eles mesmos” (PIAGET, 1998a). Coaduna com esses pressupostos uma perspectiva de

[...] educação dialógica, problematizadora, que considera os alunos, que estabelece o diálogo, que reconhece o outro que sabe que o verdadeiro conhecimento é forjado na práxis e no debate democrático, que aceita as diferentes experiências de vida e concepções de mundo, que faz com que os educandos se desinibam e possam participar ativamente de todos os níveis de vida, refletindo sobre a realidade e atuando sobre ela com o objetivo de transformá-la (Dornelles, 2001, p. 185).

À semelhança da ciência moderna, a prática pedagógica busca, nos ideais de cientificidade das ciências exatas, as referências para o seu fazer, supervalorizando os aspectos quantitativos, por exemplo, na pedagogia do exame, na supervalorização dos conteúdos de caráter científico, em detrimento de outras dimensões do conhecimento.

No modelo educacional vigente – neoliberal – os conteúdos escolares são ensinados como se perseguisse um nível de logicidade, semelhante à Matemática, que alcança o nível mais alto de valorização escolar, de modo que a inteligência maior ou menor passa a ser associada ao desempenho de educando em

7 Forma da consciência intelectual e moral relativamente distanciada da anomia peculiar do egocentrismo e da

heteronomia das pressões exteriores, porque realiza sua autonomia adaptando-a à reciprocidade (PIAGET, 1998).

Matemática. Ao fazê-lo, entretanto, estabelecemos uma associação simplista entre o determinismo matemático (infalível, previsível e mensurável) e as de cunho sócio- cultural, onde os fatos e os fenômenos são contingenciais, ou seja, não obedecem a uma necessidade lógica formal. Isso talvez seja um resquício do sonho racionalista de Descartes.

Constata-se que, no contexto moderno onde imperam as correntes empiristas e pragmáticas, o outro permanece no lugar de objeto (de estudo, de ação de outrem, ou seja, em condição de passividade e subordinação). Esse modelo aparece nas mais diferentes frentes de atuação humana, inclusive na escola, e se faz perceber a partir de diversos indicadores (GUARESCHI,1998). Dentre eles é possível destacar a forma dicotômica de transmissão e de construção de conhecimentos na escola. Constitui-se, contraditoriamente, num forte empecilho à consecução dos seus objetivos, mesmo aqueles eminentemente instrumentais. Isto porque, ao enfatizar apenas um dos pólos do processo educativo, inviabiliza tanto a transmissão de conhecimentos, que exige o domínio do conhecimento disponível, quanto a construção de conhecimentos suportada pela ação dos sujeitos em processo. Desta forma, a ação fragmentária impede o desenvolvimento da reflexão crítica, da curiosidade, da incerteza, do questionamento, indispensáveis àqueles que conhecem ativamente (FREIRE e SHOR, 1986).

Outro aspecto relevante encontra-se associado à polarização vertical na relação entre os sujeitos envolvidos no processo educativo, fato que se agrava quando consideramos que mais que o conteúdo os indivíduos aprendem o vínculo, ou seja, internalizam, durante a aprendizagem, as relações a que foram submetidos. Assim, se experimentaram, ao longo do seu processo de escolarização, relações predominantemente coercitivas, tendem a reproduzi-las em comportamento futuros, gerando uma espécie de ciclo vicioso de difícil interrupção.

Na medida em que se considera a inexistência de verdades únicas e imutáveis, chega-se à conclusão da existência de realidades interpretáveis e que, na tentativa de fazê-lo, o sujeito modifica seus esquemas, tornando-os progressivamente mais complexos, e ampliando a sua capacidade de adaptação (assimilação x acomodação) ao mundo. Nesse sentido, fundados no objetivo maior de contribuir para o desenvolvimento dos elementos envolvidos no processo educativo, torna-se imperativo abandonar as práticas de repetição - ativismo ingênuo

- passando a trabalhar sobre as transformações, tanto do objeto do conhecimento, quanto das estruturas próprias para o ato de conhecer e de se relacionar no mundo.

A prática pedagógica pautada na repetição, memorização e reprodução, evidencia adequação perfeita em relação ao modelo empiricista, preconizador do conhecimento como cópia do real. Já a concepção racionalista de conhecimento, apóia-se na existência de uma razão onipotente, configuradora do real, e tem, por conseguinte, a ciência como seu produto melhor acabado. Do ponto de vista dialético, registra-se a idéia de que o sujeito do conhecimento, a partir dos seus sentidos, da razão e das suas representações, tem a necessidade e a possibilidade de histórica e socialmente construir ativamente o conhecimento.

A virtude que, nos termos clássicos era considerada externa ao próprio sujeito, passa hoje por um processo de subjetivação, tornando o próprio processo formativo fator constitutivo do que pode ser entendido por virtude. Na perspectiva tradicional, tratava-se, uma verdade única e universal, que o ser humano devia internalizar e assumir como orientação de sua vida prática. Esse princípio e expectativa eram também determinantes para as discussões no campo educativo e seus objetivos, particularmente no referente à educação moral.

A recente retomada do debate ético e o conseqüente retorno do tema da ética, que foi central na tradição filosófico/educacional, não significam que se possa dar conta desse novo encargo por meio do recurso aos mesmos métodos tradicionais. Vale dizer que o novo interesse pelo tema da ética não representa uma vitória da tradição, uma vez que não é possível tratar esse tema com os mesmos recursos mentais do passado. O horizonte das questões éticas tradicionais deve ser re-apropriado, mas com a diferença de que isso não é mais possível com os mesmos recursos teóricos e nem na perspectiva das seguranças então aceitas. O vazio aberto, entre a persistência da preocupação ética e o abandono das abordagens tradicionais, precisa ser preenchido com reflexões que decorram do ambiente contemporâneo. Não se trata da elaboração de um novo código de valores e expectativas capazes de orientar a prática pedagógica, mas da aproximação reflexiva ao problema, seus paradoxos e perspectivas.

