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A mobilização total do migrante/refugiado empreendedor de si

4 TESSITURA DOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NO PERCURSO DE

4.3 EMPREENDER(-SE)

4.3.3 A mobilização total do migrante/refugiado empreendedor de si

As atividades artísticas, técnico-manuais e comunicacionais proporcionaram certa liberdade e autonomia para que os migrantes e refugiados pudessem exercer um tipo de trabalho que produz valor para si. Com isso, passaram a ser considerados trabalhadores autônomos, independentemente de seus registros de trabalho. O trabalho autônomo, na concepção de Lazzarato e Negri (2001, p. 94), é mais uma característica do trabalho imaterial, estando atrelado à ―capacidade empreendedora‖ em uma ―dimensão coletiva e da vida‖. Portanto, é aquele trabalho que remete à ―capacidade de cooperação, de gestão, de inovação organizativa e comercial‖. Essa alternativa possibilitou aos migrantes e refugiados desenvolverem suas habilidades independentemente de comprovação de formação acadêmica ou validação de diploma no país de destino.

Em relação às regularizações, Estère, Comoé e Casamance tem registro como MEI (microempreendedor individual) e Eufrates, Orontes, Balikh, Tuy e Níger como microempresa. Trabalhar de forma regularizada era o desejo e se tornou a realidade da maioria dos entrevistados. Os registros formais, além de concederem acesso a benefícios previdenciários, a salário maternidade e a auxílio doença, por exemplo, também comprovam aos dispositivos de controle que esses migrantes contribuem para a economia do país, e consequentemente, que fazem jus à renovação da permissão de estadia. Esse foi um dos pontos explanados por Saloum em audiência pública na Câmara de Vereadores (E24) em defesa do que se pode compreender como uma potente ―classe política [de migrantes], sobretudo porque lutam e resistem‖ (CORSINI, 2007, p. 7). Contudo, a adesão a esses registros não ocorreu de imediato, já que para os estrangeiros tal formalização requer como pré- requisito o registro permanente no país41, o que para muitos só é concedido após longo período de registro provisório (há relatos de até três anos de espera).

Estar à frente do próprio negócio pela via do trabalho imaterial requer a mobilização total (de si) dos migrantes e refugiados. Nas atividades empreendedoras não há divisão do trabalho em tarefas especializadas, a ordem é que o empreendedor seja do tipo ―faça-você-mesmo‖ (BAUMAN, 2011) e, além

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Em outubro de 2019, o registro de MEI para estrangeiros foi flexibilizado. Com a simplificação, o estrangeiro que quiser se formalizar como MEI precisa apenas informar o país de origem e o número de um dos seguintes documentos: carteira nacional de registro migratório, documento provisório de registro nacional migratório ou protocolo de solicitação de refúgio (AGÊNCIA BRASIL, 2019).

disso, faça-de-tudo-um-pouco e esteja em movimento (BAUMAN, 1999; FREITAS, 2009). Desse modo, os migrantes e refugiados assumem para si: (1) as múltiplas funções e tarefas de um mesmo negócio e/ou (2) a gestão de mais de um negócio, como se pode notar no Quadro 9 de apresentação desta dimensão analítica. A segunda perspectiva, muitas vezes, também abrange a primeira, sendo o migrante/refugiado o único responsável pelo ciclo de produção de seu produto ou serviço, exceto para aqueles que migraram com familiares. Nesses casos, assumir conjuntamente o negócio é uma estratégia familiar para criação e manutenção de trabalho no país de destino.

Os irmãos sírios Eufrates e Orontes exemplificam as múltiplas funções e tarefas que o negócio requer. Sobre o início da confeitaria, Orontes conta: ―Nós enfrentamos várias dificuldades para abri-la. Muitas coisas que eu nunca imaginei que seria capaz de fazer. Construímos essa parede, tudo que você está vendo aqui em volta, nós que construímos‖. Eufrates complementa: ―Eu e meus irmãos fomos pedreiros, pintores, eletricistas [...], as madeiras nós mesmo cortamos‖. Após a inauguração, eles passaram a dividir as tarefas de fazer as compras, encomendar insumos, produzir os doces, atender os clientes, controlar o caixa, manter a limpeza e higiene, gerenciar as redes sociais e os pedidos de aplicativos digitais. Nota-se que o indivíduo é solicitado em sua capacidade máxima, de modo a ―fazer frutificar a diversidade de seus talentos‖ (GAULEJAC, 2007, p. 191), tomando para si os riscos e os custos (LAZZARATO, 2014).

