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O cliente (co)produtor-comunicador do ponto sul da globalização

4 TESSITURA DOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NO PERCURSO DE

4.3 EMPREENDER(-SE)

4.3.2 Agenciamentos relativos às especificidades estrangeiras no ciclo de

4.3.2.3 O cliente (co)produtor-comunicador do ponto sul da globalização

Assim como aquele que produz, quem recebe um produto também é um consumidor de ideias, imagens, gestos que compõem subjetividades (GUATTARI;

ROLNIK, 1996; ROLNIK, 1997). Dessa forma, o cliente desempenha papel importante no trabalho dos migrantes e refugiados no sentido de alisar espaços ainda nebulosos. É ele quem chancela se o produto ou serviço estrangeiro produz sentido para os brasileiros. E ainda, em linha com Moulier-Boutang (2010), o cliente, antes visto apenas com uma curiosidade descreditada, tem agora papel ativo que também atribui valor de mercado a produtos e serviços. Tal perspectiva é caracterizada por Lazzarato e Negri (2001) como a nova relação produção-consumo. No exercício do trabalho dos migrantes e refugiados foi possível notar uma dupla função produtiva do cliente. Primeiramente, ele é uma figura (co)produtora, já que é envolvido de maneira ativa e constante no processo de criação e desenvolvimento do trabalho imaterial. Dessa forma, o produto ou o serviço consiste em um processo social de concepção, hibridização e inovação. Em segundo lugar, ao consumir o produto/serviço do migrante/refugiado, o cliente é capaz de modificar a percepção prévia que tinha desses indivíduos, ressignificando seus modos de vestir, alimentar, dançar e contemplar a arte. Por conseguinte, é induzido a comunicar o processo de transformação que os movimentos de migração e refúgio do sul global provocam no mundo, dando espaço a outras maneiras de ser, viver e se deslocar, distintas das glamourizadas (FREITAS, 2009) que Bauman (1999; 2011) associa ao turista.

Casamance e Falémé participaram de um projeto de extensão promovido pelo curso de Moda de uma universidade privada. O projeto envolvia a realização de disciplinas como suporte para o desenvolvimento de um plano de criação, comunicação e marketing de uma campanha de moda para uma consolidada rede de loja de roupas, parceira da causa. Em alusão à relação de coprodução,

―até mesmo eu, participei como cartógrafa-cliente. Falémé me enviou mensagem no WhatsApp convidando à tarefa de escolher três modelos de roupa na internet que eu gostaria de usar no verão: ‗Tu, como mulher brasileira, pode me ajudar, escolhe o que tu gostas de vestido, macacão, saia, para me inspirar a desenhar meu próprio modelo‘, escreveu ele‖ (DIÁRIO DE BORDO, FALÉMÉ, 12/09/2019).

Como resultado, as fotografias da coleção mostravam os próprios estilistas senegaleses vestindo suas criações, as quais misturavam a etnicidade dos tecidos africanos e as tendências de moda brasileira.

A figura do cliente-comunicador pode ser vista no negócio dos sírios. As esfirras, os doces sírios, o falafel, o shawarma se diferenciam no mercado

gastronômico por serem produzidos por um recém-chegado da Síria, alguém com traços do vagante, aquele que ―ainda cheira a outros lugares‖ (BAUMAN, 2011, p. 30). Os refugiados sírios são unânimes ao dizer que seus produtos não teriam o mesmo valor se fossem produzidos por brasileiros, e que também se diferenciam das produções de árabes-imigrantes já conhecidos no Brasil. ―Os clientes nos contam que tem outros restaurantes árabes em Porto Alegre, mas que preferem o nosso‖, comenta Eufrates.

Como o imigrante de outrora já faz parte do cenário urbano, o que emerge como novidade é a ideia do refugiado. A guerra na Síria é tema presente nas mídias40, o que pode sensibilizar consumidores no sentido de fomentar a busca por produtos sírios e, consequentemente, por suas histórias de vida, conforme relata Orontes: ―as pessoas são curiosas para nos conhecer, a nossa história, o que fazemos aqui, se estamos confortáveis”. Nota-se que o valor do produto não é dissociado de quem o produz. Nesse ínterim, além do valor afetivo, o valor econômico é estendido ao indivíduo-produtor. Aí está o âmago do trabalho imaterial dos migrantes e refugiados: o capital se apropria das subjetividades inerentes à cultura e ao refúgio, a favor da rentabilização da empresa, ou seja, a favor da rentabilização de si, já que não há mais diferença entre um e outro.

Dessa forma, os refugiados sentem a retribuição positiva da clientela: ―nos sentimos muito bem acolhidos. Eu nunca senti nenhum tipo de racismo aqui, eu só sinto as boas vindas das pessoas‖ (ORONTES). Por outro lado, há situações em que os brasileiros demonstram ter ideias moduladas por preconcepções (GUATTARI; ROLNIK, 1996): ―eles acham que as pessoas árabes, tipo assim, são homem-bomba. E que as mulheres não podem fazer isso, não podem fazer aquilo. Eles têm essa visão das mídias sociais‖, explicita Balikh, que entende que existe uma visão limitada dos brasileiros sobre a Síria e a situação de refúgio, de modo que é necessário que os migrantes sírios contra-argumentem, evidenciando pontos positivos do seu país.

