• Nenhum resultado encontrado

4. Construindo uma segunda língua

4.1 O léxico: de um dicionário a estados mentais

O nosso léxico mental é um bom exemplo de “rede” estruturada nos moldes conexionistas já discutidos. Embora o próprio conceito de palavra seja algo altamente controverso, conforme aponta Singleton (1999:10-14), é certo que as palavras desempenham um papel muito mais importante no desenvolvimento e estruturação de uma língua do que muitos teóricos parecem admitir48. Há um verdadeiro abismo entre teorizações ortodoxas que vêem o léxico como um simples dicionário, do qual as palavras são escolhidas para o preenchimento de estruturas sintáticas no uso da linguagem (cf. PINKER, 1994), e reflexões conexionistas recentes que preconizam que palavras são “pistas” ou “estímulos” que provocam mudanças em estados/configurações mentais (cf. ELMAN, 2004). Discutirei mais detalhadamente sobre estas últimas teorizações, por natureza mais abstratas, mais adiante.

Como uma transição suave para a recente alternativa conexionista de Elman, começaremos com uma conceituação de léxico mental que pode ser caracterizada como

47

A discussão feita neste item tem uma relação direta com os processos de categotização discutidos no capítulo 3 e, principalmente, com a proposta conexionista de McClelland & Rogers (2003) e Rogers & McClelland (2004). A concepção de léxico mental de Elman (2004) exibida mais adiante é um epítome da teorização conexionista sobre os processos de desenvolvimento conceptual.

48

Para uma compreensão maior do papel das construções lexicais na estruturação de uma língua, destaco duas recentes reflexões elegantemente produzidas por Nick C. Ellis (2003, 2001).

um enorme avanço em relação às teorizações ortodoxas que vêem o léxico como um simples dicionário ou depósito de palavras, usadas, principalmente, a serviço de estruturas sintáticas.

Para Meara (1996), um léxico mental pode ser entendido a partir de duas dimensões básicas: tamanho e grau de conectividade. Ao adquirirmos novas palavras na L2 (pela exposição ao insumo) também adquirimos um conhecimento mais amplo sobre as palavras que já conhecemos. Mas o tamanho do vocabulário, por si só, não é um bom indicativo da competência em L2. À medida que o léxico cresce, o tamanho torna-se algo de menor importância. Meara enfatiza a importância do grau de organização deste vocabulário. É necessário entender o léxico de uma perspectiva sistêmica, levando em conta não apenas o tamanho do vocabulário, mas o nível de profundidade deste conhecimento. Isto requer que olhemos para a dimensão da organização (ou seja, algo que diferencie alguém que conhece apenas uma longa lista de palavras daquele outro aprendiz cujo vocabulário é estruturado em termos de vastas redes de associação entre as palavras). Tais associações podem ser paradigmáticas, sintagmáticas, situacionais, emocionais, mas todas contribuem, de maneiras diferentes, para o significado de uma palavra. Para Meara, tais tipos de conexões são o que precisamente distingue um verdadeiro léxico mental de uma simples lista de palavras (p.48).

Estruturação, portanto, é uma palavra chave na discussão sobre léxico em L2, sugerindo assim que o grau de estruturação lexical relaciona-se diretamente com o nível de proficiência do aprendiz. Não é que todas as palavras tenham conexões umas com as outras, mas simplesmente que o padrão de conexão precisa ser rico o suficiente para permitir o estabelecimento, de forma fácil e eficaz, de conexões entre partes diferentes do léxico. Desta forma, Meara mostra que é possível descrever um léxico em duas dimensões distintas, que nos possibilita distinguir, por exemplo, entre um vocabulário grande e desestruturado e um outro pequeno, mas altamente estruturado (veja que é o nível de estruturação que determina o desempenho do aprendiz na L2, como falado anteriormente). A noção sistêmica de léxico mental proposta por Meara difere radicalmente das teorizações tradicionais. Um léxico mental não pode ser entendido como coleções de itens ou palavras específicos, mas como um sistema (rede) de conexões altamente estruturado.

De uma perspectiva conexionista, ou emergentista, Elman (2004) propõe uma visão ainda mais dinâmica e funcional acerca da natureza da representação e funcionamento de um léxico mental. Elman sugere que palavras não são coisas que contém significados fixos armazenados em nossa memória de longo prazo, como nos leva a crer o conceito tradicional de léxico mental. Para Elman, uma palavra não carrega em si um significado, mas sim “pistas” para significados que, no fundo, se resumem a configurações ou estados mentais específicos. Neste sentido, palavras equivaleriam a estímulos sensoriais que atuam em nossos estados mentais, determinando, assim, o tipo de significado instanciado. Em um sistema desta natureza o tempo é um fator crucial. O desenvolvimento do sistema (no caso, nosso léxico mental) depende da recorrência de certos padrões e seus respectivos estímulos. Desta relação, categorias são criadas e generalizações e conexões, de base probabilística, são estabelecidas.

A teorização sistêmica de Meara acima discutida aproxima-se, mesmo que timidamente, dos insights conexionistas de Elman. Tamanho e grau de conectividade são dimensões cruciais para que categorias sejam estabelecidas e significados sejam continuamente (re)criados e refinados, possibilitando, por sua vez, que interpretações novas e mais complexas sejam geradas.

Para Elman (2004), as palavras (e seus respectivos significados) são regiões de ativação específicas ao longo do “espaço mental” de uma rede. Variações espaciais implicam em mudanças/distinções de significado, sendo tais espaços preenchidos hierarquicamente de forma esquemática/prototípica. Estas variações espaciais, é importante destacar, equivalem a pesos ou restrições de base probabilística em uma rede conexionista. Dependendo do estímulo (contexto), categorias, subcategorias e níveis extremamente sutis de significado são ativados. Assim, Elman (2004:302) sugere que as “propriedades de uma palavra são reveladas pelos efeitos que estas causam em estados mentais”. Tais efeitos, por sua vez, são regulados pelo contexto, como destacado acima.

