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A transformação do mundo (o céu não é o bastante)

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 117-122)

A VIDA PENTECOSTAL E SUA INERENTE SOCIABILIDADE

2.3 A transformação do mundo (o céu não é o bastante)

“Nos dias de hoje nós nunca vimos na história uma crise moral como essa que nós estamos vivendo. E isto nós só conseguimos ver quando o próprio Deus abre os nossos olhos.” (Mateus)

“Precisamos pregar a mensagem do evangelho, que é o poder de Deus para a salvação do perdido (…) deste mundo tenebroso em que vivemos.” (Timóteo) “O inimigo é o mundo.” (Talita)

“Deus quer nos dar uma vida com abundância não só na eternidade, mas aqui na terra também.” (Hofni)

O “esfriamento” da expectativa pela parusia também tem contribuído para essa mudança de ênfase escatológica no pentecostalismo. Por tardar o cumprimento da promessa de que Jesus Cristo “brevemente” viria, os pentecostais tiveram que se adequar ao modus vivendi do mundo secularizado, aderindo a um “espírito capitalista” e consumista, marcado, sobretudo pela ostentação e consequente valorização do que antes era desprezado. (FERREIRA, 2014, p. 126)

O crente, impregnado que está por uma mensagem que acredita ser a única plausível para a salvação do mundo, vê brotar dentro de si, após as construções subjetivas e objetivas da religião, uma necessidade de julgar e agir em prol do estabelecimento de uma realidade melhor, idealizada e facilitada pela religião institucional que lhe forjou a consciência e que lhe interpela de modo profundo, sendo que essa realidade precisa ser efetivável já neste mundo contemporâneo.

A crítica a este mundo sempre fez parte do discurso teológico da vida pentecostal, algo herdado diretamente da noção de “peregrino” e “estrangeiro”, apregoada pelo protestantismo histórico, que ressaltava sua negação ao mundo presente e o anseio pelo “celeste porvir” (MENDONÇA, 1995). Esta crítica era (e ainda é, eventualmente) percebida a partir das músicas cantadas, na fala dos pregadores e no discurso do fiel, notadamente alguns que foram entrevistados para este trabalho. Persiste nessas construções teológicas o “desprezo a este mundo e o anseio pelo que há de vir”, como reiterou o pastor Paulo que, dentre os informantes, foi o único pastor, juntamente com outro fiel, a ressaltar e defender esta perspectiva clássica. Os demais mencionaram esta compreensão mítica, mas foram mesmo pragmáticos quanto à sua situação neste mundo.

O parâmetro que utilizo para esta comparação foi tomado da análise que empreendi em um trabalho anterior, quando estudei a perspectiva escatológica das Assembleias de Deus. Naquela ocasião, discuti, a partir de pregações e dos códigos doutrinários desta denominação pentecostal, o modo como os pentecostais eram instados a conviver mais pragmática e imediatamente no mundo que outrora lhes era indiferente (FERREIRA, 2014). Agora, busco compreender como isso é vivenciado e defendido pelo próprio crente e, novamente, como implica na sua visão de mundo.

De acordo com os depoimentos colhidos nas entrevistas, ainda permanece aquela compreensão negativa do mundo contemporâneo. A diferença é que antes, o crente queria apontar os pretensos erros constatados neste mundo e apresentar um caminho de salvação absoluta; Agora, ele continua julgando negativamente o mundo, mas buscando sua melhoria a partir de uma salvação relativa. E para isto, tende a empregar os mesmos meios que outrora condenava, agindo ambiguamente.

Esta dinâmica pode ser compreendida a partir do que venho desenvolvendo neste trabalho quando a fé, responsável pela ação do crente, é instada a se manter suficiente e estruturante diante de novos desafios que tendem a lhe enfraquecer. Neste caso, a fé que motiva o crente lhe impele a dar uma resposta mais objetiva e pragmática à sua situação no mundo, e não somente constatar um problema e apontar uma solução transcendente. Assim, por mais que as dinâmicas atuais da sociedade “escandalizem” o crente, mais ele se sente responsável pela transformação do mundo, relativizando um ideal histórico e teológico bastante caro à vida pentecostal, como a plena redenção do crente no céu, a partir da perspectiva messiânica da volta iminente de Jesus, a parusia.

