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A mensagem da “salvação”

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 113-117)

A VIDA PENTECOSTAL E SUA INERENTE SOCIABILIDADE

2.2 A mensagem da “salvação”

“O crente seria então uma voz de alerta, um mensageiro, um alerta contra o destino do mundo, contra o caos do mundo.” (Miriã)

95 Não o fundamentalismo enquanto movimento histórico, mas relativo ao estabelecimento de conteúdos morais

“Então por que que eu vou no caminho largo se o caminho estreito me oferece um final feliz?” (Dorcas)

“Em Cristo está a salvação. Em Cristo está tudo de bom e fora de Cristo você está debaixo da ira de Deus, que não há nada mais terrível.” (Saulo)

Mas salvar do quê? A primeira ideia que podemos ter quando utilizamos o termo “salvação” é “perigo”. De acordo com a percepção do crente, a vida humana encontra-se em uma situação de liminaridade permanente, sendo que a situação seguinte é de extrema dificuldade e “perigo”. Não seria inapropriado afirmar que o crente, o mais ortodoxo, é bastante pessimista quanto à vida comum, não nutrindo esperanças para uma melhoria da condição humana acarretada pela ação das instituições humanas. Para ele, tudo o que o homem promove visa tão somente seu prazer e bem-estar físicos, não importando “o que virá depois da morte”, como informou a entrevistada Miriã. Neste caso, encontrando-se cego diante dos reais perigos de sua vida, o homem não consegue discernir entre o bem e o mal, preferindo atentar mais objetivamente para aquilo que lhe traz um benefício a curto prazo, o que lhe proporciona um bem, mas, na visão do crente, leva-lhe paulatinamente ao mal, dada sua incapacidade de perceber o mundo espiritual à sua volta, coisa que o crente afirma conhecer bem.

Essa visão pessimista se acentua diante de situações em que a história mostra-se bastante pragmática, quando coloca o homem em momentos de desespero e impotência. Em tais circunstâncias é que surgem as respostas dos crentes, intentando trazer aos fatos uma análise menos racional e mais “espiritual”, voltada para a alma do homem. O crente, portanto, julga-se detentor de uma sabedoria e de uma visão privilegiada que transcende esses momentos mais pragmáticos elevando-os a um patamar espiritual que, por sua vez, só pode ser compreendido estando imbuído de um referencial que tem na perspectiva mítica a sua única fonte. Por isso, sente-se autorizado a manifestar não sua opinião, mas o veredicto sobre aquela questão, haja vista correlacioná-la com outras questões vividas miticamente, tendo na bíblia a referência mais plausível.

Por isso, quando o crente se vê como um proclamador da salvação, ele não somente está ressaltando sua visão pessimista do mundo, como está também (e “principalmente”, ressaltou a entrevistada Miriã) “se preocupando com a vida das pessoas pecadoras que, do jeito que estão, estão bem próximas da condenação eterna se continuarem vivendo neste mundo do jeito que vivem”. Daí surgiria a oportunidade da salvação, quando atentam para a mensagem que é propagada pelos crentes. Esta mensagem apresenta um caráter bastante ambíguo, haja vista apontar para uma mesma fonte de salvação, mas que jorra tanto a

salvação quanto a danação eterna. De acordo com esta perspectiva, é Deus quem insta o homem a se salvar de sua (de Deus) própria condenação. Ele tem o poder tanto para salvar quanto para condenar. Os crentes, por sua vez, seriam os encarregados de apresentar ao “pecador” o melhor caminho, aquele “que conduz à salvação”, citando as palavras da entrevistada Dorcas.

O discurso do crente, embasado miticamente na bíblia, apresenta uma série de paradoxos que tendem a uma interpretação literal, como a metáfora mencionada por Dorcas. Condicionando a salvação, que seria o “final feliz”, ao “caminho estreito”, está implícita uma prática ascética e de busca de adequação a situações que limitam o prazer humano, por exemplo. Nesta argumentação, o “verdadeiro” prazer estaria na supressão das “vontades humanas” com o único fim de “agradar a Deus”. Para o crente, o ceder aos “desejos pecaminosos do mundo”, outro modo de referir-se ao “prazer humano”, constitui-se em um forte agravo à fidelidade a Deus, interferindo, portanto, na sua salvação e, consequentemente, no desencontro com o almejado “final feliz”, restando, para tanto, a “ira de Deus”, algo “terrível”, como destacou o entrevistado Saulo.

