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PARA QUE SERVE “FIXAR UM SENTIDO”?

MTE: A CONSTRUÇÃO DE UM SENTIDO

2.1 PARA QUE SERVE “FIXAR UM SENTIDO”?

Somos o rio de Heráclito, para quem o homem de ontem não é o homem de hoje e o de hoje não será o de amanhã. Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que a releitura de um livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto. Porque também o texto é o rio imutável de Heráclito. (J.L.Borges)

Antes mesmo que definíssemos a MTE como nosso objeto de estudo e assumirmos a proposição de aclarar seu sentido e significado108, houve um momento de hesitação sobre onde, ou em que ponto, começa a necessidade de buscar tal definição.

Afinal, quando falamos em “mediação”, temos uma idéia razoavelmente clara do que ela trata. Ou não? Analisemos a seguinte sentença como uma resposta a essa pergunta:

“Uma epistemologia ‘responsável’ poria em relevo que a mediação é um conceito chave tanto no campo do pensamento como na praxis. Mas, a mediação é a grande ausente das preocupações teóricas, talvez porque sua qualidade de ‘teto’109 de todo conhecimento desanima os investigadores.” (SANTOS: 1988, 595110)

Assim, parece haver uma diferença substancial entre (a) o emprego de um termo

“consensual” e (b) a exposição de um conceito estabelecido — embora ambos pareçam

diferentes maneiras de se reafirmar o óbvio. Enquanto, no primeiro caso, ficamos na explanação algo inútil e redundante, no segundo, abre-se a possibilidade de reavaliar criticamente nossa “verdade” tão historicamente construída quanto qualquer outra.

Na realidade, buscar a reafirmação do óbvio pode levar a um resultado diverso, sendo uma instigante oportunidade para questionar a robustez de alguns axiomas. Tal procedimento crítico não é desconhecido, também, no campo da educação, e tem se manifestado, em abordagens recentes, por meio de expressões como “ressignificar” ou “lançar um novo olhar sobre” algum elemento da praxis instituída na educação.

Em síntese, decidimos reiniciar nossa reconstrução teórica desde o componente mais geral sobre o qual se assenta o conceito da MTE: a própria mediação.

108

A esse respeito, ver quadro 1 e respectiva nota de rodapé em nossa Introdução. 109

No sentido de “abrigo”, mas respeitando a amplitude do espanhol techo.

110

Assim, parece-nos notável, como no campo da comunicação, tem sido muito comum que se fale em “mediação”, “mediar”, “mediatização” e vocábulos similares que compartilham o radical etimológico (mas não necessariamente o mesmo sentido), sem uma preocupação maior com a definição expressa de seu conceito.111

Queremos deixar claro, neste prolegômeno, que abrir mão do caráter “tácito” do qual a mencionada expressão se reveste, amiúde, é condição básica para compreender nosso objeto de estudo “Mediação Tecnológica” e seu recorte “MT na Educação”.

Nosso primeiro questionamento declarado nesse sentido é:

Se a mediação é um termo tão corrente nos estudos da comunicação — e também da educação — por que, tão freqüentemente, lhe faltam clareza (ausência de ambigüidade) e consistência (ausência de contradição) em seu emprego?

Tomemos esse exemplo, selecionado sem outra preocupação que não a de exemplificar o que chamamos de falta de clareza: “Desse modo, refletir sobre a problemática da comunicação enquanto mediação educacional na era da informação implica”112. Mesmo citada fora do contexto, a frase nos leva a questionar:

• A comunicação pode ser considerada uma mediação? • Como categorizar uma mediação educacional?

• Que elementos perfazem este modelo de mediação (Quem medeia? Quem é mediado?) Em relação à falta de consistência, podemos, igualmente, recorrer a um exemplo: “A superação dos modelos explicativos advindos das posturas fundadoras está exatamente na compreensão da comunicação como um processo compartilhado e mediado pelos meios”113. Da mesma forma que no parágrafo anterior, podemos nos perguntar:

111

Esta observação ecoa a justificativa apresentada por SIGNATES (1998) na introdução de seu “Estudo sobre o conceito de mediação”. O fato desta menção já ter a idade de uma década, serve, no mínimo, como um alerta para o fato de que a questão ainda está em aberto.

