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2.2 TRABALHO

2.2.2 Trabalho Imaterial

A produção capitalista no período fordista, segundo Negri (2018), era estruturada pelos regimes disciplinares e de acumulação e dirigida essencialmente pelos lucros gerais da cooperação planejada do trabalho industrial. No período pós- fordista do trabalho imaterial, ao contrário, quando os conhecimentos produtivos e as capacidades sociais de cooperação se difundem ainda mais largamente na totalidade do tecido social, o capital explora as formas emergentes da força de trabalho de maneira nova, extraindo a riqueza social produzida em comum e, de certa maneira, subsumindo a valorização da totalidade do campo social.

Nesse sentido, Harvey (2017) afirma que o controle do trabalho envolve uma mistura de repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos organizados não somente no contexto do trabalho, mas na sociedade como um todo. Há um controle social das capacidades físicas e mentais. A educação, o treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais, como a ética do trabalho, a lealdade aos companheiros, o orgulho local e nacional e propensões psicológicas (a busca pela identidade por meio do trabalho, a iniciativa individual e a solidariedade social) desempenham um papel e estão claramente presentes na formação de ideologias dominantes. Estas são cultivadas por meios de comunicação em massa, instituições religiosas, educacionais e por vários setores do aparelho do Estado, sendo afirmadas pela articulação e experiência dos que fazem o trabalho.

As formas de organizar, gerir e produzir retratam diferentes configurações do trabalho contemporâneo ao demandarem organizações e trabalhadores flexíveis, e ainda remetem às implicações à constituição do sujeito. Atualmente, a demanda é por um trabalhador autônomo, polivalente, flexível, mobilizado e engajado na tarefa, gestor de si diante da nova relação produção-consumo que vem a caracterizar o trabalho imaterial como aquele que exige a subjetividade (GORZ, 2005; LAZZARATO; NEGRI, 2001; PELBART, 2003).

O trabalho imaterial, conforme Grisci (2011, p. 456), refere-se ao

―conjunto de atividades corporais, intelectuais, criativas, afetivas e comunicativas inerentes ao trabalhador, atualmente valorizadas e demandadas como norma impositiva que torna o trabalhador sujeito ativo do trabalho e como condição indispensável à produção‖.

O ciclo de produção do trabalho imaterial, segundo Lazzarato e Negri (2001), tem em seu âmago a imaterialidade, ou seja, a subjetividade que ativa e arranja a sinergia dessa nova relação produção-consumo. Esta ativação acontece por meio de um processo comunicativo da rede de cooperação produtiva e da relação social do produtor com o consumidor que, por sua vez, torna-se também comunicador. O produto/serviço, resultante de diferentes tipos de saberes e de novas formas de (auto)exposição, gera essencialmente conteúdo e valor informativo, cultural, criativo, imaginativo e, nesse entrelace entre produtor-consumidor, gera também valor econômico.

Desse modo, a base da produtividade se torna o investimento no cérebro humano socializado, que requer o máximo de liberdade e de ruptura da relação disciplinar nas fábricas e o máximo de liberdade no trabalho (NEGRI, 2001; PELBART, 2000). Para Lazzarato e Negri (2001), trata-se de uma força de trabalho social e autônoma. Assim, por meio do trabalho imaterial, atuais modos de gestão do trabalho agem em uma tentativa de moldar, organizar e comandar subjetividades, colocando o trabalhador sempre à disposição para o trabalho, em um exercício de autovigilância (GRISCI, 2011).

Na visão de Cocco (2001), o trabalho imaterial se apresenta até mesmo para os trabalhadores que estão na informalidade e em formatos precarizados de trabalho (e de vida). Ao se depararem com a ausência de Estado, esses indivíduos são capazes de se mobilizar em uma verdadeira inserção cidadã de trabalhadores. A classe operária, por exemplo – à qual, em geral, os migrantes se juntam – ―não emerge e não luta porque existe. Ao contrário, existe porque luta, se forma nos concretos acontecimentos nos quais ela se nega como força de trabalho e afirma sua autonomia‖ (COCCO, 2001, p. 17). Assim, não é necessariamente o trabalho imediato ou o tempo cronológico que o indivíduo trabalha que se refere ao trabalho imaterial, mas ―a apropriação de sua produtividade geral, a sua compreensão da natureza e o domínio sobre esta [por meio] da sua existência enquanto corpo social‖ (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 28).

