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2.1 MIGRAÇÃO

2.1.2 Usos/Desusos/Abusos de Termos relativos às Migrações

A questão da mobilidade na era globalizada abrange diversos tipos de deslocamento, tanto internos quanto externos a um país. Esse não é um movimento exclusivo da era global, mas está presente na história da humanidade, (re)configurando países, grupos e modos de vida. No atual momento da ordem capitalista, sobressaem-se os deslocamentos que são norteados pelos processos de subjetivação capitalística e pelas relações de territorialização, desterritorialização e reterritorialização entre capital e trabalho.

O fluxo migratório internacional se apresenta como fenômeno múltiplo e complexo, alcançando patamares recordes a cada ano. Conforme o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas, a estimativa era de que, em 2019, 272 milhões de pessoas no mundo vivessem em países diferentes da sua nacionalidade, o que representa um aumento de 51 milhões desde 2010. Isso representa 3,5% da população global, em comparação a 2,8% no ano 2000 (UN/DESA, 2019). A heterogeneidade das migrações se manifesta por estratos socioeconômicos, gênero, idade, religião, cultura, estatuto legal e, sobremaneira, por experiências de vida e motivações para migrar (PADILLA, 2013).

Dentre os fatores que motivam a migração estão: prosperidade econômica, estudo, trabalho, relacionamentos afetivos, desigualdade, demografia, violência, conflito, perseguição, catástrofes ambientais e de outras ordens (IOM, 2018). Dado esse cenário, o período atual tem sido considerado como a era das mobilidades (CASTLES, 2005; HAAS; CASTLES; MILLER, 2020; RODRIGUEZ; MEARNS, 2012).

Nesse sentido, diversas frentes, tais como os Estados, a ACNUR, a OIM, as ONG‘s, os meios de comunicação e diferentes áreas da academia se interessam em quantificar e classificar esse fenômeno em categorias e tipologias.

É possível pensar as migrações internacionais sob diferentes categorizações. Na ótica da volição individual, por exemplo, as migrações podem ser chamadas de espontâneas ou forçadas, voluntárias ou involuntárias; sob a ótica legal, o migrante pode ser regular ou irregular, documentado ou indocumentado; sob a ótica laboral, pode-se dizer que há um polo de migrantes qualificado-especializado e outro polo de migrantes com baixa qualificação; sob a ótica do país de destino das migrações, elas podem ser desejáveis ou indesejáveis, etc. Isto posto, um indivíduo, quando cruza fronteiras de um país, é classificado nessas categorias que, por sua vez, determinam como o sujeito será chamado, direcionando seus modos de vida e trabalho no país de destino.

Tendo em vista as diversas possibilidades de classificação, a Organização Internacional para as Migrações apresenta um glossário em que denomina os migrantes com base no motivo da migração – espontânea ou forçada – e na qualificação para o trabalho – alta ou baixa (IOM, 2019), o que auxilia a delinear a linha desta tese, juntamente com a abordagem do puxa-empurra de Bauman (1999; 2011). Observa-se de antemão que, a visão dominante, é a de que movimentos migratórios de trabalhadores qualificados/especializados são aclamados como mobilidade profissional, já os de trabalhadores considerados sem qualificação são condenados como migração indesejada (CASTLES, 2010).

A ―migração espontânea‖ se refere ao indivíduo ou grupo que migra sem qualquer auxílio estatal, nacional ou internacional. Passível de uma aproximação compreensiva a tal categoria, a IOM (2019) também apresenta a ―migração individual‖, em que o indivíduo migra individualmente ou com a família a partir de autofinaciamento, patrocínio individual, organizacional ou governamental. Esses movimentos também podem ser chamados de migrações voluntárias, já que é a vontade do indivíduo de ir para o exterior que os caracteriza essencialmente. Como motivação, Padilla (2013) cita fatores relacionados a trabalho, estudo, relacionamentos afetivos, casamento, qualidade de vida, vontade de conhecer outros países e outras culturas.

Pela linha de pensamento de Bauman (1999; 2011), há algo que puxa esses movimentos. Mesmo que tais indivíduos, denominados pelo autor como ―turistas‖14, pensem se mover de forma espontânea ou proposital, o que ocorre é uma força de atração, um puxamento. Deslocam-se pela inquieta insatisfação, pelo desejo de contraste, pela experimentação, para escapar de decepções. Em geral, esses movimentos são realizados por quem a IOM (2019) classifica como trabalhador migrante qualificado ou altamente qualificado, aquele que tem o nível de educação, habilidade, experiência e especialização adequados para desempenhar tarefas e deveres ligados a um determinado trabalho. Aos migrantes qualificados geralmente é concedido tratamento preferencial no que tange à admissão em um país, de modo que estão, portanto, sujeitos a menos restrições relativas à duração da estada, à mudança de emprego e à reunificação familiar (IOM, 2019). Cabe ressaltar que quando se fala em migração qualificada, nem sempre a formação do migrante é levada em consideração, mas sim o seu posto de trabalho, isto é, a participação em um mercado de trabalho qualificado.