Assim, os ideais míticos alimentados pela teologia dogmática pentecostal promovem, além da esperança na eternidade, uma realização temporal de modos e ações pautada em concepções que são bem compreendidas no âmbito ideal da igreja, e esta pentecostal, mas encontram-se cada vez mais distantes de um sentido na realidade comum que requer para si o benefício da pluralidade e diversidade, termos nada adequados à realidade da vida pentecostal, a não ser quando utilizados para referir-se a “manifestação do espírito”, como explicou o pastor Apolo, dentro deste âmbito.

Mas, apesar desse desencontro, a vida pentecostal insiste em analisar, constatar e corrigir os “erros”, considerando sua cosmovisão, a partir de sua percepção visual do mundo comum. O crente dispõe de uma lente que o habilita a “ver o que os outros não veem”, como afirmou o entrevistado Mateus. Trata-se de uma lente crítica que julga absolutamente “tudo” o que está à sua volta. Ajustada pela percepção mítica do crente que está embasada

principalmente nas construções doutrinárias advindas da sua experiência religiosa com a tradição pentecostal, ela procura dar conta de todo o processo histórico de forma exclusiva, mas não só analisando-o e constatando possíveis falhas, como mencionei antes. Requer-se do crente que teve contato com este conteúdo que forjou sua preocupação última uma atuação direta e objetiva nas falhas que constatou.

Dentro desta perspectiva, o crente se apresenta como alguém que julga ter “uma visão melhor do mundo”, pois acredita vê-lo de forma mais panorâmica e atemporal, haja vista crer que quem lhe dá esta visão é “o próprio Deus que abre os nossos olhos”, ainda de acordo com o entrevistado Mateus. Trata-se, portanto, de uma experiência religiosa, algo que se dá em uma ordem não factível, mas perceptível quando se compreendem as formas que a representam imediatamente. Uma delas, e a mais digna de consideração pelo crente, é a bíblia, resumida na “mensagem do evangelho”, notadamente as partes desta narrativa que compreendem a vida de Jesus. É o contato com esses escritos que, interpretados à luz da situação presente, promove as ações mais interpelativas e, algumas vezes, violentas do crente com o mundo, ou, da tentativa de transformação do mundo pelo crente. É a partir disso que a noção de salvação, discutida no item anterior, faz todo o sentido na vida pentecostal.

A força interpeladora dessa experiência pode ser verificável no modo como o entrevistado Timóteo reagiu à minha pergunta sobre a responsabilidade social do crente, elaborando a segunda afirmação que epigrafa este item96. O modo imperativo de sua afirmação denota não um simples compromisso social, mas uma preocupação com o “perdido”, ou seja, aquele que ainda se encontra sem salvação neste “mundo tenebroso”. Timóteo, nesta argumentação, parte do pressuposto de que sua situação é mais tranquila do que a do perdido, tendo em vista já ter “aceitado a Jesus”. Contudo, ainda precisa pregar essa mensagem a outras pessoas para que elas, assim como ele, usufruam da salvação de suas vidas. Tal ação constitui-se em um importante fator de sua vida pentecostal, já que faz parte também de sua experiência de conversão uma crítica à sua responsabilidade pela conversão de outras pessoas.

A abordagem do crente nesta dinâmica parte logo do estabelecimento de um inimigo para combater e vencer: “O inimigo é o mundo”, reiterando a fala da entrevistada Talita. Neste sentido, é o mundo contemporâneo, eivado de influências pecaminosas promovidas não pelo próprio homem, mas por uma entidade transcendente, o Diabo, que precisa ser combatido e vencido. Essa guerra, que poderia ser travada de maneira “espiritual”, retomando

96 “Precisamos pregar a mensagem do evangelho, que é o poder de Deus para a salvação do perdido (…) deste

uma perspectiva clássica da escatologia pentecostal, onde a luta se dá entre “potestades espirituais” (FERREIRA, 2014), aqui é vista mais pragmaticamente, já que assume contornos culturais hodiernos já bem delineados tidos como a real atuação do Diabo. Assim, o crente passa a lutar “contra a carne e o sangue” (para citar a narrativa bíblica), julgando com isto estar combatendo o inimigo, que aqui já implica tanto no Diabo como no mundo, atualizando a interpretação bíblica que dava conta dessa perspectiva mítica (Efésios capítulo 6, versículo 1297).