No que se refere à gestão de mais de um negócio, assim como outros entrevistados, Comoé tem experiência em gerenciar um leque de atividades. Ele é músico e ator e dançarino e professor de música e professor de francês e empresário da moda, uma sequência de ―e‖ que revela a lógica rizomática da atuação profissional do migrante. Ele próprio brinca com a situação: ―A minha profissão... eu vou ter que pegar o meu passaporte aqui pra ver o que está escrito (risos) [...] humm músico comediante, podemos traduzir desta maneira. Mas se tu me perguntares eu falo que sou aluno da universidade, estudante, é melhor (risos)” (COMOÉ).

Conforme Deleuze e Guattari (2011, p. 31), o rizoma é constituído por linhas: ―linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima‖. Assim, a ―multiplicidade [do rizoma] se metamorfoseia, mudando de natureza‖. Para Comoé, o ac mulo de

atividades remete a traçados de linhas que se lançam, principalmente, entre o que é afetivo, político, econômico e legal: (i) o trabalho com a música é afetivo, e foi eleito como profissão ainda na infância; (ii) os demais trabalhos, com moda e aulas de francês, surgiram pelo viés econômico, pois o ganho proveniente das artes não é suficiente para seu sustento financeiro no país de destino; (iii) o fato de estar em um país que desconhece sua origem torna todas essas atividades políticas, pois atribuir valor positivo às suas mercadorias é combater a imagem diminuída, distorcida e aporofóbica que parte dos nativos têm do africano e do imigrante, visão que restringe a sua mobilidade e as suas relações sociais e de trabalho; (iv) por fim, como a condição de migrante é sempre temporária (SAYAD, 1979), está constantemente atento a possíveis situações de risco, o que o leva a atribuir para si a profissão de ―estudante‖, aquela que, momentaneamente, é a que lhe permite estar legalmente no país. O posicionamento dessas linhas admite contribuir à perspectiva da Autonomia das Migrações, especificamente ao acrescentar formas de expressão dos migrantes que extrapolam a dimensão de fuga para outro país, como expressa Moulier-Boutang (1998). Nesse caso, as expressões de luta para manter- se no país de destino são desdobradas em modos de trabalhar e de estudar.

Para dar conta desse universo de multiatividades, tempo e espaço de trabalho tonam-se ilimitados (GAULEJAC, 2007). No que se refere aos espaços, identifica-se a propensão de libertação de locais específicos para o desenvolvimento do trabalho (MANSANO; CARVALHO, 2015), o que os migrantes e refugiados empreendedores de si tendem a considerar favoravelmente. Há os que trabalham em casa ou em estabelecimento com endereço fixo, e/ou aqueles cuja natureza do ofício requer estar em movimento, como exemplifica Casamance:

“Eu vendo nas feiras, eu vendo na internet, tenho encomendas [...] quando não tenho dinheiro, posso pegar minhas roupas e ir trabalhando na rua, vendendo mais barato pra conseguir dinheiro para fazer minhas coisas. As pessoas gostam, pegam meu cartão. Eu mostro modelos no Instagram, Facebook, Whatsapp. Meus amigos compram. Os amigos deles veem, os colegas da escola [e perguntam]: „onde tu comprou tua camisa?‟ „Comprei no Casamance, no senegalês. Só isso. Vende mais barato, costura bem, só isso” (CASAMANCE).

De qualquer forma, para todos os migrantes e refugiados, o principal canal de contato com clientes, fornecedores e parceiros de qualquer lugar do globo são as redes sociais na internet, dispositivos que reforçam a ideia de que para executar

negócios ―não há mais necessidade de um escritório fixo, mas de um escritório que [se] transporta consigo‖ (GAULEJAC, 2007, p. 115). Por outro lado, essa visão glamorosa de empreender aderindo às tendências tecnológicas abafa a marginalização, a precariedade, a instabilidade e, até mesmo, o abandono a que são submetidos os migrantes e refugiados (HARVEY, 2017). Visualiza-se um plano de forças que tende a mantê-los em espaço estriado desfavorável, mesmo que esse espaço seja revestido de empreendedorismo cultural ou empreendedorismo étnico. Dessa análise, ainda é possível depreender o movimento axiomático das forças capitalísticas globais (HUR, 2015), que fazem proliferar modos de individuação e estriamentos que mantém os jogos de dominação e opressão.