Para educar, no campo moral, é preciso aprender a lidar com as incertezas. Isso supõe a superação da relação educativa tradicional, caracterizada pela transmissão de certezas aos educandos e adoção da perspectiva

reflexivo/crítica. Trata-se de sensibilizar os alunos para a questão da moralidade, introduzi-los no debate dos temas mais importantes que envolvem o ser humano e a sociedade na contemporaneidade, buscando contribuir para a formação de uma subjetividade a partir da qual cada pessoa possa fazer as suas leituras e tomar as suas decisões.

A metodologia e, ou as técnicas e procedimentos empregados na ação pedagógica não são por si “tradicionais” ou “progressistas”. Constata-se que, sob a intenção de não parecer tradicional, rotulamos determinados procedimentos e adotamos ou abdicamos de incluí-los nos nossos planejamentos diários. Por exemplo, encontra-se mais ou menos difundida a idéia de que a “aula expositiva” seria um procedimento ou metodologia própria do modelo tradicional de ensino. Entretanto, uma análise um pouco menos ingênua nos levaria a concluir que tal consideração “depende” de outras variáveis em jogo, a saber: público-aluno (características bio-psico-sociais); conteúdo (aquele que se deseja mediar a construção); objetivos específicos (com que intenção escolhemos esse procedimento); situação do processo de ensino-aprendizagem (tempo, nível, local, utilização de outros procedimentos, disponibilidade de recursos-pessoais e materiais), etc.

A mera adoção de uma nova configuração das carteiras em uma sala (mudando de fileiras para um circulo) não é condição suficiente para a implementação de uma ambiência democrática, preconizada pelas propostas de educação critica. Como vimos, a adoção deste ou daquele paradigma, em termos de ação educativa, não pode prescindir de uma transformação na forma, muitas vezes, maniqueísta e dual de compreender a realidade. Assim, as coisas não são a priori, o uso é que pode levá-las a ser.

Acreditamos, entretanto, que a perenização de qualquer comportamento (tanto faz se mais calmo ou agressivo) cria uma artificialidade relacional, incompatível com a realidade das relações societárias. O educador, assim como qualquer ser humano, atravessa, no seu dia-a-dia, uma variação de estados de humor. Dessa forma, mais importante que promover um comportamento de “aparente” calma e solicitude é demonstrar, de forma não-destrutiva, a manifestação dos sentimentos e estados de espíritos e, demonstrar como, na prática, podemos manejar com essas situações de forma construtiva.

Constatamos que o paradigma democrático instaura uma profícua ambiência de reflexão e escolha, que guarda um potencial formativo bastante significativo. Entretanto, demanda uma constante reflexão, por parte do educador, acerca da adequação das regras empreendidas: até que ponto elas podem ser negociadas ou flexibilizadas? Elas são coerentes e justas? Assim, diante dos comportamentos indisciplinados, precisamos começar o trabalho de investigação de suas causas, pela instituição escolar, instância sob a qual temos a possibilidade de intervir com maior autonomia. Pesquisas (GALVÃO, 1992) vêm apontando para o fato de o comportamento indisciplinado estar diretamente associado a uma série de aspectos vinculados à ineficiência da prática pedagógica desenvolvida, tais como:

proposta curriculares problemáticas e metodológicas que subestimam a capacidade do aluno [...], cobrança excessiva da postura sentada, inadequação da organização da organização do espaço da sala de aula e do tempo de realização das atividades, excessivas centralização na figura do professor [...] e, conseqüentemente, pouco incentivo à autonomia e às interações entre os alunos, constante uso de sanções e ameaças usando ao silêncio da classe, pouco diálogo, etc ( p. 100).

Acho que a essa altura já deixamos clara a inexistência e um receituário teórico-metodológico capaz de fundamentar a educação moral. Porém, a ação pedagógica, norteada por alguns princípios fundamentais, tais como a justiça, a dignidade, a solidariedade, mediadas pelo respeito mútuo entre as pessoas (cooperação), pode contribuir para que as dúvidas e incertezas emergentes sejam discutidas e resultem numa melhor qualidade de vida para todos os envolvidos.

Embora Piaget não tenha se preocupado especificamente com as questões práticas da educação, e sim em formular uma teoria do conhecimento, parece-nos correto afirmar que práticas pedagógicas ativas têm maior correspondência com as necessidades dos sujeitos. Nesse sentido, a relação é o centro do processo e o fator social ou educativo se constitui numa condição de desenvolvimento dos sujeitos, envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

Coaduna com as propostas mais radicais de ação pedagógica, a concepção de que a reflexão, sobre o fazer educativo, pode mover os docentes na direção do uso público do entendimento, a favor do sucesso escolar dos educandos. Outrossim, a busca incessante de receituários metodológicos e de deslocamento do eixo de explicação do fracasso escolar, para o aluno e sua família, evidenciam relações que acolhem tabus, preconceitos e crenças sociais, manifestas no cotidiano escolar, sob as mais diversas formas, processo que buscamos melhor compreender

a partir dessa pesquisa. A transformação dessa práxis implica em vencer a estagnação e a inércia reinantes, e esbarra, a priori, no desconhecimento e nas impossibilidades cognitiva e moral do professor, em fazer uso do refletir-agir pedagógico, na direção de um quadro educacional mais justo.