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Novas frentes de atuação

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 144-149)

A VIDA PENTECOSTAL E O “PRESENTE SÉCULO”

2.2 Novas frentes de atuação

“Eu acredito que se não tivessem evangélicos lá na política, defendendo algumas das nossas ideias, das nossas concepções de vida, o mundo tava uma bagunça bem maior do que tá hoje.” (Estevão)

“A gente era tachado de ‘os bíblia’, os que não tem conhecimento… Então quando a gente alcançou o espaço político, a sociedade se assustou porque ela não estava preparada pra isso.” (Talita)

“Eu acho que a política não é função da igreja. (…) Isso existe porque a igreja deixou de fazer o certo para fazer o que dá certo.” (Lucas)

Um primeiro ponto de convergência nos discursos das lideranças pentecostais (…) é a avaliação negativa da cultura política brasileira. Apesar das críticas aos vícios dessa cultura (…) a postura de rejeição e apartamento da política partidária vem

sendo substituída por uma posição de ativismo político com o propósito de restaurar ou criar uma nova cultura política no país. (MACHADO, 2015, p. 48)

A reconfiguração do discurso doutrinário do crente, percebida e discutida anteriormente, implicou no estabelecimento de uma característica outrora não prevista que foi o seu interesse político-partidário. Ainda que esse interesse não seja uma unanimidade entre os crentes, tornou-se simultaneamente um motivo de queixa e de comemoração. O que não se pode mais desconsiderar é que a política, em suas formas mais peculiares, agora faz parte da vida pentecostal. Igualmente, ressaltando a mútua transmissão, a vida pentecostal também passou a fazer parte da política. É esta vertente que irei discutir neste subitem.

Aquela evidência essencial para o melhoramento da condição humana que o crente julga ter torna-se perceptível à medida que tomamos conhecimento das discussões, na esfera pública, que envolvem interesses que foram caracterizados atualmente como “fundamentalistas”, reiterando não ser este o mesmo movimento fundamentalista vivenciado entre os séculos XIX e XX. São fundamentalistas, na atual abordagem, por requererem o estabelecimento de uma moral cristã como uma política pública, ou seja, que princípios e valores bem reconhecidos e aceitos em uma comunidade religiosa sejam implementados também fora dessa comunidade, no âmbito público. Ao mesmo tempo em que se advogam os resultados positivos disso (“o mundo, as pessoas, podem ser melhores”, como defendeu o entrevistado Estevão), surgem situações conflituosas tanto entre crentes e não crentes (as mais verificáveis no debate entre religião e espaço público) quanto entre crentes e crentes, como a queixa do entrevistado Lucas na epígrafe deste texto.

Ainda assim, esse avanço político da vida pentecostal, mesmo carecendo de legitimidade dentro e fora da tradição religiosa, mostrou-se exitoso no discurso de boa parte dos entrevistados, demonstrando ser ele uma oportunidade de chegar a espaços ainda não conquistados, com o intuito de “proclamar a verdade do evangelho para todos”, como disse Estevão. Para o entrevistado Saulo, a possibilidade de “estar no centro das decisões do legislativo é uma grande chance de moralizar a sociedade”, ao mesmo tempo em que podem “coibir o avanço dessa política liberal e desrespeitosa que ultimamente vem assolando nosso país com leis e práticas cada vez mais contrárias à bíblia”106. O cerne da discussão sobre o acesso do crente à política, dentre os entrevistados, concentrou-se nesta direção. Mas houve

106 Em sua entrevista, Saulo relatou o desejo de se candidatar a vereador depois que uma bíblia foi rasgada

durante uma manifestação na Câmara Municipal da cidade. O fato narrado por ele ocorreu em junho de 2013, quando estudantes ocuparam a sede do legislativo da cidade de Juiz de Fora, conforme a matéria publicada pelo jornal local Tribuna de Minas (http://www.tribunademinas.com.br/veja-como-foi-esta-sexta-feira-de- manifestacoes/).

ainda outros que citaram pautas como “lei do silêncio”, “taxação de igrejas”, “apoio a eventos” etc., justificando a “eleição de políticos evangélicos para defender nossos (sic) direitos”.

A chegada dos evangélicos na política partidária, e em âmbito nacional, ocorreu graças a uma preocupação com a promulgação da Constituição de 1988, que veio após o regime militar. Eles temiam o favorecimento do catolicismo, alçando-o novamente como a religião oficial do país (FONSECA, 2011). Os desdobramentos seguintes centraram-se na busca de legitimidade desses agora políticos junto aos seus representantes, no sentido de conquistar apoio para causas evangélicas. Assim, “no congresso, os deputados evangélicos tiveram seus votos comprados pelo governo em troca de verbas e, principalmente, emissoras de rádio e televisão” (FONSECA, 2011, p. 102).