Como exemplos de migração puxada, pode-se pensar em diversas situações que são estudadas na Administração. Conforme Berry e Bell (2012) e Scherer, Prestes e Grisci (2019), embora a área de conhecimento em questão não utilize com frequência a expressão migração e prefira empregar mobilidade internacional, há diferentes termos que conceituam a situação do indivíduo que vai para o exterior e a sua relação com o trabalho, como: (i) expatriados, indivíduos que são enviados para trabalhar no exterior com vínculo organizacional, muitas vezes acompanhados de suas famílias; (ii) executivos e gestores globais, também chamados de

flexpatriados, que vão fazer negócios, treinamentos, atividades nas empresas das

quais fazem parte; e (iii) autoexpatriados, que decidem morar no exterior para recomeçar a vida, objetivando encontrar um emprego melhor, um salário melhor, qualidade de vida, segurança, etc. Cabe ressaltar que o mesmo conceito conferido a autoexpatriado pela área de Administração pode ser atribuído ao que a IOM (2019) denomina como migrante. O termo migrante (ou imigrante – fazendo referência a alguém que já está em terra estrangeira) é mais utilizado em áreas de conhecimento que tradicionalmente estudam o fenômeno das migrações, como Antropologia, Demografia, Direito, Relações Internacionais e Sociologia. Em relação à origem, em

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O turista integra uma das quatro metáforas de viver a vida em deslocamento propostas por Bauman (1999; 2011) que são apresentadas nesta tese no pilar Subjetividade.

termos de tendências gerais, estes indivíduos são oriundos do norte global, onde inclusive há concentração de estudos sobre expatriação e o seu contexto de trabalho qualificado. Toma-se como exemplo o The Global Mobility Survey (GMS, 2019), cuja pesquisa aponta que dos cinco países que mais enviaram expatriados em 2018 e 2019, quatro são países europeus e o outro é a China.

A ―migração forçada‖ caracteriza o movimento migratório em que existe um elemento de coação, de ameaça à vida ou à sobrevivência, podendo ocorrer com um único indivíduo ou com sociedades inteiras. A origem desse processo está relacionada a interrupções e impedimentos de modos de vida, seja por causas naturais ou provocadas, como desastres ambientais, químicos ou nucleares, fome, miséria, guerras, colapsos econômicos (OIM, 2009; IOM, 2019). Também se pode entender esse movimento como migração involuntária, pois a decisão de partir não vem de um desejo de abandonar a terra de origem, mas do fato de que o indivíduo é obrigado a se deslocar para sobreviver. Nessa mesma linha de entendimento, ―migração por sobrevivência‖ é outra forma de denominar o mesmo fenômeno, segundo Corrêa et al. (2015).

Sobre movimentos como esse, Bauman (2011) diz que são empurrados por trás e puxados pela frente por esperanças ainda não colocadas à prova. Ainda assim, há um peso maior no lado do empurrar, visto que os ―vagantes‖15

, onde quer que estejam, estão em um lugar ao qual não pertencem. Por isso, ocupam postos de trabalho menos desejados pela população local. Na classificação da IOM (2019), são os trabalhadores migrantes de baixa qualificação, cujo nível de escolaridade, experiência profissional ou qualificações os tornam aptos apenas para a prática de ocupações tipicamente de baixa qualificação. É importante distinguir entre ―trabalhos pouco qualificados‖ e ―trabalhadores migrantes de baixa qualificação‖, uma vez que trabalhos que exigem baixo nível de qualificação são frequentemente realizados por migrantes qualificados, o que resulta na sua sobrequalificação16 (CAVALCANTI, 2015; MARINUCCI, 2017).

Como exemplo de migração empurrada, inicialmente pode-se pensar nos

refugiados, que são forçados a deixar seus países em função de risco à segurança

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O vagante integra uma das quatro metáforas de viver a vida em deslocamento propostas por Bauman (1999; 2011) que são apresentadas nesta tese no pilar Subjetividade.

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Termo utilizado quando um indivíduo possui qualificação superior à necessária para o seu posto de trabalho.

física, inclusive risco de morte. São indivíduos que fogem devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas ou devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, geralmente, relacionada a conflitos armados (UNHCR, 2018). Também se pode pensar nos migrantes enquanto indivíduos que precisam abandonar seus países por estarem privados de condições e recursos que assegurem a sobrevivência. Essa é uma perspectiva muito discutida pelo prisma humanitário, e difere da primeira perspectiva de migrante apresentada na migração puxada. Atualmente, esses migrantes têm sido subcategorizados em imigrantes ambientais – que migram em função das alterações ambientais repentinas ou progressivas que afetam negativamente as suas condições de vida – e em imigrantes econômicos – que migram em função de cenários de baixa qualidade de vida ou de colapsos econômicos, financeiros e políticos que não permitem condições de vida satisfatórias nos seus países (OIM, 2009; IOM, 2019). Em relação à origem, em termos de tendências gerais, estes indivíduos são oriundos do sul global. Toma-se como exemplo o Global Trends (UNHCR, 2019), cuja pesquisa aponta que dos cinco países origem de refugiados e migrantes em situação de vulnerabilidade ao final de 2019, todos são do sul global: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar.

