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MTE: A CONSTRUÇÃO DE UM SENTIDO

2.2 O conceito de mediação e suas transformações históricas

2.2.2 A mediação em Hegel

A filosofia de Georg Wilhelm Friedrich HEGEL (1770-1831) é considerada por pesquisadores sociais modernos (BOTTOMORE, 1988; SANTOS, 1988) como o ponto de origem da acepção que a mediação adquire nas Ciências Sociais — particularmente, no campo da Comunicação (SIGNATES, 1998). A significância desse filósofo em relação a nosso objeto de estudo reside não só no fato dele efetivamente ter dado um “salto quântico” em relação aos seus predecessores e contemporâneos, mas por ter construído um referencial metodológico para o tema (mediação dialética) que, por via direta ou indireta, levou ao desenvolvimento da Teoria das Mediações na comunicação social.

O conceito hegeliano de mediação — ou, mais propriamente, uma das acepções hegelianas de mediação130

— foi apropriado criticamente por Marx e seus seguidores (assim como o próprio método dialético), voltando a influenciar, por retroalimentação, as teorias sócio-comunicativas da segunda metade do século XX. O fato de nos referirmos à mediação em Hegel como um conceito mutável reflete a evolução do significado que a ele se empresta nas obras do filósofo alemão.

À parte seus desdobramentos etimológicos131, ao estudarmos a mediação em seu sentido hegeliano, deparamo-nos primeiramente, com a noção de conhecimento mediato/imediato da realidade132.

De acordo com MORA & TERRICABAS:

“Hegel concebe o conhecimento mediato em relação com uma idéia de reflexão. Assim como a luz é refletida por um espelho e volta à sua fonte, o pensamento é também refletido ao ricochetear sobre a realidade ou as coisas ‘em sua imediatividade’. Transforma-se então em saber mediato ou ‘reflexivo’.” (MORA & TERRICABAS, 1994: 1919)

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Segundo BOTTOMORE (1988, 263), neste caso, a obra referencial seria Princípios da Filosofia do

Direito (Grundlinien der Philosophie des Rechts).

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“O alemão para ‘[o] meio’ é [die] Mitte. Este gera um adjetivo mittel [‘meio’] e um outro substantivo, [das] Mittel [originalmente ‘{o} centro, a coisa que está no centro ou no meio’, mas agora ‘os meios ou recursos, o que serve para se atingir uma finalidade ou PROPÓSITO’]. Gera também diversos verbos, especialmente mitteln [‘ajudar alguém a, ajustar, combinar, mediar’, por exemplo, num litígio, numa desavença], o que hoje é obsoleto mas deixou mittelbar [‘mediato, indireto’] e unmittelbar [‘imediato, direto’] e ainda vermitteln [‘conseguir união, mediar, conciliar’ etc.]. O particípio passado de vermitteln, vermittelt

[‘mediado, indireto’] é usado em contraste com unmittelbar. Ambos dão origem a substantivos abstratos,

Vermittelung [‘mediação’] e Unmittelbarkeit [‘imediatidade’]” (INWOOD, 1993: 217).

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Etimologicamente, descobrimos que o inglês mediacy traduz o sentido de “estado ou qualidade do que está sendo mediado”. Não há correspondência natural em nosso idioma, exceto pela construção artificial “mediácia”. Ver também nota de rodapé na página 125.

Hegel vai além, e qualifica o saber imediato como superior ao mediato, o que podemos entender, num certo sentido, como a “verdade original”, não-mediada e, portanto, ligada ao Todo. Entretanto, ele próprio admite que

em outro sentido, o saber mediato é superior ao imediato, embora então a imediatidade de que se trata já não seja a das coisas que estão simplesmente ‘aí’, mas a das coisas em sua conexão racional com o Todo. Por isso, em Hegel, o que se pode denominar ‘imediatidade superior’ não é possível sem a mediatidade, isto é, sem mediação. (MORA & TERRICABAS, 1994: 1919)