Contudo, mesmo essas conquistas soaram positivamente entre os crentes que agora, e principalmente orientados por seus pastores, viam a possibilidade de suas demandas não só serem atendidas, mas de verem o avanço da mensagem que pregavam, seja por intermédio desses meios de comunicação, seja pela garantia do direito de pregarem o evangelho, coisa que ainda hoje preocupa os crentes, como o caso relatado no subitem anterior quando da eleição de 2014. E assim, a cada pleito, foram buscando meios de não ficar de fora da política, já que descobriram que, sem representação, a manutenção de uma agenda cristã em meio à sociedade hodierna era mais desafiadora (MACHADO, 2015).

Deliberadamente desconsiderando as peculiaridades das práticas que envolvem a política partidária na qual também compõem os representantes evangélicos tendo em vista cumprir com a delimitação proposta para este trabalho, retomo o foco para a perspectiva do crente diante desse privilegiado acesso às esferas democráticas de decisão dos rumos do país. E, neste caso, suas demandas atualmente requerem muito da atenção dos entes representativos do povo brasileiro, notadamente aqueles que se denominam representantes dos evangélicos.

De acordo com o entrevistado Pedro, a “pauta política é grande quando se trata dos nossos interesses”. E ele continua: “O mundo do jeito que está tem prejudicado bastante nosso trabalho de evangelização. E aí, quando temos um irmão nosso lá, temos certeza de que Deus vai usá-lo para abrir as portas e facilitar os meios.”. Indagado sobre quais seriam esses “interesses”, ele relatou o avanço dos grupos LGBT, principalmente, mas criticando em geral os partidos mais progressistas, em sua fala “os de esquerda, os liberais”, afinando seu discurso com o de políticos conservadores, notadamente aqueles que compõem a “bancada evangélica”, mencionando ícones que ganharam notoriedade no atual cenário político brasileiro com posicionamentos mais ligados a questões religiosamente institucionais.

Manifestando uma visão bastante minimalista da política brasileira, muito centrada em suas “concepções de vida”, como disse o entrevistado Estevão, mas fazendo-a mesmo assim de forma enfática, o crente apresenta-se como agente de mudanças ressaltando seu papel de cidadão, como um contribuinte ao bom desenvolvimento da pátria. Para tanto, sua receita pode ser reconhecida, já que é retirada de sua leitura comum da bíblia, interpretada e ensinada na instituição que congrega.

Como afirmei anteriormente, a vida pentecostal não respira somente política ou a vida propriamente comum, estando antes voltada para rituais e mitos expressos em seus cultos. Mas quando instados sobre seu papel na sociedade, tendem a aplicar e, por vezes, ressignificar temas bíblicos à realidade contemporânea, ao “presente século”. Isto pode ser visualizado em algumas pregações proferidas nesses cultos, onde o pregador trazia temas da atualidade e discutia-os à luz de sua interpretação, notadamente bíblica107. Em uma ocasião que julguei muito significativa, um pastor, durante uma oração, agradeceu a Deus pela eleição de um deputado estadual que, segundo sua fala, “foi eleito pela igreja, pelo seu povo, para ser instrumento de Deus na Assembleia Legislativa de Minas Gerais”. Nessa mesma oração, ele pediu a Deus que o referido candidato fosse “um Daniel, tanto nos palácios quanto na cova dos leões”.

Essa constante associação da bíblia à vida cotidiana (e vice-versa, como discutirei no próximo subitem) dá sentido ao que a entrevistada Talita mencionou provocativamente em sua fala, em uma referência a uma alcunha que fora empregada aos pentecostais de maneira jocosa (“os bíblia”), mas que depois se tornou elogioso, já que se tratava de um insulto com um livro (ALENCAR, 2013). De fato, essa associação sustenta-se tanto pelo histórico estereótipo do crente e sua bíblia (cena comum quando se percebe o modo como ele se encaminha para o culto, por exemplo) como por sua constante menção a esta, seja nas pregações, seja nas conversas (evangelismo ou vida cotidiana), o que acarretava em uma opinião comum de que o crente, baseando tão somente na bíblia, não teria conhecimento suficiente para discutir questões temporais.

Contudo, a provocação de Talita se deu mesmo quando ela constatou o avanço do crente no espaço público, notadamente a partir da política. Para ela, esse avanço foi positivo, haja vista “trazer pontos de vista que antes não eram sequer considerados”. E a atenção a esses “pontos de vista” foi que, em sua perspectiva, chocou a sociedade que “não estava

107 Durante a pesquisa de campo, observando os cultos nas igrejas pesquisadas, ouvi uma pregação onde José, do

Egito, foi denominado como “um grande político de Deus”. A narrativa bíblica trata este personagem como o principal responsável pelo sucesso do Egito ao vencer uma grave época de fome na terra (Gênesis, capítulo 41).

preparada pra isso.”. Indagada sobre quais eram esses pontos de vista, ela ressaltou, de forma ampla, “o direito da livre expressão a partir da nossa compreensão da bíblia, da verdade.”, concluiu.