112

Reservamo-nos o direito de não referenciar este exemplo, retirado de texto acadêmico a título de ilustração.

113

• A comunicação é, obrigatoriamente, um processo mediado?(Ou mediador? Ambos?) • Os meios medeiam114 a comunicação?

Note-se que ambos os exemplos mencionados são facilmente interpretados nos textos onde ocorrem, mas se essa clareza e consistência dependem de interpretação e contextualização, podemos afirmar que ambas as qualidades não são inerentes ao “mediar”, tal como é empregado nos textos educomunicativos (e fora deles também115).

Por fim, além de todas as justificativas invocadas, há o risco pouco convidativo de expor ao descrédito linhas de pesquisa importantes, mas cujos estatutos não consigam atender satisfatoriamente aos juízos metodológicos mais exigentes.

A esse respeito, consideramos fundamental acrescentar o ponto de vista de SANTOS (1988), o qual nos alerta que

“(…) negar ou desconhecer a mediação equivale a mover-se dentro do pensamento mágico, desconhecendo o processo real do pensamento. ‘Mediação ou magia’, tal parece ser o dilema. Quando uma mudança — seja real ou fictícia — sobrevém, costuma-se recorrer a diversas categorias, por exemplo a de causa ou a de efeito

mágico, mas é mais raro que se tenha a valentia de recorrer até a mediação. Esta

seria distinta e eqüidistante entre a causa dos físicos e a magia, e nunca assimilável a nenhuma delas” (SANTOS, 1988: 595)116.

Ao delinearmos nosso objeto de estudo, deparamo-nos com a certeza de que essa discussão está fadada ao rápido envelhecimento: finda a pesquisa, é bem provável que os dados elencados careçam de atualidade, tanto quanto as reflexões que neles se baseiem necessitem ser retificadas. Entretanto, consideramos que nossa abordagem, sem pretender, em momento algum encerrar a questão, complementa com idéias novas as reflexões teóricas que, mesmo compondo um volumoso conjunto, revelam-se tão insuficientes quanto esparsas.

Assim, não obstante o caráter sisifista da tarefa, há que empreendê-la.

114

Outra observação pertinente: a conjugação correta de mediar no presente é poucas vezes observada: “medeio, medeias, medeia, mediamos, mediais, medeiam” (HOUAISS, 2007).

115

Tomando emprestadas as palavras de SIGNATES: “(…) se a noção de mediação se tornar um conceito do tipo guarda-chuva, que permite levar até à mais simplória das totalizações — tudo é mediação (logo, nada o é) — todo o valor heurístico propiciado pela abertura de suas possibilidades pode redundar apenas em generalizações sem qualquer utilidade teórica” (SIGNATES, 1998: 47).

116

2.1.1 Mediação: uso, ou abuso lexical?

Com certeza, o termo mediação é muito popular nos dias de hoje. Uma busca rápida em qualquer livraria on-line remeterá, no mínimo, a três dezenas de títulos. Mesmo que a maior parte deles se refira diretamente à área jurídica117, podemos verificar um número crescente de títulos nas áreas de Ciência da Informação118, Psicologia, Bioquímica119, Teologia e Religiosidade120, Arte121, Pedagogia122, Comunicação e − o que é sintomático − nos setores de atividade em que estas duas últimas se interseccionam dentro de um contexto em que a Tecnologia é uma influência determinante.

Um exemplo emblemático dessa última tendência corporifica-se na chamada EaD (Educação a Distância), vertente que, não por acaso, embasará nossa análise sobre a aplicabilidade da MTE .

117

Um dicionário-padrão da língua portuguesa registra “1.3 Rubrica: termo jurídico. que atua como árbitro entre pessoas, grupos, partidos, facções ou países que estão em contenda ou têm pontos de vista divergentes acerca de determinada questão, com a finalidade de compor uma composição amigável das partes” (HOUAISS, 2007).

118

“A idéia da mediação acaba por cobrir coisas tão diferentes entre si, que vão das velhas concepções de “atendimento ao usuário” à atividade de um agente cultural em uma dada instituição — museu, biblioteca, arquivo, centro cultural —, à construção de produtos destinados a introduzir o público num determinado universo de informações e vivências (arte, educação, ecologia, por exemplo), à elaboração de políticas de capacitação ou de acesso às tecnologias de informação e comunicação, etc. Desse modo, uma definição consensual de mediação parece impraticável: sempre contextualizada, torna-se um conceito plástico que estende suas fronteiras para dar conta de realidades muito diferentes entre si”. (DAVALLON, 2003 apud ALMEIDA, 2007).

