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1. A neurobiologia da aprendizagem

1.3 A memória

A Figura 1, reproduzida de Schumann (2004), exibe uma taxonomia padrão dos sistemas de memória24. A taxonomia abaixo permite uma descrição da memória tanto em termos temporais como funcionais. Na dimensão temporal podemos subdividir a memória em ‘memória de trabalho/curto prazo’ (MT) e ‘memória de longo prazo’ (MLP). A seguir comento sobre cada um destes dois tipos de memória.

Figura 1

Classificação hierárquica da memória

(adaptação baseada em Fabbro, 1999, In: John Schumann, 2004, p.4)25.

1.3.1 – Memória de trabalho e memória de longo prazo.

Para Schumann (2004:4) a memória de trabalho (MT) pode ser definida como uma memória que fica ativa por um período de tempo muito curto (menos de 20 segundos)

24

Acredito não caber, nesta tese, uma discussão detalhada sobre aspectos neuroanatômicos e neurofisiológicos envolvidos nos mecanismos de memória procedimental e declarativa. A terminologia empregada é altamente especializada e requer treinamento e conhecimento profundos em neurologia e neurociências. Entretanto, fica a cargo do leitor, caso tenha interesse numa descricao técnica e mais detalhada de tais pocessos, consultar a literatura aqui citada de forma resumida e simplificada.

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Embora contrariando as normas da ABNT, algumas figuras ao longo desta tese foram mantidas no seu formato original em inglês devido às dificuldades encontradas pelo autor no manejo gráfico destas.

durante a realização de uma tarefa. Ellis (2001:35), por sua vez, define a MT como um sistema especializado em perceber e representar, tanto temporariamente como a longo prazo, informações visuais e auditivas em processos de atenção limitados. Portanto, na definição de Ellis, a memória de trabalho também parece ser, grosso modo, um mecanismo de atenção por excelência (como vimos anteriormente).

A memória de longo prazo (MLP), por sua vez, é bastante duradoura, podendo variar de dias, semanas, meses ou anos. De acordo com a taxonomia da figura 1 acima, a MLP também pode ser descrita em termos funcionais: declarativa (explícita) e não-declarativa (implícita). A memória declarativa registra fatos e eventos, sendo subdividida em memória semântica ou enciclopédica e memória episódica (registros espaciais e temporais específicos). A memória declarativa é processada basicamente pelos mecanismos presentes no hipocampo, como destacado por Crowell (2004).

A memória implícita diz respeito a nossos hábitos, habilidades motoras e perceptivas, bem como à aprendizagem emotiva (SCHUMANN, 2004:5). Este tipo de memória pode ser subdividido em condicionamento, memória procedimental e priming. A memória implícita é processada pelos mecanismos do neocórtex. No entanto, a memória procedimental, que, como veremos no próximo item, é fundamental para a discussão sobre mecanismos de chunking, é processada, de acordo com Lee (2004), principalmente nos gânglios da base, um subsistema do neocórtex.

Finalmente, como vimos anteriormente, os mecanismos de memória explícita e implícita possuem uma natureza distinta. Como destaca Schumann (2004:5), a memória implícita, que precede a memória explícita tanto em termos filogenéticos como ontogenéticos, é relativamente inflexível e apenas disponível em contextos idênticos ou semelhantes a situação original de aprendizagem. Isto, por sua vez, a torna uma memória mais ‘robusta’ (e, certamente, é por isto que a memória implícita tende a ser preservada na velhice, diferentemente da memória explícita, que se deteriora de maneira acentuada com o passar dos nossos anos).

1.3.2 - Memória procedimental: processos automáticos

Automatismo é o nome popular para o que entendemos por memória procedimental. Este é um tipo de memória adquirida pela repetição de uma tarefa (por ex., jogar capoeira, tocar violão ou piano, falar uma língua, etc.), um conhecimento implícito, automático e inconsciente. É nos gânglios da base que concentram-se as nossas memórias implícitas; lá elas são apreendidas, reforçadas e instanciadas. Tal processo de automatização pode ser observado no nível neurobiológico em processos de convergência, divergência e reconvergência celular (neuronal). De acordo com Lee (2004), estudos mostram que o insumo (informação) proveniente de múltiplas áreas do neocórtex converge para os neurônios dos gânglios da base (mais especificamente para uma área conhecida por striatum) de forma seletiva e precisa. Por exemplo, segundo Lee (2004:49) é comum que “cerca de 10.000 neurônios do neocórtex disparem para um único neurônio do striatum”. Ou seja, dez mil pedaços de informações variadas são fundidos e sintetizados em um único neurônio. Este processo de chunking celular observado no mecanismo de convergência, divergência e reconvergência produz, gradativamente, “códigos para seqüências de movimento com ordens temporal e espacial específicas” (p.49). Ou, como destaca Lee,