Assim, a mediação surge como uma operação necessária à materialização do conhecimento filosófico, não só para a compreensão, mas também (ou principalmente) para a intervenção sobre a realidade, no sentido de torná-la melhor. A busca de Hegel — tida como frustrada — pela concretude dialética da mediação, afasta-o conceitualmente dos empiristas e também dos iluministas, ou

Em outras palavras, a reflexão exclui não somente a imediação que é intuição abstrata, isto é, o saber imediato, mas também a “relação abstrata”, isto é, a mediação de um conceito diverso (as provas de Locke) que Hegel julga própria (e com razão) do século do iluminismo. (ABBAGNANO, 1982: 628)

Segundo SANTOS (1988), o conceito de mediação aparece em Hegel, num primeiro momento, em modalidade pré-dialética, conforme se evidencia na análise feita pelo filósofo na obra Fenomenologia do Espírito. Nesta, Hegel (o filósofo, no papel de “mediador”) interpreta a dicotomia em dois exemplos conflituosos: a relação entre amo e escravo e a relação entre Antígona e Creonte133:

“Ao tratar da certeza sensível na Fenomenologia do Espírito, chega à conclusão de que a única saída até o conhecimento universal, para além do sensível, é a mediação mútua do sujeito e do objeto. Trata-se de uma mediação fechada, dual, que se limita a atestar a ‘existência’, o que ‘é’ e não as determinações” (SANTOS, 1988: 596 – tradução nossa).

Dessa forma, a ação dialética em Hegel é, ela própria, identificada como “mediação” resultando num juízo novo, o qual não residia, originalmente, nos extremos mediados. O único — e enorme — “senão” é o fato do filósofo não ter fixado claramente a natureza ontológica da mediação, o que se evidencia quando ele trata da “automediação” e

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da “alienação” 134 como mediação de outrem (SANTOS, 1988). Essa aparente contradição, ou obscuridade intencional no processo mediador, justificar-se-ia pela orientação idealista (não-assumida) de Hegel, fato apontado pela crítica marxista:

“Não é estranho que Marx censurasse esta maneira de proceder na Crítica da

Filosofia do Estado de Hegel (Secção B). A mediação idealista era empregada por

Hegel em mediações fictícias, fazendo-nos ver uma espécie de ‘sociedade mutuamente reconciliada’ na qual o estado se legitimaria como mediação necessária entre a sociedade civil e a sociedade política” (SANTOS, 1988: 597 – tradução nossa).

Críticas à parte135, a preocupação de Hegel, de certa forma, é a mesma demonstrada pelo Marxismo: “expressar, as ‘relações concretas’ e não simplesmente as ‘relações abstratas’ (como ocorre com a idéia de mediação na lógica clássica).” (MORA & TERRICABAS, 1994: 1919).

A consolidação do conceito, na obra do filósofo alemão, evidencia-se pelo estabelecimento de três possibilidades distintas (INWOOD, 1993):

(1) a mediação física, necessária, por exemplo, para entender como um broto transforma-se em árvore por meio de um processo de crescimento;

(2) a mediação epistêmica, identificada com o reconhecimento da própria existência (autoconsciência), ato que se realiza por meio da educação ou da reflexão filosófica (como no cogito ergo sum de Descartes) e

(3) a mediação lógica, que se verifica no silogismo de que “o Ser Puro é imediato mas a essência é mediatizada por um processo lógico” (INWOOD, 1993: 217).

Voltando ao marxismo, vale dizer que a passagem da mediação para a mediação

dialética não consolida apenas o conceito da mediação, mas o próprio conceito de

“dialética”. Este será o próximo ponto de nossa discussão.

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Conceito que os marxistas também adotam, mas ao qual reservam acepção distinta. 135

Não deixa de ser curioso como, por recusar o princípio do “Salto da Fé” (que dispensa a mediação humana), Hegel tenha merecido as críticas e a animosidade de seu contemporâneo Kierkegaard.