• Nenhum resultado encontrado

Convertido experiente

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 49-54)

BREVE HISTÓRIA DA VIDA PENTECOSTAL

1.2 Convertido experiente

“Somente Deus sabe se nossa conversão é verdadeira ou não. Podemos enganar o homem, a nós mesmos, mas nunca a Deus.” (Judas)

“Sabia que só em Deus poderia achar a solução dos meus problemas.” (Naamã) “Conversão é quando a pessoa entra em um processo de mudança de direção, se afastando do pecado, indo sempre de encontro a uma maior e constante aproximação e comunhão com Deus.” (Rebeca)

“E eu fiz uma oração na mente e aquilo se desprendeu de mim. Nisso eu experimentei um alívio, uma forma de uma paz interior, e eu comecei a detestar a vida que eu levava, e eu comecei a pedir perdão e pedia a Jesus uma nova vida. Ali eu nasci de novo.” (Saulo)

[O homem] se converte porque a cosmovisão que lhe é apresentada pela religião a que ele irá se converter responde, de alguma forma, à sua experiência de falta de sentido. (ALVES, 1979, p. 60)

A segunda classificação que considerei a partir da experiência de conversão dos entrevistados foi a de “convertidos experientes”. Trata-se de uma especificidade entre os pentecostais que abrange pessoas que não “nasceram no evangelho”, mas converteram-se em algum momento de sua vida adulta e, desde então, tornaram-se membros maduros de uma igreja pentecostal. São pessoas que viveram boa parte de suas vidas em função de outras culturas religiosas, mas que se tornaram “crentes” quando sua fé despertou o homo religiosus para outras estruturas de sentido mais constitutivas, agora representadas pela vida pentecostal. Trata-se de uma experiência muito semelhante à discutida anteriormente (“nascido no evangelho”), sendo que nesta os conteúdos preliminares institucionalmente religiosos, relacionados à vida pentecostal e capazes de condicionar a conversão, como no caso de Hofni, não estão explícitos, sendo mesmo desconhecidos. Esta experiência, portanto seria fruto de uma atitude despretensiosa ou algumas vezes planejada de busca de filiação a uma tradição religiosa que se apresenta como possuidora de um conteúdo suficientemente capaz de suplantar os anteriores, já possivelmente desgastados devido às próprias dinâmicas da experiência humana de busca de sentido.

Logo na primeira afirmação, a do entrevistado Judas, temos uma característica peculiar a este grupo: por haverem vivenciado práticas culturais absolutamente diversas à da que estão atualmente, ainda permanece um senso de desconfiança para com sua conversão. Talvez por não terem os conteúdos e a vivência do grupo anterior (os “nascidos no evangelho”), ainda sentem-se culpados pela vida pregressa que tinham, não se sentindo confortáveis o bastante com esta nova vida. E isto é devido ao impacto cultural que tiveram ao se converterem. De fato, a conversão acarreta esse período de crise, representado por uma relação de amor e ódio entre “o que eu era” e “o que agora eu sou”.

Dado que a conversão é o encontro entre o homem com ele mesmo, ou seja, com sua dimensão mais intrínseca e constitutiva (“o estar em paz consigo mesmo”, conforme falou um entrevistado), por vezes, aquelas experiências pregressas inibem a boa manutenção desta nova experiência de sentido, permitindo que esta “paz” seja vez ou outra interrompida. Isto vem a ser fruto da própria dinâmica da fé que recorrentemente cobra do “espírito humano” posicionamentos cada vez mais firmes, testando a consistência do conteúdo ora vivenciado de modo incondicional. E por ser algo de fato delicado, colocado nas mãos do próprio homem, ele adota mecanismos de transferência de responsabilidade, assumindo a existência de um terceiro ser que ajuizará sua conduta. Estaria aí a explicação para o que disse o entrevistado Judas acerca da consistência de sua conversão: “Podemos enganar o homem, a nós mesmos, mas nunca a Deus”. Neste caso, esse terceiro ser seria o “totalmente outro”, nos termos de Rudolf Otto (OTTO, 2007, p. 56), mas que estaria presente na substância religiosa do próprio homem, sendo afinal ele mesmo, estando imbuído de um profundo senso crítico sobre si (TILLICH, 1987).