Migrantes e refugiados também se veem imbuídos em uma temporalidade que faz coincidir vida e trabalho, isto é, que evidencia que as fronteiras entre tempo de trabalho e de não trabalho se diluem. ―Trabalho de domingo a domingo. Você trabalha, trabalha, trabalha, depois de 9, 10 meses assim eu pedi pra sair. Por que eu não tava mais dando conta assim, show, viajar e dar aula‖, desabafa Comoé ao contar sobre o pedido de demissão do curso de francês. Conforme Pelbart (2013), essa é a angustiante condição que faz o indivíduo oscilar entre um estado de esgotamento e o desejo por uma forma de viver autônoma, democrática e alegre. Tem-se, aqui, a ação dos processos de subjetivação em embate com as forças capitalísticas e as potências da vida.

O indivíduo é tomado pelo trabalho em tempo integral, como preconiza Saloum: “a associação é 24 horas”. Assim, repetidamente imputa-se a sensação de necessidade de alargamento do tempo, devido à urgência em rentabilizar o negócio e, consequentemente, alcançar o sustento financeiro, como mostra Orontes: ―as 24h não são suficientes para mim, eu preciso de mais. Eu não tenho tempo de atividades sociais, eu estou concentrado na confeitaria, porque nosso sonho é grande e nós vamos alcançá-lo [...] É difícil para brasileiros, não é? Imagina para nós”. Tal perspectiva leva a refletir que as longas jornadas de trabalho material à época do capitalismo industrial (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; HARVEY, 2017) ainda vigoram no capitalismo flexível e globalizado (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), travestidas, agora, de autonomia, autocontrole e autogerenciamento do tempo de trabalho.

Ao passo que o migrante e o refugiado trilham o percurso como empreendedores de si, o comportamento de vagante vai perdendo força e lhes é

exigido cada vez mais uma atitude de jogador (BAUMAN, 2011). A vida se torna business (GORZ, 2005) e deve ser jogada como um jogo (BAUMAN, 2011), em que é necessária a disponibilidade mental e corporal para o acúmulo de atividades que eles tomam para si. Isso se torna ainda mais fatigante pelo fato de serem estrangeiros, já que, ao lado das atividades cotidianas de gestão de um empreendimento, devem desvendar as nuances políticas, culturais, sociais e legais específicas do país de destino.

O caso de Arauca, além de exemplificar essa ideia, ainda sublinha a questão de gênero, que se alia à situação de migração e de trabalho quando a migrante toma para si a responsabilidade pelo cuidado com seus filhos devido à ausência de uma rede que ela afirma que teria em seu país de origem. Como o marido trabalhava e não havia mais amigos ou parentes no Brasil, as estratégias que podiam manter o seu negócio estavam conectadas às regulações sociais que organizam a maternidade, como evidenciado no estudo de Carpenedo e Nardi (2017) com mulheres migrantes. Arauca relata:

“Durante esse tempo, eu trabalhei muito, trabalhava muito de madrugada. Todo mundo: „ahhh que legal que tu tem a tua própria empresa‟. Mas eu trabalhava e dormia bem pouco, agora já consigo dormir mais porque a gente já tem pessoas que trabalham ali, mas passava a noite toda fazendo traduções ou respondendo e-mail para cliente, fazendo orçamento. Foram anos bem duros. No meio do caminho eu fiquei grávida, de novo [...] trabalhei todo o tempo grávida, sempre, não tive descanso até o último dia da minha gravidez. Depois voltei a trabalhar com um mês. Na verdade, na maternidade eu estava respondendo e-mail, tipo, eu tinha já a secretária mas não é a mesma coisa, ela sempre tem dúvida de fazer alguma coisa, entendeu? Então a gente sempre tem que estar ali e quando a bebê estava com três meses, eu voltei para o escritório e fiquei com ela trabalhando lá, durante um ano, e daí como eu amamentava ela, não queria cortar esse vínculo. Essa é uma decisão minha, ninguém me impôs. Eu que decidi

fazer assim dessa forma. Poderia ter levado ela para alguém cuidar, mas,

também não tinha ninguém para cuidar dela” (ARAUCA, grifo nosso).

Ainda é possível visualizar, na frase destacada da fala de Arauca, a força capitalística mais uma vez agindo na subjetividade, o que faz a migrante crer que, hoje na posição de empreendedora, tem controle sobre sua vida e sua empresa. Essa visão de si é o que disfarça o movimento de subsunção do indivíduo em sua totalidade para o capital (PELBART, 2000). Associa-se esse movimento de empreender-se ao trabalho imaterial, sobre o qual Gorz (2005) alega que nenhum constrangimento é imposto do exterior. Em vez disso, o migrante e o refugiado se veem obrigados a introjetar uma autovigilância que os coloca sempre a dispor do

trabalho a fim de assegurar a viabilidade e a competitividade da empresa que eles se tornaram.