Relatos colhidos nas entrevistas sobre esta temática apontaram para maneiras bem peculiares de compreensão do mundo por parte dos crentes. Seu imaginário toma como referencial teórico toda uma narrativa bíblica que, nesta mesma compreensão, seria bastante factual. Assunto recorrente nas entrevistas, a homossexualidade é vista como “uma abominação à criação divina”, como relatou a entrevistada Ana, ao mesmo tempo em que é vista como “um sinal dos tempos; é a vinda de Jesus mais próxima”, afirmou Saulo. Diante disso, o acesso a novas frentes de atuação proporcionaria primeiro um chamado ao arrependimento, daí o caráter proselitista voltado para as pessoas que se encontram “fora do caminho da salvação”, retornando à entrevistada Ana, e, em seguida, “uma preparação para um novo tempo, o tempo de Deus”, como complementou o entrevistado Saulo.

Um contraponto a essa incursão do crente no cenário político vem de um ceticismo ainda característico de uma perspectiva clássica da vida pentecostal que não vê nisso um avanço, antes uma “conformação com o mundo”, como defendeu o entrevistado Lucas. Para ele, na medida em que a igreja (a coletividade dos crentes) ingressa em um âmbito estranho ao seu mundo, portanto profano, ela trai seus constitutivos doutrinários e se envereda em uma senda que alterará definitivamente sua identidade: “a igreja tomou a forma do mundo”, complementou Lucas.

Fazendo uma leitura crítica, mas interna e clássica, dos modos como o crente busca conquistar espaço na sociedade atual, Lucas demonstra seu pessimismo questionando sobre como a participação política poderia facilitar o evangelismo, por exemplo. Para ele, citando um trecho da bíblia, “o reino de Deus é tomado por esforço”, ou seja, “não depende de A ou B, de política ou de político, somente do homem arrependido, e esses são muito poucos, não dá pra encher igrejas”, explicou, opinando sobre o sucesso das igrejas pentecostais atualmente.

Chegou a ser austera a argumentação deste entrevistado, o que lhe coloca em uma situação de paladino dentro da própria tradição pentecostal atual, mais afeita às perspectivas

natural-temporal e temporal-sobrenatural. Indaguei se esse seu pensamento correspondia ao

da comunidade que ele frequenta e ele negou, informando que sua crítica é exatamente contra sua própria igreja. Devo ressaltar que, dentre os entrevistados desta pesquisa, apenas Lucas trouxe mais enfaticamente esta perspectiva quando foi indagado sobre o papel do crente no mundo, algo que é representativo da atual mudança de concepção que a vida pentecostal vem

passando, deixando para traz aquela clássica perspectiva natural-sobrenatural e aderindo a modos mais próximos do “presente século”.

Apesar desta última crítica ao que atualmente vem caracterizando a vida pentecostal, ou seja, uma participação mais efetiva no mundo contemporâneo, neste caso por intermédio da política partidária, persiste um ativismo que é intrínseco à tradição pentecostal. Aqui representado pelo entrevistado Lucas, o crente clássico empenhava-se na evangelização tão somente utilizando de suas ferramentas comuns: a bíblia e sua explicação por vezes literal. Essa abordagem não deixou de ser realizada pelo crente que também se vê como “cidadão deste mundo”, lembrando o entrevistado Onésimo. Mas vem sendo fortemente incrementada pela adesão à política partidária, formando, portanto, um tripé (junto com a bíblia e sua exegese literal).

Neste sentido, a vida pentecostal torna-se mais contemporânea, dialogando com o espaço público a partir de seus constitutivos democráticos (a política), mas ainda falando sua própria linguagem religiosa que, apesar de sua incompreensibilidade por parte dos agentes seculares, já não se vê mais distante desse espaço público. Assim, o ativismo característico da política partidária tornou-se o meio que o crente passou a utilizar para interagir com a sociedade a fim de estabelecer (ou pelo menos interpelar a sociedade para) uma nova realidade no país, baseada essencialmente em seus pressupostos religiosos e validada pelos instrumentos que compõem a secularidade atinente aos cidadãos brasileiros.

As implicações dessa dinâmica de estabelecimento de novas frentes de atuação se refletem tanto na sociedade quanto no próprio senso religioso do crente. Não tratarei especificamente dessas questões que impactam a sociedade haja vista estarem fora do meu escopo. Mas discutirei mais pormenorizadamente esses impactos na vida religiosa do crente a seguir, atentando para a tipificação que atualmente compreende a vida pentecostal.

No documento ismaeldevasconcelosferreira (páginas 144-149)