Gorz (2005, p. 19) explica que trabalhadores pós-fordistas entram ―em processo de produção com toda a bagagem cultural que adquirem nos jogos, nos esportes de equipe, nas lutas, disputas, nas atividades musicais, teatrais, etc.‖. Da mesma forma, é valorizada a diversidade de capacidades heterogêneas, ―o julgamento, a intuição, o senso estético, o nível de formação e de informação, a

faculdade de apreender e de se adaptar a situações imprevistas‖ (GORZ, 2005, p. 29). E ainda, são valorizados os saberes dos mais heterogêneos, como o cálculo matemático, a retórica, a arte, a pesquisa técnico-científica, as normas estéticas (GORZ, 2005). Para o autor, tais atividades desenvolvidas fora do trabalho estimulam a vivacidade e a capacidade de cooperação.

Nesse sentido, os modos de trabalhar pós-fordistas se apropriam do saber vernacular, explorando-o. O trabalho do sujeito é produzir a si mesmo continuamente por meio de saberes que são fonte de criação de valor (GORZ, 2005). No caso dos migrantes e refugiados, atenta-se para a apropriação dos saberes, dos laços, das referências específicas dos países de origem dos indivíduos e da própria situação de migração e refúgio.

A utilização do próprio potencial de desenvolvimento alinhado a uma boa gestão de si, na perspectiva da autorrentabilização, seria, portanto, o fator-chave do sucesso, tanto do indivíduo trabalhador quanto da empresa (GAULEJAC, 2007; BAUMAN, 2011). Trabalhar é produzir-se, ou seja, o operador deve doar-se ou entregar-se de maneira contínua à gestão, produzindo-se como sujeito para assumi- la. É o advento do autoempreendedor, em que o trabalhador atua como empreendedor, seja qual for o seu estatuto, na gestão das suas capacidades, que são consideradas o seu capital fixo (GORZ, 2005). O indivíduo torna-se, pois, uma empresa, sendo que no lugar daquele que depende de salário, vê-se o empresário da força de trabalho, que providencia o seu próprio aperfeiçoamento. Ocorre, então, um deslocamento da relação empregador-empregado para uma relação em que as grandes empresas se tornam clientes do autoempresário anunciado como Eu S/A (GORZ, 2005).

O autoempreendedor (GORZ, 2005), o empreendedor de si, o gestor de si (GAULEJAC, 2007) ou o trabalhador autônomo (LAZZARATO; NEGRI, 2001) fundamentam carreiras seja de quem é proprietário de um negócio, seja de quem tem vínculo empregatício em organizações. Isso ilustra a argumentação de que o trabalho imaterial tende a ser hegemônico (HARDT; NEGRI, 2005; LAZZARATO; NEGRI, 2001) no capitalismo flexível e globalizado (HARVEY, 2017) e que os conhecimentos produtivos e as capacidades sociais de cooperação se difundem na totalidade do tecido social.

A cooperação simples ou alargada está presente nos processos de trabalho – da manufatura à grande indústria – e, por sequência, a organização capitalista do

trabalho reforça a cooperação e a qualifica progressivamente até explorá-la como atividade social. Dessa forma, a produção pós-industrial, fundada pelo capital cognitivo, acentua a potência produtiva do trabalho imaterial graças à cooperação dos trabalhadores (em particular, graças a conexões tecnológicas da atualidade) (NEGRI, 2018). Assim, o trabalho imaterial é consubstanciado por formas coletivas de redes, de fluxos e de cooperação, uma cooperação produtiva por meio da vida (NEGRI, 2001).