A concepção de representação proposta por Elman redefine de maneira precisa a distinção tradicional entre type e token e os variados níveis de abstração lexemáticos, como discutido em Singleton (1999:10). Como vimos acima, cada sentido de uma

palavra resulta de uma configuração mental específica. Tomemos como exemplo a palavra carro na frase “o carro passou e quebrou o carro da criança”. Estas duas ocorrências de carro, ou seja, estes dois tokens, não serão, em termos mentais, os mesmos types. Os estados mentais serão diferentes.

Como destaca Elman (2004), cada configuração mental gerada pela palavra carro ocupa um determinado espaço mental (a bounded region) reservado aos membros deste lexema. Pequenas variações dentro desta área lexemática implicam em variações sutis de significado. Cada ocorrência da palavra carro produzirá, portanto, uma determinada configuração nesta micro-região a ele dedicada. Tal variação, por sua vez, reflete alterações e “instabilidades ao longo de diferentes eixos espaciais” (p.304), correspondentes a informações sobre número, papel temático (sujeito, objeto, etc.), flexão, etc. Um único lexema instanciado em contextos diferentes produzirá significados também diferentes.

O mesmo tipo de processo acima descrito aplica-se aos mais variados tipos de categorias criadas, como verbos e substantivos por exemplo. Como as representações são esquemáticas, subcategorias são criadas.

Vejamos abaixo um exemplo corriqueiro para a categoria substantivo numa representação bidimensional padrão de duas subcategorias de elementos constitutivos (i.e., animados e inanimados), na qual a variação no tamanho das fontes indica relações hierárquicas:

[substantivos

[animados

[animais [rato, gato, cachorro] [monstro, leão,

tigre]

[humanos

[mulher, garota,], [homem, garoto]

]

] ] [inanimados

[comida

[sanduíche, biscoito, pão] ] [quebráveis [prato, copo] ]

]

]

.

A representação de uma dada categoria, como visto acima, também pode ser ilustrada em um espaço multidimensional. Neste último, os significados emergem em conseqüência de sua localização específica em uma dada região espacial, na qual

“diferentes dimensões podem ser alocadas enquanto outras são ignoradas” (p.304) dependendo do contexto. Veja a Figura 6:

Figura 6 – Visualização esquemática, em 3D, do estado espacial multidimensional gerado pela

camada oculta de uma rede conexionista do tipo SRN. O estado espacial é dividido em diferentes regiões que correspondem a categorias gramaticais e semânticas. Relações de aninhamento espacial (por ex., a categoria homem está contida na categoria animado que, por sua vez, está contida na categoria substantivo) refletem relações hierárquicas entre as categorias. In: Jeffrey L. Elman (2004), An alternative view of the mental lexicon. Trends in Cognitive

Science. Vol 8, N.7, p.304.

Observe que esta última representação permite relações mais flexíveis, de natureza

heterárquicas49, não apenas hierárquicas, ilustrando de forma mais precisa a noção de léxico como uma rede semântica altamente dinâmica.

49

Segundo Von Goldammer (2003) o termo “heterarquia” é ainda pouco conhecido. Cunhado pelo neurofisiologista e ciberneticista Warren McCulloch, o termo reflete a noção de relações sistêmicas (ou processos) que ocorrem em espaços multidimensionalmente estruturados, ou seja, um complemento à organização hierárquica tradicional totalmente compatível com fenômenos observados no desenvolvimento de redes neurais.

Resumindo, vimos, anteriormente, aspectos básicos de funcionamento de modelos conexionistas e as novas maneiras de compreendermos o desenvolvimento e a estruturação de sistemas complexos possibilitadas por estes modelos. Também vimos uma nova forma de entender como se dá a representação do conhecimento, partindo do pressuposto de que todo conhecimento é, por natureza, distribuído e emergente. Em seguida, numa rápida discussão, abordamos diferentes concepções sobre léxico mental, desde teorizações ortodoxas que concebem o léxico como um simples depósito de palavras na memória de longo prazo, passando por teorizações mais sistêmicas e dinâmicas (porém limitadas em termos explicativos) e culminando na concepção de léxico de Elman acima discutida, para o qual as palavras, em si, não possuem significados, mas servem de pistas, estímulos, para determinados padrões de ativação em espaços mentais altamente dinâmicos.

Ferreira Junior (2005) faz uma analogia entre a estruturação de um léxico mental nos moldes acima descritos e o desenvolvimento de um grupo de discussão na Internet. A discussão é uma tentativa de ilustrar como se dá a emergência de certos fenômenos ao longo do desenvolvimento de sistemas auto-estruturados.

Então, o que esta nova visão de lexico mental tem a ver com o desenvolvimento de categorias abstratas (i.e., aprendizagem da ‘gramática’) durante a aquisição de uma língua? Bom, este é o ‘nível construcional’ no qual e a partir do qual muitos acreditam que algo interessante começa a acontecer (cf. MARCHMAN & THAL, 2005; e a maioria dos outros autores citados ao longo desta tese). É neste nível que efeitos de freqüência de palavras (tanto types como tokens) exercem um papel decisivo na aquisição de categorias semânticas que possibilitam, pois, o desenvolvimento de categorias sintáticas. Esta relação entre léxico e gramática é o foco das investigações empíricas relatadas e discutidas nos capítulos 5, 6 e 7 desta tese.