De fato, a religião institucional resolve facilmente esta questão pautando-se pela existência indiscutível de Deus em uma esfera sobrenatural e que gere todas as coisas neste mundo temporal a partir de seu poder, conforme a cosmovisão em análise. Assim, mesmo não usufruindo de um conteúdo religioso mais elaborado, como o do grupo dos “nascidos no evangelho”, estes “convertidos experientes” cresceram sob a égide de uma cultura religiosa, inerente ao mundo ocidental que, apesar das interpretações dogmáticas conflitantes, via em Deus a solução para seus problemas mais diversos e impossíveis. Para tanto, era necessário voltar-se para ele, ou seja, “converter-se”, utilizando o caminho mais razoável e satisfatório à sua preocupação última. Com isto, dá-se uma caça a Deus em ambientes onde sua “presença” é mais evidente, a igreja, e aqui mais especificamente, a pentecostal.

O entrevistado Naamã peregrinou por este caminho quando se viu afetado por sua preocupação última (a “solução dos meus problemas”). O contexto da conversa que tivemos mostrou que sua conversão foi precedida por uma situação de crise financeira e alcoolismo. Ele mesmo ressaltou que se “converteu pela dor e não pelo amor”, intentando explicar que precisou passar por dificuldades para que pudesse reconhecer sua necessidade de “abrir o coração para Jesus”. Assim, dadas as condições adversas e frágeis em que vivia, resultantes da inconsistência de suas estruturas de sentido, Naamã “aceitou a Jesus” e testemunhou, na

entrevista, a mudança de perspectiva que passou a ter, fruto do novo conteúdo apreendido pela experiência de conversão à religião pentecostal25.

Os passos seguintes à conversão de Naamã começaram pela negação à forma de vida que tinha antes. Descobriu que a crise financeira era fruto da má gestão do seu dinheiro, já que “só gastava com prazeres mundanos”, conforme ressaltou. Tendo agora um administrador não só de suas contas, mas de sua vida, e que foi encontrado naquela busca por um sentido último para sua existência, passou a prestar contas frequentemente com ele, indagando-o sempre acerca de como deveria proceder. Naturalmente ele passou a reescrever sua história de vida, tendo como embasamento aquela experiência de conversão.

O caso de Naamã foi bem resumido na afirmação da entrevistada Rebeca. Ela mesma, uma buscadora de sentido para sua preocupação última26, disse ter experimentado fisicamente os efeitos dos inúmeros desencontros durante sua busca. Relatou que seu corpo começou a dar sinais de doenças que não eram diagnosticadas pelos médicos, tendo sido recomendada a outros profissionais, já que o único diagnóstico que tinha era “problemas psicológicos”. Ainda durante sua fala, ela disse que sentia “uma aflição que não tinha fim, chorava horrores (sic) e não tinha paz”. Observe novamente a busca pela “paz”, já mencionada anteriormente. Esta situação parece acompanhar todas as pessoas que estão sensibilizadas devido à perda de um centro, de um conteúdo norteador. A fé, responsável por esta busca, interpela o homem a que se volte para um centro, para algo que o defina e que o motive. Um estado descentralizado, confuso, descaracteriza o homem enquanto ser humano. Desse estado, sem uma motivação intrínseca, o homem apenas se aproxima, não podendo nunca estar plenamente nele (TILLICH, 1974). Por isso segue em busca de sentido. E quando o encontra, converte-se.