Para o crente, o seguimento pelo “caminho largo” proporciona ao homem o acesso a tudo o que o pecado traz, “disfarçado de alegria e felicidade”, como ressaltou Dorcas, mas com “um fim triste e amargo”, complementou. Essa seria a situação em que o homem comum, o “incrédulo”, vive, necessitando, portanto, de conhecer e crer nessa mensagem capaz de lhe salvar.

O ponto crítico desta análise é que, ao afirmar a posse de uma mensagem que dispõe de um conteúdo capaz de trazer salvação ante o perigo do pecado, o crente sempre interpreta esse perigo a partir da vivência do outro, ou seja, o não-crente ou incrédulo, haja vista afirmar ter garantida já a sua salvação: “os sãos não precisam de médico”, explicou a entrevistada Miriã ao justificar a responsabilidade do crente ante a pregação da mensagem da salvação. Tendo passado por todo o processo de conversão, formação e prática ritual característico da vida pentecostal, o que lhe resta é “ajudar as outras pessoas a terem um encontro com Jesus, através do evangelismo”, complementou Miriã.

Assim, a mensagem da salvação é levada aos não-crentes por meio do “evangelismo”, ou seja, do “anúncio do evangelho, que são as boas novas de salvação”, explicou o pastor Paulo. E, conforme ressaltei a ambiguidade dessa mensagem, os modos pelos quais o crente “evangeliza” compreendem desde o relato mítico da vida, obra, morte e ressurreição de Jesus, até as consequências à negação ou o não recebimento dessa mensagem. Para isso, o crente lança mão desde a própria bíblia, mencionando versículos em ocasiões de encontro com os

não-crentes, até a distribuição de prospectos ou folhetos com breves narrativas embasadas na bíblia e que questionam bem objetivamente quem os lê com perguntas como: “Onde você deseja passar a vida eterna?”, “Você tem medo do inferno?” e “Como está a sua vida?”. São questões que buscam logo impactar a mente de quem lê, de forma retórica, mas são desenvolvidas em breves textos explicativos e argumentativos intentando alcançar um resultado positivo por parte do leitor: sua conversão.

Este proselitistismo da vida pentecostal denota outro aspecto complicador à sua coexistência no mundo contemporâneo que é a falta de um componente crítico ante essa mensagem. Uma vez que o crente passa pela experiência de conversão, passa também a fazer parte de sua preocupação o anúncio do evangelho a pessoas que ainda vivem de acordo com o seu modo de vida pregresso. Por isso, sente-se responsável por levar esta mensagem a elas, julgando ser ela a única verdade a ser seguida e, em alguns casos perseguida, já que percebe uma notória dificuldade por parte do “mundo” em aceitá-la.

Estaria aqui a raiz de todos os conflitos advindos da vida pentecostal com a realidade contemporânea em que está inserida. Ao crente não basta o crer e o viver em função de sua crença. Ele deve apregoar sua experiência e interpelar os espaços onde vive a fim de que todos vivam sua mesma experiência.

Ressalte-se nesta dinâmica o peso que a tradição pentecostal, responsável pela vida do crente, carrega sobre si ante a situação final da vida humana. Nela, o crente é convencido de que “só há salvação em Jesus”, como defendeu o entrevistado Saulo, e que esta só pode ser encontrada por intermédio da igreja, o que acarreta em um novo conflito, haja vista existirem diversas denominações pentecostais que não se reconhecem filialmente, mas competem pela exclusividade da mensagem da salvação.

Resolvendo-se esta questão geradora de conflitos, a vida pentecostal ainda poderia se manter firme no propósito de continuar seguindo pelo “caminho estreito” em busca de “um final feliz”, contribuindo com a situação humana de busca de sentido. Contudo, dada a característica eminentemente institucional a que a tradição pentecostal atualmente é identificada, a atenção a uma não exclusividade constituir-se-ia em uma descaracterização teológica e histórica do ser pentecostal. Isto porque este termo está tomado, ao menos no Brasil, de um sentido interpelador do status quo comum e mesmo religioso, tendo em conta os embates que travou (e ainda trava) com representações do espaço público e de organizações sociais e/ou religiosas outras, como movimentos de igualdade de gênero e de liberação de procedimentos de saúde pública, como o aborto, e denominações do protestantismo histórico.

Deste modo, o crente revela-se não simplesmente um mensageiro que teria a responsabilidade de anunciar algo que lhe foi incumbido, mas principalmente um agente interpelador apto a promover um caos necessário a um futuro estabelecimento de um final feliz, ou seja, o crente está disposto a não somente mudar sua vida, mas transformar o mundo, ainda que a ordem desses eventos seja aleatória.

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 113-117)