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Experiência religiosa

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 68-75)

BREVE HISTÓRIA DA VIDA PENTECOSTAL

2.1 Experiência religiosa

“Aí eu tive a oportunidade de falar pra ela: – Não, um homem sem religião é uma coisa e um homem sem Deus é que não é nada. Não é a religião que salva, não é pastor, não é ninguém, é Deus.” (Estevão)

Mas a religião não é algo que se pode ver. É verdade que existem templos, cerimônias e arte religiosa. Estes podem ser vistos, mas seus significados devem ser abordados através da vida interior daqueles que usam esses símbolos51. (SMART,

1981, p. 11; tradução minha)

partir de um sistema de doutrinas, haver um despertamento para uma realidade última, ainda não vivenciada pelo crente. Isto iria de encontro ao que afirmou Rubem Alves, já citado, quando disse que as doutrinas não movem as emoções (ALVES, 1979). De fato, elas não são capazes de elevar o “espírito humano” a ponto de tocar o homem incondicionalmente, mas promovem uma “conversão temporária” capaz de dar sentido a uma realidade provisória vivenciada pelo homem.

51 “But religion is not something that one can see. It is true that there are temples, ceremonies, religious art.

These can be seen, but their significance needs to be approached through the inner life of those who use these externals.”

Ainda envolvido pela experiência da conversão, o agora “crente” busca conviver com a pluralidade de sentimentos que lhe tomam desde que se sentiu tocado pela fé. Sua primeira experiência, marcante, foi a conversão. Ela vem seguida de uma série de outras que ele ainda não consegue nomear, mas que já estão bastante presentes em sua vida. De algum modo, o crente percebe que sua vida já não é mais a mesma e que por isso precisa mudar. Mesmo não tendo ainda um conteúdo formal, nomes bem definidos e modos de expressão religiosamente adequados, uma nova perspectiva de vida se forma diante dele e o interpela a se aprofundar nela.

Um dos entrevistados, Tobias, relatou que, mesmo tendo se convertido em uma igreja evangélica pentecostal “em um domingo à noite”, passou muitos dias sem retornar até aquela igreja, também não indo a nenhuma outra. Contudo, informou que, nesse ínterim, sua percepção de julgamento acerca da sua vida (e também da de outros) havia mudado. Indaguei se ele lembrava com clareza do último culto em que havia participado, da pregação que ouviu e do apelo feito pelo pregador que foi seguido pela conversão. Como foi a primeira vez em que ele esteve em uma igreja, não tendo também contato direto com evangélicos, sua memória guardou apenas alguns flashes daquele dia e algumas frases soltas, de modo que não seriam suficientes para embasá-lo nesta sua nova cosmovisão, estando sua percepção calcada tão somente na experiência de conversão.

Com isto, temos uma primeira discussão das duas citações mencionadas no início deste subitem. Na primeira fala, o entrevistado Estevão, um nascido no evangelho que passou pela conversão tardiamente, relatava sua experiência ao tentar convencer outra pessoa que “não é a religião que salva (…), é Deus”, corroborando com a tese de que a conversão não é para uma igreja ou quaisquer outros símbolos religiosos que existam, mas para Deus, que em nossa argumentação, constitui-se no encontro com o ser-em-si-mesmo, ainda que, na compreensão do entrevistado, este encontro se dê com uma definição formal que a tradição chama de Deus. Ao mesmo tempo, a constatação de Estevão torna-se relevante, pois ele reconhece a efemeridade desses símbolos religiosos (religião institucional, pastor), forçando seu interlocutor a ir além das caracterizações popularmente conhecidas. Nisto, talvez de forma não intencional, este entrevistado demonstra saber distinguir a forma da substância, ou seja, que a essência encontrada na religião institucional não está nas doutrinas ou nos ritos ali presentes, mas no conteúdo absoluto que está além daquela apresentação, ainda que esse conteúdo esteja claramente condicionado à religião que professa, no caso a pentecostal, como o entrevistado demonstrou durante toda sua argumentação.