119

Substâncias que promovem ligações de caráter somático, como por exemplo, os neurotransmissores (endorfina, dopamina, etc.) são denominadas “mediadores”.

120

Segundo um clássico dicionário de filosofia, “Uma função mediadora entre os deuses e os homens foi reservada na antigüidade aos demônios” (ABBAGNANO, 1982: 628). Essa mesma atribuição teria sido exercida, ao longo da história, por divindades como Mithra, e chegado até nós pela filosofia cristã de Santo Agostinho, que afirma, em sua Sumula Theologica, que “(…) ‘somente a Cristo compete ser mediador de modo simples e perfeito’ enquanto anjos e sacerdotes são de preferência instrumentos de Mediação”. (apud ABBAGNANO, op. cit.). Curiosamente, a existência de serviços esotéricos on-line reintroduziu a perspectiva mística na semântica da mediação, devidamente “atualizada” dentro de um contexto pedagógico (RAMOS, 2002: 49).

121

Há um entendimento que enquadra as tecnologias como suporte e “meio de transmissão” da expressão artística contemporânea, não só nas modalidades visuais, mas também na música. De certa forma, tal referência atualiza a discussão benjaminiana/adorniana plasmada na Indústria Cultural: “O registro sonoro sobre um suporte físico enfatiza o processo de ‘coisificação’ da música, ao mesmo tempo que elimina a necessidade de conexão espaço-temporal entre a performance e a escuta.” (IAZZETTA, 2006: 08).

122

“A mediação do outro desperta na mente da criança um sistema de processos complexos de compreensão ativa e responsiva, sujeitos às experiências e habilidades que ela já domina. Mesmo que ela não elabore ou não apreenda conceitualmente a palavra do adulto, é na margem dessas palavras que passa a organizar seu processo de elaboração mental, seja para assumi-las ou para recusá-las.”(FONTANA, 2005: 19).

A larga utilização da palavra expõe certa tendência à versatilidade123 e também à extensibilidade124 de seu uso a diversos âmbitos, o que torna mais desafiadora a tarefa de precisar-lhe sentido e significado. Por outro lado, podemos notar que se evidencia também um desgaste precoce do termo ou, pelo menos, uma popularização que conspira contra a precisão epistemológica que dele se espera nos círculos acadêmicos.

Não que alimentemos a ambição de fixar o léxico, tarefa impossível até para os lingüistas. Basta-nos aqui:

(a) que o emprego de “mediação” e outros termos derivados do verbo “mediar” ganhe um contorno mais distinto dentro do campo emergente da Educomunicação;

(b) que essa maior clareza seja emprestada, especificamente, àquela vertente educomunicativa a que denominamos “Mediação Tecnológica na Educação”, o objeto que delimitamos para o nosso estudo e

(c) que a significância construída com base em nossas análises possibilite uma proposição de âmbito conceitual e metódico extensível, em princípio, aos campos da Comunicação e da Educação.

Não entendemos que a falta de um consenso estrito a respeito da mediação desvalorize, em algum grau, a série de conquistas epistemológicas meritórias que se acumularam (e se acumulam, a cada dia) por conta das pesquisas em comunicação125. Ao contrário, procuramos nos referenciar em várias contribuições nessa linha para desenvolver nossa própria análise, buscando a contextualização histórica de nosso objeto de pesquisa e acompanhando a trajetória do conceito de mediação através dos campos da filosofia e da sociologia, até os domínios da comunicação.

123

“Capacidade de ser diverso nas suas habilidades, saberes, empregos, aproveitamento etc.” (HOUAISS, 2007).

124

“Qualidade de extensivo”, o qual, por sua vez, é o “que se aplica ou que é válido para um maior número de pessoas, objetos ou casos” (HOUAISS, 2007).

125

SANTOS diria que “A ausência da mediação dentro do conjunto de preocupações teóricas não impede que esteja atuando continuamente, como demonstra até o mais superficial exame de linguagem e da mais simples produção intelectual .” (SANTOS, 1988: 595 – a tradução é nossa)