Neste caso, a busca de Rebeca teve fim quando ela, nos termos que utilizo neste trabalho, encontrou-se com um conteúdo suficiente e capaz de lhe motivar a tornar os demais conteúdos menos significativos. Sua experiência de conversão teria começado quando ela passou a ler a bíblia. Estimulada que foi quando frequentava reuniões religiosas, disse ter lembrado de um livro que era comum a algumas daquelas tradições e que poderia ajudá-la a superar aquela situação. Estando convencida de que havia encontrado o caminho, decidiu segui-lo até encontrar-se com uma igreja protestante histórica renovada. Desde então, disse ter

25 Naamã ainda lembrou em sua fala que via os pentecostais como um “povo doido que só gritava”. Esta

adjetivação servirá de embasamento quando for analisar os aspectos característicos do pentecostal em seu ambiente de culto. Contudo, voltando a Naamã, ele mesmo afirmou que virou um desses pentecostais “doidos”.

26 Rebeca disse ter frequentado religiões de matrizes africanas, o espiritismo e outras de origem oriental. Em sua

caminhada também esteve em alguns cultos evangélicos, mas disse não ter encontrado em nenhum desses lugares o que procurava.

superado toda aquela crise conflitiva e passou a aprofundar-se no “conhecimento de Deus”, como explicou.

O último entrevistado deste grupo de “convertidos experientes” eu chamei de Saulo. Novamente, a escolha do pseudônimo foi proposital. Conforme a tradição cristã, Saulo era um perseguidor dos cristãos, mas que parecia lutar contra um desejo contido de identificação com esses mesmos cristãos. Isto foi revelado durante sua conversão, narrada na bíblia, quando ele cai de um cavalo, vê um clarão que o deixa temporariamente cego e ouve uma voz que dizia: “Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões” (Atos dos Apóstolos, capítulo 9, versículo 5). O que se depreende desta narrativa, e seguindo a argumentação deste trabalho, é que Saulo não aceitava que aquelas suas estruturas de sentido já não davam mais conta de sustentar sua fé, devendo atentar para a nova situação em sua volta. Desde então, Saulo deixou de perseguir os cristãos e passou a ser um deles, conforme o contexto da narrativa bíblica mencionada.

O Saulo que entrevistei não foi perseguidor dos crentes, mas relutou bastante para converter-se a esta “lei27”. Ele poderia estar na categoria dos “nascidos no evangelho”, pois sua mãe converteu-se quando ele ainda era criança e o “forçava”, como qualificou, a frequentar os cultos juntamente com ela. Contudo, não demorou para que deixasse de segui-la e passasse a viver conforme sua própria lei. Disse ter se envolvido completamente com as drogas e experimentado tudo o que elas proporcionavam. Algumas vezes, quando se sentia “carregado”, termo que utilizou para referir-se a uma situação de desespero e tristeza (sintomas da crise de sentido), frequentava a igreja de sua mãe e lá “aceitava a Jesus”. Mas logo retornava à primeira situação.

No auge da sua crise, quando se viu em uma situação de profundo conflito existencial, estando bem perto daquela perda de centro, relatou que teve alucinações muito próximas à sua realidade concreta28. Foi aí que reconheceu que aquelas estruturas de sentido não suportavam mais sua ânsia por algo mais firme e que precisava tomar uma decisão norteadora. O excerto de sua fala citado no início deste texto demonstra a decisão tomada: “E eu fiz uma oração na mente e aquilo se desprendeu de mim.”. Ainda que conflitante, ele experimentou uma

27 Um dos sinônimos que encontrei durante a entrevista para o termo “conversão ao evangelho” foi “entrar para a

lei dos crentes”. A frase é rica em sentido, pois a conversão está diretamente associada ao seguimento obrigatório de regras (doutrinas) pelo novo convertido. Tais “leis” começam pela mudança estética, sendo seguidas pelo abandono de velhas práticas (álcool, cigarro, festas...) e a adoção de novas, como a frequência aos cultos e reuniões promovidas pela igreja em que se converteu. Comentarei mais detalhadamente sobre os ritos pentecostais a seguir, no capítulo 2.