Mesmo estando submissa à lógica capitalista, a cooperação não é tolhida de ser constituída e de ter sentido de autonomia e independência. Ao contrário, ela abre antagonismos e contradições que pedem, no mínimo, uma ―nova forma de exposição‖, pressupõe novos modos de ser e de existir, modos de vida que funcionam nas suas expressões coletivas, cooperativas e inovativas (LAZZARATO; NEGRI, 2001).

Pode-se considerar como potência de agir em direção aos novos modos de vida, o afeto – uma expansão singular e, ao mesmo tempo, universal. Singular porque põe o agir para além de qualquer medida que a potência não contém em si mesma, em sua própria estrutura e nas reestruturações contínuas que ela constrói. Universal porque os afetos constroem uma comunidade de sujeitos. O não-lugar do afeto fica no cerne dessa comunidade, pois ela é uma potência. Não se trata de uma comunidade de coerção, mas de desejo, uma expansão que não encontra limites, apenas obstáculos (NEGRI, 2001). Na mesma linha, pode-se considerar a política – aquela relacionada às atividades que, pelo exercício do diálogo, buscam articulação coletiva e ajudam a compor a existência de determinados grupos (MANSANO; CARVALHO, 2015).

Por outro lado, a economia política pós-moderna reconhece que o valor se forma na relação com o afeto, isto é, o afeto é fundamentalmente produtivo, e ao tentar controlá-lo, limita-se sua potência (NEGRI, 2001). Estende-se esta ideia também à política (MANSANO; CARVALHO, 2015). De qualquer modo, a força produtiva mantém-se sob controle, organizando-se para calcar novas formas de exploração sobre as novas figuras de valorização e sobre os novos sujeitos que a produzem (NEGRI, 2001; PELBART, 2013). Assim, a relativa autonomia no trabalho, no modo de produção cognitiva, não remove a exploração, haja vista as características de fadiga e sofrimento que lhe são próprias. É uma exploração da subjetividade por ela mesma (NEGRI, 2018).

Uma vez na fase cognitiva do desenvolvimento capitalista, o trabalho imaterial tido como social e cooperativo torna-se ainda mais potente porque ele é mergulhado em um mundo de redes de comunicação e conexões digitais que atravessam as grandes indústrias, e também a realidade de todas as formas de economia, incluindo os trabalhos considerados mais materiais hoje em dia. ―O capital é valorizado pelos fluxos cooperativos nos quais os músculos, as linguagens, os afetos, os códigos e as imagens são submetidos aos processos materiais de produção‖ (NEGRI, 2018, p. 87, tradução nossa). E assim se visibiliza a tendência à hegemonia do trabalho imaterial (HARDT; NEGRI, 2005; LAZZARATO; NEGRI, 2001).

Antunes (2018) posiciona-se de forma um pouco diferente ao argumentar que o trabalho material ainda é predominante. Apesar disso, admite que trabalho material e imaterial estão cada vez mais imbricados e inter-relacionados. O autor defende que a imaterialidade cresce cada vez mais nas novas cadeias produtivas globais. Assim, é preciso enfatizar que o trabalho imaterial se tornou também parte vital da forma- mercadoria, em vez de ser excluído do complexo processo de criação de valor vigente no capitalismo financeiro, informacional e digital de nosso tempo (ANTUNES, 2018). Em linha com esse argumento, Mansano (2009) e Mansano e Carvalho (2015) apontam um sujeito que transita entre o trabalho material e o imaterial, em maior ou menor grau, em todas as profissões, ilustrando múltiplas políticas de subjetivação.

O tópico a seguir mostra que estudos relativos ao trabalho de migrantes e refugiados evidenciam esses indivíduos voltados predominantemente ao trabalho material. Essa realidade pouco mudou desde o estudo de Sayad (1979), o qual mostra que as oportunidades apresentadas estavam atreladas a trabalhos precarizados, que nativos não queriam ocupar.