Reitero que o contexto da fala de Estevão manifesta que suas constatações estão embasadas tão somente na cultura evangélica pentecostal e em uma forma mais devocional dessa cultura que retira das coisas o seu poder final, atribuindo-o antes a Deus, neste caso um ser transcendente. Mas aproveitando esta construção de sentido de Estevão, podemos considerar que mesmo um encontro sem um significado concreto e formal foi capaz de nortear a cosmovisão de Tobias, confirmando a afirmação de Ninian Smart de que a religião é algo que não se pode ver (SMART, 1981), por se dar primeiramente em uma esfera ontológica, mas que atua efetivamente a partir da experiência de conversão. Em seguida, esta experiência abrirá caminhos para uma futura (mas não tão demorada) adesão a uma cultura religiosa52.

Contudo, retornando agora a Tobias, mesmo que ele caminhe munido dessa nova cosmovisão, ainda disforme e sem muita razoabilidade, ele necessitará, mais cedo ou mais tarde, de uma “casa” onde possa conviver com essas convicções e que lhe permita aprofundá- las. É que, por ser substância, este conteúdo necessita de uma forma, de um “recipiente” que consiga acondicioná-lo para que não se perca com o passar do tempo. Nisto, ao se filiar a uma comunidade de fiéis que comungam com sua mesma experiência de fé, podemos considerar que enquanto aquele recipiente estiver cheio53, Tobias manterá sua filiação religiosa à tradição que lhe permitiu viver em função de sua experiência de conversão. E aqui retomo a discussão que fiz no item anterior quanto à manutenção da sustentabilidade desta pertença religiosa, haja vista considerar que a fé, em sua dinamicidade, interpela-o constantemente a dar respostas satisfatórias quando este conteúdo vai perdendo substância.

Por isso, a vida pentecostal requer um constante envolvimento do fiel com os símbolos que dão forma à religião, haja vista serem eles que justificam (revelam) o conteúdo invisível que tocou incondicionalmente Tobias, por exemplo. Porém, por estarmos tratando de “experiência”, esses símbolos não podem ser considerados como finais, como se eles mesmos fossem o próprio conteúdo incondicional. O desafio é ver para além deles, apontando para a essência do que está oculto no símbolo, como foi ressaltado por Estevão: “Um homem sem

52 Aqui demonstro que a adesão a uma cultura religiosa é posterior à conversão do indivíduo. O que toca o

homem incondicionalmente é uma necessidade de produção de sentido para sua preocupação última que foi colocada em xeque pela dinâmica da fé. Uma vez que se encontra esse sentido, o passo seguinte é a formação de sua identidade a partir desse conteúdo incondicional. Para tanto, necessita vivenciar cada aspecto dessa formação, começando por compreender sua experiência de conversão.

53 Aqui vale uma interessante correlação entre o que os pentecostais consideram por “cheio” e nossa comparação

no texto. Para o crente pentecostal, enquanto ele estiver “‘cheio’ do Espírito”, ele estará firme “nos caminhos do Senhor”. À medida que ele se esvazia desse conteúdo, ele se afasta dos referidos caminhos. A ideia é manter-se cada dia mais “cheio” a fim de não dar espaço para ocasiões que certamente interpelarão sua experiência de conversão e, no caso, adesão a uma tradição religiosa.

religião é uma coisa e um homem sem Deus é que não é nada.”. Nisto é possível que um homem tenha religião e o conteúdo desta não esteja adequado a uma realidade última e incondicional, sendo antes provisória, por estar tomado de convicções puramente condicionadas, situadas em uma esfera objetiva e formal. Assim, ao questionar um fiel acerca de sua experiência de fé, por exemplo, é necessário avaliar não os símbolos que norteiam sua crença, mas se esses símbolos remetem a algo mais pleno e profundo (TILLICH, 1974).

Esta questão apresentada denota um cuidado de quem deseja compreender a dimensão experiencial da vida pentecostal. Da parte do fiel, de Tobias, um entrevistado, seu questionamento agora é quanto à sua vida futura, de quando for “prestar contas diante de Deus” dos seus atos em um mundo invisível, conforme as crenças do cristianismo tradicional. Para isso, ele lançará mão dos mais diversos meios (símbolos) facilitados pela tradição religiosa que agora pertence. A abordagem deve transcender esses meios, mas sem a intenção de se chegar ao conteúdo absoluto de Tobias, haja vista considerar que sua experiência se dá neste mundo, habitado pelo seu ser-em-si-mesmo54.