28 O relato de Saulo na entrevista foi que ele teve uma sensação muito real que o fez “cair a ficha”, conforme a

mesma dinâmica do entrevistado Hofni. Segue sua fala: “Quando eu acordei, que eu fui tomar banho para ir para o baile, começou a me faltar respiração. Eu não via, mas alguém estava me sufocando. E eu quis chamar pela minha mãe e eu não consegui.”.

sensação de alívio, de “paz interior”, conforme informou, gerando também uma situação paradoxal, já que passou a “detestar a vida que levava”.

Os passos seguintes de Saulo, como informou, foram rumo a um local onde pudesse compartilhar daquela experiência. Foi em uma igreja pentecostal que ele, ao ouvir a pregação do pastor, pensou estar ouvindo algo somente para si: “Parecia que ele [pastor] falava minha da vida, falava dos meus problemas, das soluções…”. Envolvido por aquela experiência de preenchimento que o deixou aliviado e em paz, disse ter sido novamente tocado a partir das palavras daquele pregador. Compungido que estava, aquelas palavras vieram tão somente esclarecer-lhe da situação em que se encontrava e da necessidade de reiterar sua tomada de decisão29. A linguagem mítica do pregador parece ter encontrado espaço em meio aos conteúdos existenciais de Saulo, já bastante motivados pela dinâmica da fé. Aquela linguagem não provocou a crise, mas promoveu a interpelação necessária para que ele se sentisse vazio existencialmente, fazendo-o reconhecer que precisava responder positivamente ao conteúdo da pregação.

A constatação de que algo novo se deu na vida de Saulo foi feita a partir da sua declaração: “ali eu nasci de novo”. Foi esta a resposta à primeira experiência conflitante, interpeladora, que lhe levou a buscar um conteúdo suficiente para sua preocupação última. Foi ela também a resposta para o encontro com o conteúdo mítico proporcionado pelo pregador. Aqui vale a ressalva de que pouco importou a literalidade do discurso oral do pregador. A provável coincidência de sua fala com a situação vivida por Saulo terá sido fruto da sua experiência mítica que foi sendo automaticamente correlacionada durante a pregação. Algo que merece um destaque nesta abordagem é a frase cheia de sentido de Saulo, “ali eu nasci de novo”, e que pautará a discussão do próximo item.

Diante dos expressivos relatos de conversão obtidos, há que se atentar para a radicalidade das experiências relatadas, tendo em vista que elas devem ser compreendidas a partir de uma linguagem característica da vida pentecostal que formou este fiel que ora testemunha de sua conversão. Assim, mesmo associando à experiência fatos que denotam situações que implicam em violência e angústia, literalmente, existe um componente inerente à religião pentecostal que é o de valorização de tensões a fim de requerer delas experiências exemplares. Ao final, relatos de conversão são utilizados para motivar outros a seguir a

29 Rubem Alves, em Protestantismo e repressão, assim fala acerca da pregação: “Compreende-se que uma das

funções primordiais da pregação seja provocar a emergência, nos níveis conscientes, da crise ontológica inconsciente, reprimida, que a antecedia. A pregação não provoca a crise. Apenas a revela. Trata-se de um processo maiêutico que força a crise a sair do seu esconderijo. É necessário arrancar, de sob a face aparentemente tranquila e calma do homem, o desespero que habita o seu ser.” (ALVES, 1979, p. 65).

mesma decisão, sendo necessário, portanto, um uso simbólico que pretende atuar mais emocionalmente a fim de convencer e conquistar outras pessoas.

Neste sentido, fica implícito na elaboração desses “testemunhos de conversão” o uso arbitrário de modos e expressões que objetivam causar uma experiência singular, contudo, representam construções posteriores de uma experiência que teve seu valor constitutivo, daí a mudança de perspectiva religiosa, mas que foi sendo melhor interpretada e formulada ao longo da vivência dentro da tradição que a proporcionou, notadamente a pentecostal.

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 49-54)