Esta harmonização gradual de populações especializadas de neurônios no striatum, a fusão espaciotemporal dos neurônios do striatum por meio de TANs (neurônios tonicamente ativados) e a reconvergência da informação em alvos na saída do striatum são os mecanismos que produzem os processos de chunking (Graybiel, 1998). Por meio de processos de chunking, seqüências de ações motora e cognitiva são estabelecidas como rotinas que podem ser, subseqüentemente, executadas como unidades de desempenho. Tal processo de chunking é um mecanismo para a aprendizagem e produção de repertórios de ações motora e cognitiva (p.49).26

26 Minha tradução de: This gradual tuning of modular populations of neurons in the striatum, the spatio

temporal binding of the striatal neurons by TANs, and the reconvergence of the information onto striatal output targets are the mechanisms that bring about chunking (Graybiel, 1998) Through chunking, motor and cognitive action sequences are formed as routines that can be subsequently executed as performance units. This chunking process is a mechanism for the learning and expression of motor and cognitive action repertoires.

Como vimos na discussão sobre motivação, todo o processo de chunking acima descrito é modulado pelo nosso sistema dopaminérgico. Também, tais representações mais complexas (i.e., representações seqüenciais resultantes de processos de chunking) serão posteriormente selecionadas e produzidas pelos circuitos de saída dos gânglios da base. Assim, podemos entender o comportamento automatizado (seja ele lingüístico, artístico, etc.) como uma seleção de representações seqüenciais a serem fundidas em chunks maiores; visto desta forma, o comportamento é em si um grande chunk petrificado e difícil de ser quebrado e/ou modificado. Uma engenharia reversa ou a decomposição do comportamento em seus chunks constitutivos tornam-se algo difícil.

Este, portanto, parece ser o mecanismo neurobiológico subjacente à aprendizagem do tipo APS, como destacado anteriormente. Aqui vemos claramente a relação entre motivação e aprendizagem: em termos neurobiológicos, os processos que ocorrem nos gânglios da base acima descritos repercutem na amígdala, e as interconexões presentes nestas duas áreas passam a ser reguladas pelo mecanismo de recompensa mencionado anteriormente (i.e., ativam ou inibem as representações formadas nos gânglios da base).

Segundo Lee (2004:60-63), o papel dos gânglios da base na memória procedimental é corroborado por estudos sobre automatismo, assim como estudos sobre patologias como coréia de Hungtinton, doença de Parkinson, transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e afasias, como veremos a seguir.

Evidências fortes do papel dos gânglios da base na aprendizagem de habilidades são encontradas nos casos de afasia, principalmente a afasia paradoxal. Recentemente tivemos um caso conhecido deste tipo de afasia que foi bastante veiculado na imprensa brasileira. Após um acidente, o cantor Herbert Viana, da banda Paralamas do Sucesso, sofreu lesões na região dos gânglios da base. No hospital, ao retomar a consciência, o cantor só comunicava-se em língua inglesa. Como o inglês é sua segunda língua, provavelmente partes de seu processamento ainda não haviam sido tão fortemente automatizadas, sendo utilizados circuitos envolvidos nos mecanismos de memória explícita (como os circuitos envolvendo o hipocampo). Por outro lado, sua língua materna, o português, provavelmente encontrava-se toda ela automatizada nos gânglios

de base. Nestes casos, devido a lesões naquela região, apenas a memória parcialmente automatizada poderia ser acessada, daí o fenômeno da segunda língua vir à tona.

O capitulo seguinte discute modelos conexionistas (e probabilísticos) que são inspirados na neurofisiologia discutida acima. Devido a tal plausibilidade neurobiológica, acredito que sejam bastante adequados para o desenvolvimento da nossa discussão. Iremos agora para o nível conhecido como simbólico-representacional do processo de construção deste domínio cognitivo específico que é a linguagem.

2. Conexionismo, probabilidades & chunking