Com isto, a percepção de juízo de Tobias quanto às dinâmicas temporais logo após sua conversão fê-lo adotar um comportamento imediato de retraimento diante da vida até então normal que levava. Sentindo-se inicialmente culpado devido ao choque de realidade que teve por ocasião da conversão, tratou de assumir um caráter ascético visando sua “libertação” daquilo que o prendia aos seus modos antes da conversão55. Pensava que por ter se tornado crente deveria agir como tal, já que sua vida “agora tinha um novo dono”. E assim, foi rejeitando tudo o que julgava lhe “prejudicar espiritualmente”, inclusive os amigos que o acompanhavam quando ia a um bar56. Conforme informei no início, Tobias não prosseguiu com a frequência aos cultos, justificando que precisou viajar durante algumas semanas. Mas

54 Ninian Smart, comentando acerca da experiência religiosa tendo como fim uma “religião pessoal”, assim diz:

“although men may hope to have contact with, and participate in, the invisible world through ritual, personal

religion normally involves the hope of, or realization of, experience of that world” – “embora os homens possam

esperar para ter contato com o (e participar do) mundo invisível através de rituais, a religião pessoal normalmente envolve a esperança (ou a realização) da experiência daquele mundo” (SMART, 1981, p. 21; tradução minha). Assim, a abordagem deve se dar em função daquilo que é experimentado existencialmente, não sendo tocado o conteúdo produzido pelo fiel que crê no transcendente, em um mundo invisível.

55 Tobias relatou que tinha o hábito de “fumar e beber” desde os quinze anos (por ocasião da entrevista ele tinha

trinta e cinco, tendo se convertido aos vinte e nove). Segue seu relato: “Assim que eu me converti, logo que acabou o culto coloquei a mão no bolso e retirei a carteira de cigarros na intenção de fumar. Na mesma hora veio um sentimento de rejeição o que me fez pensar se deveria ou não continuar. Eu então fumei o cigarro e fui pra casa. (…) No outro dia, repetiu-se a mesma vontade, mas aí eu já não fumei mais e comecei a abusar até o cheiro. Fiquei liberto! Até hoje nunca mais fumei. Ninguém mandou que eu parasse de fumar, até porque ninguém sabia. Eu mesmo senti que não podia mais fazer aquilo. (…) Com a bebida foi a mesma coisa.”.

56 Corroborando com a decisão de Tobias em rejeitar aspectos de sua vida pregressa, o entrevistado Onésimo

assim afirmou: “Realmente tem que ter uma restrição, uma renúncia. Andar com Deus tem que ser realmente assim, dessa maneira”.

mesmo neste período disse ter se mantido longe do cigarro e da bebida, tendo como princípio a experiência que tivera recentemente.

Ao retornar da viagem, voltou àquela igreja onde havia se convertido e se efetivou como “congregado”57. Disse ter compartilhado sua experiência de libertação do cigarro e da

bebida na forma de testemunho em um culto. Na ocasião, ele recordou que ainda não sabia se expressar corretamente, ou seja, ainda não dominava a oralidade comum aos crentes, mas que seu testemunho foi bem recebido pela comunidade. Informou ainda que sua “libertação” do fumo e da bebida efetivou-se ao longo dos dias, quando ele afirmou ter se desfeito dos “litros” que tinha em casa e não mais comprado cigarro. “Agora”, ele disse, “sempre que eu tenho vontade de fazer aquelas coisas, eu dobro meus joelhos e oro. Se eu não puder me ajoelhar, eu oro em espírito. E aí a vontade vai embora.”. Outra atitude mencionada por Tobias que disse ajudar nessa libertação foi a prática do “jejum”. Isto, segundo ele, ajudou ainda mais a se “desligar dos prazeres humanos e se ligar nos prazeres de Deus”. Indaguei, então, se o que o deixava feliz agora era não mais fumar e beber. Ele disse que sim, mas também o fato de não ser mais um “pecador”.