E assim, a partir dessa melhor visão de mundo, o crente acha-se imbuído do papel de não só “despertar o descrente para a realidade do pecado”, mas “convencê-lo de que precisa abandonar este mundo e servir a Deus”, como afirmou a entrevistada Talita. Nisto estão previstas ações de convencimento dessa realidade visível ao crente que vão desde o “evangelismo pessoal”, quando se explica o “plano de Deus para a salvação do homem”, de acordo com o pastor Paulo, até a pregação nas igrejas e outros locais de maior projeção, o chamado “evangelismo de massa”, tendo aí a mídia como auxiliadora nesse processo. Em ambas as atuações, e nas demais práticas que estão entre elas, a abordagem é facilitada pela percepção mítica da realidade, construída a partir do sistema de crenças que caracteriza a vida pentecostal.

A questão que levanto agora de forma mais ampla, mas que será discutida mais criticamente no próximo capítulo, é a respeito de como a cosmovisão pentecostal, ao incluir uma atuação mais incisiva e bastante interpelativa à realidade contemporânea, altera consideravelmente seus modos de produção de sentido, retirando de uma realidade sobrenatural e absoluta seu aspecto final e impregnando-a de formas e modos comuns passíveis de uma efemeridade característica de um discurso temporal e não “divino”, em outras palavras, para recordar os termos de Mircea Eliade, sacralizando o “profano” e profanando o “sagrado” (ELIADE, 2010).

Esta problemática torna-se visível quando, ao atentar para as construções discursivas dos crentes aqui pesquisados, percebo o quanto sua preocupação com a situação do mundo afetou sua preocupação consigo. O entrevistado Hofni foi significativo para esta constatação ao ressaltar, no contexto de sua fala citada no início98, que cabe também ao crente buscar uma

melhor forma de viver neste mundo, “já que nós cremos que Deus opera tanto no espiritual quanto no material”, reiterou. Neste sentido, estaria disponível ao crente não só a posse de

97 “Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades,

contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.”

uma revelação para um mundo espiritual e absoluto, mas a de uma melhor forma de “vida abundante” neste mundo temporal, estando implícita nesta vida uma ressignificação daquela transformação do mundo, ou seja, os benefícios da salvação compreendem também o estabelecimento de uma situação favorável à vida do crente na terra.

É nesta perspectiva que a vida pentecostal apresenta-se internamente ambígua, haja vista atenuar uma realidade absoluta/eterna em prol de uma relativa/temporal, mas ressaltando o aspecto mítico desta primeira realidade em seus modos de atuação no mundo contemporâneo, ainda tomando como parâmetro as construções teológicas que foram incutidas após a experiência de conversão. Esta dinâmica traz consequências não só à realidade comum na qual o crente está inserido, o que já é bastante significativo, mas também, e nesta abordagem diria principalmente, às novas construções de sentido que nortearão o pensamento e as formas de agir do crente. Assim, a caminhada da vida pentecostal na tentativa de transformar o mundo acarreta também uma mudança em si, já que tal transformação não se dá unilateralmente, quer dizer, somente do lado de lá, mas principalmente do lado de cá, de forma bilateral.

Há ainda dúvidas sobre as reais transformações acarretadas pela vida pentecostal no mundo contemporâneo. Da análise dos embates estabelecidos entre religião e espaço público, algo que a vida pentecostal assume um protagonismo significativo, essas tentativas de transformação têm trazido bem mais discussões e atitudes belicosas do que mudanças em prol de um pensamento exclusivamente religioso característico do crente, o que nos faz duvidar se haverá quantitativa e qualitativamente uma virada secular em prol de valores religiosos. Contudo, não prevalecendo essa transformação, é a vida pentecostal quem apresenta reais mudanças em sua histórica relação com esse mundo contemporâneo. Pode ser que este mundo continue expressando seus valores plurais e multifacetados, algo característico do próprio processo histórico que acompanha a modernidade, mas, o que é significativo nesta abordagem que defendo é que, para o crente, o céu já não é o bastante.

CAPÍTULO 3

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 117-122)