Outro exemplo é o ensino de idiomas. Um dos clientes de Orontes lhe ensina português, e Orontes retribui ensinando árabe, evidenciando um movimento de

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Toma-se como exemplo a reportagem citada a seguir e, ainda, retoma-se o relatório Global Trends da ONU, que anuncia que ao fim de 2018, pelo quinto ano consecutivo, com cerca de 6,7 milhões, os sírios representaram a nacionalidade com o maior número de refugiados no mundo (UNHCR, 2018). MAIS de 1 milhão fogem de conflito do nordeste da Síria - em três meses. GloboNews. 02 de março de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/jornal-globonews-edicao-das-18/video/mais- de-1-milhao-fogem-de-conflito-no-nordeste-da-siria-8367566.ghtml Acesso em: 30/03/2020.

passagem entre os espaços liso e estriado. Emocionado, ele lembra o dia em que esse cliente-professor-aluno lhe fez uma surpresa:

“este dicionário [bilíngue árabe-português] é muito famoso (risos) foi um presente de um cliente. Isso é muito comovente, tocou meu coração. Eu quase nem conhecia ele e ele me deu um presente. Todo mundo que vem aqui tira uma foto do dicionário [que fica exposto na prateleira da confeitaria]” (ORONTES).

A maior parte do público consumidor de produtos da lancheria e confeitaria dos sírios são brasileiros atraídos por sabores diferentes e por preço baixo. Todavia, os sírios também preservam relacionamentos com grupos de mesma etnia. Em uma das observações realizadas na lancheria,

―presenciei a visita de um grupo de adolescentes descendentes de imigrantes de diferentes países árabes (Kuwait, Líbano, Israel, Egito, etc.). Na chegada exclamaram: „Oi primos!‟, manifestação comum entre os compatriotas, e seguiram a conversa em árabe. ‗Não é o mesmo árabe, mas a gente se entende‟, comentou Khabur‖ (DIÁRIO DE BORDO, LANCHERIA DOS SÍRIOS, 24/05/2019).

Cabe destacar que, além dos nativos e dos co-étnicos, os empreendimentos também recebem pessoas de crenças historicamente em conflito com a religião dos refugiados. Eufrates aponta o ecumenismo como forma de ―viver em paz‖ e de fazer prosperar o empreendimento em território brasileiro:

“Nossa religião é muçulmana. Uma vez uma mulher judia parou na porta: „oi, eu posso entrar? Gosto muito do produto de vocês, mas eu sou judia‟. Eu falei: „antes de tu entrares, eu vou te dar um abraço e agora tu podes entrar com certeza, fica à vontade. Nós não temos problema com nenhuma religião, nenhum país. Aqui todo mundo é irmão, judeus, muçulmanos, cristãos. Não se preocupe, nós gostamos e respeitamos todo mundo. Se alguém tem história de guerra, briga, não é conosco‟. Ela ficou muito feliz e agora é nossa cliente. Quase 80% daqui desse bairro, dos nossos clientes são judeus” (EUFRATES).

As subjetividades produzidas ao consumir produtos e serviços faz com que os clientes retroalimentem o ciclo de produção do trabalho imaterial, de forma voluntária ou a pedido dos migrantes e refugiados. Arauca, assim como os outros entrevistados, executa esse movimento, naturalizado como uma prática de gestão:

―Na visita a lancheria da Arauca, ao me ver tirando fotografias do meu pedido – uma arepa de feijão e um suco de rapadura chamado ‗papelón con limón‘ –, prontamente ela solicita-me: ‗se você postar no Facebook ou Instagram, pode marcar a nossa lancheria? Depois, se puderes deixar uma

avaliação também.. para ajudar a nossa lancheria‘‖ (DIÁRIO DE BORDO, ARAUCA, 19/06/2019).

As avaliações são mensagens, recomendações ou críticas nas páginas das redes sociais que servem como indicadores para futuros clientes. Ao misturar as histórias de vida, os percursos de migração/refúgio e a avaliação propriamente dita, os clientes autenticam a identidade globalizada dos produtos e serviços (ROLNIK, 1997).

Na página da lancheria da Arauca, destaca-se a interação dos clientes- conterrâneos na língua materna: ―Muy buena atención y comida de mi tierra‖. Na página da confeitaria do Eufrates e do Orontes, um cliente enaltece a situação de refúgio: “cafés, tortas... tudo muito bom. E mais, a história de recomeço de uma família Síria!‖. Na página da lancheria de Eufrates, Balikh e Khabur, um cliente valoriza a originalidade e procedência de quem prepara o lanche: ―Pertence a três refugiados sírios. Atendimento e comida excelentes. Até comentei com eles que nada como um shawarma feito por quem conhece e come desde criança‖. Na página da Estère, uma mãe de aluna lhe agradece com palavras do idioma em aprendizagem: ―Congratulations a minha filha e aluna de francês. Merci professeur Estère. Très bien!‖. Na página da loja de Comoé, um cliente reconhece a personalização moldada por estilo e história: ―Recomendo. Além dos produtos, existe ali cultura e atitude. E o atendimento é uma aula sobre a África‖. Mesmo que a maioria das mensagens apresente avaliação favorável, por vezes, também há críticas referentes ao estranhamento do ―outro‖: ―Achei estranho, cardápio fraco. As pessoas ficam falando em outra língua na presença dos clientes‖.

Longe da relação de produção fordista/taylorista, o que se vê é a nova relação produção-consumo (LAZZARATO; NEGRI, 2001), em que a produção e o consumo ocorrem simultaneamente devido ao envolvimento afetivo e político de clientes e empreendedores perante a situação de migração e refúgio. Essa relação torna-se um processo social de produção sempre em evolução, abrindo passagem a um composé de hábitos, gostos, culturas e crenças de países distintos. Contudo, apesar de esse ciclo de produção do trabalho imaterial ser (co)partícipe, a responsabilidade pela sua efetivação e pelos riscos e custos inerentes a ele é do empreendedor (de si) (LAZZARATO, 2014).