Nisto retomo a questão dos símbolos para a devida compreensão da experiência de conversão. Que a religião tem um componente social, objetivo e prático, o testemunho de Tobias corrobora com isso58. Contudo, e aqui retomando também a fala do entrevistado Estevão, o fim da religião não seria somente a mudança social, ou mesmo ritual, antecipando um pouco o item que virá a seguir. Isto seria considerar simplesmente os símbolos como fins em si mesmos. Nisto, não só a religião institucionalizada acarretaria em uma transformação social positiva, mas qualquer outra instituição que lide com o vício e a violência, por exemplo. O componente que chama atenção é o conteúdo incondicional que motivou essa possível mudança social e, principalmente, deu um novo seguimento à vida de Tobias, neste caso, não só “libertando-o dos vícios”, mas formando uma nova percepção de mundo. Estevão sistematizou isto chamando a simples libertação de “religião” e o princípio motivador dessa libertação de “Deus”. A religião pode realizar essa ação social positiva, mas não pode limitar- se somente a ela em detrimento da dinâmica da fé que interpela o homo religiosus a ir além das intervenções culturais, devendo também acessar o conteúdo incondicional das pessoas.

57 A filiação a uma igreja evangélica se dá por meio do batismo nas águas. Passando por esse ritual, a pessoa se

torna “membro” da igreja. Enquanto isso não acontece, ele é considerado “congregado”, podendo participar efetivamente de quase todas as reuniões. Nas que requerem o compromisso do batismo nas águas, como a Santa Ceia, ele apenas observa. A seguir, no capítulo 2, tratarei mais objetivamente sobre os rituais dos cultos pentecostais.

58 Alguns entrevistados, principalmente homens, relataram que antes de se converterem eram agressivos com

seus cônjuges, chegando algumas vezes à violência física. Após a conversão, disseram não mais ter cometido esses atos.

Assim, Tobias não se transformou somente em um ex-fumante, mas em alguém dotado de um espírito questionador do status quo que o rodeava, capacitando-o a ver coisas antes ocultas, mas, conforme sua nova percepção, muito verdadeiras e perigosas, como o pecado que rodeava a si e ainda rodeia as pessoas à sua volta.

Continuando o diálogo com Tobias e considerando esta sua experiência ainda muito primária, indaguei acerca dos momentos seguintes àquela experiência de testemunho e ao despertamento para esta nova visão de mundo. Sua percepção de juízo logo lhe acusou, pois começou relatando que “fazia muita criancice”. Devido aos constantes jejuns acompanhados de orações em reuniões específicas da igreja realizadas no próprio templo e “no monte”, ele disse ter praticado “coisas hoje talvez não fizesse mais”. A conversa fê-lo recordar de “momentos quentes59” que, quando “tomado pelo Espírito Santo”, saía completamente de si e

realizava movimentos que se estivesse em sã consciência não conseguiria60. Tratava-se de estados de êxtases61 incontroláveis que, segundo Tobias, eram provenientes da preparação física e psicológica que ele realizava com as orações e jejuns (às vezes passava até três dias em “consagração62”). E, mesmo depois dessa preparação, muitos dias depois, ele ainda se

sentia impulsionado a tais práticas. Isto se repetiu por pelo menos três anos após sua conversão.

Contudo, esse “furor” foi esmaecendo quando Tobias passou a refletir mais sobre a religião que ora praticava. A princípio teve certa desconfiança acerca de conteúdos que lia e

59 Nas visitas que fiz em algumas igrejas pentecostais, havia momentos em que o culto parecia se transformar,

pois se deixava a liturgia comum de lado e se iniciava um momento de pura emoção com pessoas falando em línguas estranhas, outras glorificando freneticamente, muitas chorando e algumas dançando e girando. Esses momentos eram geralmente precedidos por músicas (“corinhos”) mais ritmados e com letras pouco elaboradas, parecendo importar mais o ritmo e a entonação vocal de quem cantava. Não demorava muito para que aquelas poucas pessoas que dançavam e giravam fossem acompanhadas por outra leva de pessoas, sendo estimuladas inclusive pelo dirigente do culto que ou falava ao microfone ou também se unia às performances. Algumas vezes isso durava pouco, o tempo de execução de uma música. Mas, quando ocorria durante a pregação, tendia a se prolongar por mais de uma hora, enquanto fosse motivado pelo dirigente ou pregador. Quando havia vigílias, ou seja, reuniões que duravam toda a noite e a madrugada, essa dinâmica era muito valorizada.