É importante salientar que, com base em Ventura (2016), em princípio a diferença entre migrantes e refugiados consistiria na vontade do indivíduo de se deslocar ou não. No caso da migração, haveria o desejo de partir e, no refúgio, um impedimento para ficar, como a situação do puxa-empurra descrita por Bauman (2011). Porém, quando se compara os imigrantes econômicos/ambientais e os refugiados, essa diferença se torna cada vez mais tênue – e este é também o entendimento trazido para esta tese. Embora seja nítida a ideia de não poder permanecer no país diante de conflitos armados, também é razoável pensar que frente a colapsos econômicos, sociais e desastres ambientais os meios de sobrevivência podem desaparecer e, por isso, os indivíduos são empurrados ao movimento migratório. Esse tipo de mobilidade não necessariamente é indesejada pelo país de destino, e ela até pode ser oportuna, mas em condições (geralmente precárias) que atendam ao mercado de trabalho imigrante, e somente quando tal necessidade existir (VENTURA, 2016).

O sociólogo Sayad, autor clássico dos estudos migratórios, associa o imigrante a ―um trabalhador definido e tratado como provisório‖ (SAYAD, 1979, p. 55). Sua existência e estadia no país de destino dependem de trabalho, porém ele não tem os mesmos acessos dos nativos ao mercado de trabalho, visto que há restrições simbólicas que pairam na sociedade. Contudo, para Agier (2016), o migrante de hoje não é mais aquele trabalhador imigrante. Há algo que não se encontra mais. A figura do migrante contemporâneo é outra: menos estável, formada por algo que é múltiplo, situada entre várias âncoras, ainda que precárias, entre as inserções parciais e provisórias na economia do país de acolhida ou de trânsito. É uma forma de presença no mundo que estará sempre em um lugar à fronteira, um ―entre dois‖.

Embora os tipos de migração sejam apresentados de modo dicotômico – espontânea/puxada e forçada/empurrada – os esforços de órgãos e organizações no sentido de categorizar os tipos de migrantes não podem ser simplesmente reduzidos a uma divisão binária. Esse é apenas um recurso de escrita, já que, para a presente tese, entende-se as mobilidades globais como rizomáticas, constituídas por múltiplas formas de deslocamento. Tal olhar sobre a ambivalência de termos acompanha o pensamento de Bauman e Raud (2018). Para os autores, o esforço em atribuir categorias a um mesmo fenômeno se origina da inquietude humana em sair do ambiente familiar e, assim, vagar em novos territórios, estranhos e escassamente mapeados. Como resultado, de um lado, busca-se a singularidade semântica, o que acaba por sobrecarregar o espaço com um excesso de significados; por outro, tem- se a noção de que a realidade não conseguirá ser exaustivamente descrita, de que sempre haverá pontos em branco. Agier (2016) acrescenta que o surgimento de nomenclaturas forma um mundo de migração no interior de um único planeta, mas isso tem fragmentado a sua organização social e jurídica, que é capaz de ditar como o estrangeiro será ou não acolhido e inserido na sociedade de destino.

Nesse sentido, guardadas as distintas motivações de deslocamento – que classificam o indivíduo em uma ou outra nomenclatura – pode-se dizer que todos eles são migrantes. Migrar consiste em se deslocar a outro país por tempo indeterminado ou definitivo. Quem sai do seu país, emigra, quem entra em um país estrangeiro, imigra. Portanto, todos são migrantes – emigrantes e imigrantes (SCHERER; PRESTES; GRISCI, 2019). Uma visão aproximada também é sustentada por autores como Agier (2016), Mezzadra (2005; 2012; 2015) e Sayad

(1979), que utilizam em suas obras o termo migrante como uma espécie de conceito guarda-chuva. Essa abordagem contempla uma multiplicidade de indivíduos que migram internacionalmente, sendo que tal percurso não pode ser visto apenas pela ótica da imigração, ou seja, pelo fato de já se estar em um país de destino. Antes disso, ocorre um processo de emigração da terra natal, por diferentes razões, o que sugere uma proposta de análise contextual e ampliada. Com base nessa perspectiva, mesmo que os indivíduos foco deste estudo, oriundos de migração empurrada, possam ser nomeados de forma distinta, como migrantes e como refugiados, ainda assim é possível chamá-los simplesmente de migrantes. Observa- se que a opção pela menção do termo refugiado ao lado de migrante é uma forma de chamar a atenção à condição legal específica desses indivíduos, como se observa a seguir.