60 Foi nessa mesma experiência que Tobias disse ter falado em línguas pela primeira vez, tendo então recebido o

“batismo com o Espírito Santo” (ver nota 64).

61 Roger Bastide, em O sagrado selvagem e outros ensaios, discute esses “momentos quentes” dos cultos

pentecostais a partir da noção de “sagrado selvagem” que seria um momento único na vida do homem onde sua dimensão mística teria total liberdade, sem nenhuma influência humana. Isso geraria estados de êxtase que confirmariam em atitudes como a descrita na nota anterior. Citando Rousseau, Bastide assim escreve que “nem todas as paisagens são passíveis de encaminhar o espírito para a via mística. É necessário ‘algum lugar selvagem’, algum recanto afastado onde nada revele a mão dos homens” (BASTIDE, 2006, p. 18). E ainda, referindo-se aos momentos de êxtase entre os cristãos, ele demonstra a necessidade do ascetismo para o estabelecimento do êxtase: “esse estado [de êxtase] é o fruto, a recompensa, de um longo esforço ascético. Só surge ao cabo de uma vida de virtudes, em decorrência de um combate contra a natureza sensível; em suma, um esforço moral prévio é necessário para penetrar nessa senda de volúpia serena e relaxante.”. (BASTIDE, 2006, p. 21)

62 Trata-se de um período de devoção mais intensa. Normalmente é acompanhado por um período de jejum,

ouvia que o faziam pensar sobre seu modo de ser crente. Ele disse que esses conteúdos o fizeram compreender melhor a bíblia, algo que não fazia antes já que “não buscava entender, apenas sentir”. Assim, aquela atitude “selvagem” do início cedeu lugar para experiências mais “domesticadas”, controladas doutrinariamente.

Neste momento, Tobias passou também a julgar aqueles momentos como fruto até de uma “emoção fora de controle” que ele entendia ser proporcionada pela “temperatura do culto” e que ele não estava totalmente fora de si, já que podia ver e sentir as coisas ao seu redor. Apesar desse “esfriamento”, Tobias continuou frequentando a mesma igreja e colaborando com ela63, mas já não participava dos “momentos quentes” como antes. Ficava por fora, apenas olhando ou, segundo ele, “orando em espírito e glorificando baixinho, às vezes falando em línguas64”.

Esta nova experiência de Tobias terá sido fruto novamente da dinâmica da fé que o interpelou a desnaturalizar o modo com que vivenciava sua religiosidade, reconvertendo-o a uma nova cosmovisão. Entre seus pares, essa mudança de percepção é chamada de “falta de fé”, haja vista questionar os modos rotineiros em que a experiência acontece. De fato, o conceito de fé do crente, neste caso, foi mais aprofundado tendo em vista o questionamento que a própria fé acarretou e, por ser uma abordagem distinta da anterior, essa dinâmica é logo assemelhada à ausência de fé.

A rotinização dessa experiência foi que facilitou esta discussão, já que, do ponto de vista do fiel, ele atribui a experiência a uma esfera absoluta, ao “poder e atuação do Espírito Santo”; já do ponto de vista da igreja, conforme a constatação de Tobias e pormenorizada em sua entrevista, essa experiência é agora administrada a fim de “manter uma identidade pentecostal”. A crítica que Tobias faz é que ela deve ser única e, portanto, fruto do “sagrado selvagem” em sua primeira vez. Sua frequência constitui-se apenas em uma “repetição humana” da experiência, não tendo nada mais de “selvagem”, mas sim de “domesticado”, utilizando os termos de Roger Bastide65.

63 É quase uma condição sine qua non a contrapartida do fiel pentecostal na colaboração com os serviços de sua

igreja. O pentecostal é sempre alguém engajado em alguma atividade eclesial. Tobias, para não fugir à regra, era professor da escola dominical.

64 O falar em línguas, ou o “batismo com o Espírito Santo”, conforme a doutrina pentecostal, é a capacitação

sobrenatural do crente para expressar-se em um idioma desconhecido aos humanos, mas comum à esfera espiritual em que vivem. Tratarei mais pormenorizadamente deste assunto quando falar da dimensão doutrinária

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 68-75)