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2.1 MIGRAÇÃO

2.1.3 Desdobramentos Conceituais e Legais no Contexto Brasileiro

No Brasil, o Estatuto dos Refugiados, definido pela Lei nº 9.474/1997, acompanha a interpretação de diretrizes internacionais da Organização das Nações Unidas, como: (i) a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948; (ii) o instituto do refúgio estabelecido pela Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951; (iii) o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967; (iv) a Declaração de Cartagena de 1984; e (v) todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o governo brasileiro está comprometido. Essa legislação (BRASIL, 1997) reconhece como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Com o intuito de esclarecer procedimentos e critérios que determinam a condição de refúgio, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) disponibiliza um manual para auxiliar os 148 Estados que são parte da Convenção de 1951 e/ou do Protocolo de 1967, documentos que contextualizam os elementos conceituais de

refugiado. Nesse manual (ACNUR, 2011), enfatiza-se que a expressão ―fundado temor de perseguição‖ é o elemento-chave da definição do termo refugiado.

O substantivo ―temor‖ é acrescido do adjetivo ―fundado‖, ilustrando que apenas a palavra do solicitante não basta para que seja reconhecida a condição de refugiado, uma vez que é averiguado se esse temor encontra fundamento em uma ocorrência concreta, de modo que se busca conhecer as condições do país de origem do solicitante de refúgio. Ainda que não seja um objetivo em si mesmo, tal elemento importa para a verificação da credibilidade das declarações prestadas. A expressão ―fundado temor‖ contém, portanto, um elemento subjetivo e outro objetivo, sendo que, para determinar sua existência, ambos os elementos devem ser considerados (ACNUR, 2011).

No que se refere ao elemento ―perseguição‖, pode-se inferir que está relacionado à ameaça à vida, à liberdade ou a outras violações de direitos humanos. A perseguição está normalmente relacionada à ação das autoridades do país, mas também pode advir de segmentos da população que não respeitam padrões estabelecidos nas leis nacionais. Nesse sentido, cada caso tem que ser analisado em suas especificidades pela ACNUR ou pelo órgão competente de cada país (ACNUR, 2011).

Como forma de detalhar além do prescrito na Convenção de 1951, a ACNUR (2015) explica que refugiado é o indivíduo que escapou de conflitos armados ou perseguições. Com frequência, sua situação é tão perigosa e intolerável que ele deve cruzar fronteiras internacionais para buscar segurança nos países mais próximos, e então se tornar um refugiado reconhecido internacionalmente, com acesso à assistência dos Estados, da ACNUR e de outras organizações. Esse indivíduo passa a ser reconhecido como refugiado precisamente porque é muito perigoso para ele voltar ao seu país e, nesse caso, a negação de um lugar para se refugiar pode ter consequências vitais (ACNUR, 2015).

Para Almeida (2000), quem busca refúgio é um ser humano que foge da violência; muitas vezes, não possui nenhuma espécie de documento e, portanto, não é cidadão de nenhum Estado. O país que lhe concede o estatuto de refugiado lhe dá a primeira proteção do Direito, vinculando-o a uma nova ordem jurídica, resgatando sua cidadania perdida. Esse é o primeiro passo na recuperação da dignidade humana (ALMEIDA, 2000). Os efeitos dessa condição são extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo

familiar que dependem economicamente do refugiado, desde que se encontrem em território nacional (BRASIL, 1997; ACNUR, 2011).

É necessário destacar que é recorrente que a literatura e as notícias da mídia, em geral, associem a expressão refugiado à imigrante, muitas vezes confundindo os termos. O conceito de imigrante, conforme a nova Lei de Migração nº 13.445/2017, é bastante amplo: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil. Portanto, pode-se dizer que o refugiado é também um imigrante. O que frequentemente diferencia esses sujeitos é o motivo da migração.

D‘oco (2016), por exemplo, considera que o imigrante se desloca pela possibilidade de ascensão econômica ou pela oportunidade de estudar; já o refugiado faz um movimento forçado, a partir de uma situação de coação, incluindo a ameaça de vida e de subsistência. Porém, como citado na seção anterior sobre os termos relativos à migração, essa diferenciação não é simples de articular. Também não há uma definição jurídica internacional sobre o que é ser um imigrante (como há para refugiado), portanto cada país é livre para realizar sua interpretação (PAULIC; MAUGER, 2016).

Por isso, no Brasil, foi estabelecido um tipo de entrada especial ao imigrante que vive um processo de migração forçada/empurrada, mas que não se enquadra no conceito de refugiado – é o visto de acolhida humanitária, que aproxima ainda mais os conceitos de imigrante e refugiado. Conforme a nova Lei de Migração (BRASIL, 2017a):

o visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento.

Para o Ministério da Justiça e Cidadania, o visto humanitário pode ser aplicado às mesmas situações de um refugiado, mas também a vítimas de crises econômicas e ambientais – categorias não contempladas no refúgio (BRASIL, 2016a). Conforme Pereira e Abreu (2016), em 2010, com a entrada dos primeiros

haitianos17 no Brasil, o Estado brasileiro optou por acolhê-los por meio de um programa diferenciado de proteção internacional, paralelo à legislação especial referente aos estrangeiros (BRASIL, 1980) da época e até mesmo ao Estatuto de proteção dos refugiados (BRASIL, 1997). A estratégia foi a de conceder o chamado ―visto humanitário‖, a partir de 2012, aos considerados ―refugiados ambientais haitianos‖ (que não são considerados refugiados pela ONU em virtude de não estarem sendo perseguidos) como ferramenta de proteção complementar, pelo prazo de cinco anos, conforme Resolução Normativa de nº 97 do Conselho Nacional de Imigração, podendo ser renovada.

Jubilut e Madureira (2014) atribuem a essas vítimas o nome de deslocados ambientais, por não serem considerados refugiados. Mesmo assim, os autores entendem que eles são indivíduos que foram forçados a deixar seu habitat natural em função de uma ruptura ambiental natural ou ocasionada pelo próprio homem, ou seja, por uma situação que ameaçou sua existência ou qualidade de vida. Os autores reforçam, ainda, que esses desastres naturais são cada vez mais frequentes e obrigam milhares de indivíduos a se deslocar.

Situação semelhante, que se enquadra na questão de visto humanitário, vem ocorrendo recentemente com o fluxo migratório de venezuelanos para o Brasil devido à crise política e econômica estabelecida na Venezuela. Por serem originários de um país que faz fronteira com o Brasil, os venezuelanos podem solicitar residência temporária no país, conforme Portaria Interministerial nº 9, de 14 de março de 2018. Porém, devido ao motivo da migração e à intensificação desse processo desde 201418, com pico expressivo em 2018, também é possível aos venezuelanos realizarem uma solicitação de refúgio, sendo que posteriormente é definido se o migrante recebe o registro de refugiado ou de residência temporária.

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O Haiti é o país com maior número de vítimas fatais por catástrofes naturais, contabilizando 229.699 mortes ao longo dos últimos 20 anos. Nesse período, o desastre mais mortal foi o terremoto de janeiro de 2010, na capital Porto Príncipe, que matou mais de 220 mil pessoas, levando mais de 2 mil haitianos a migrarem para o Brasil somente naquele ano. O Haiti ainda passou por três anos de seca em função do El Niño, até ser atingido, em 2016, pelo Furacão Matthew (AGÊNCIA BRASIL, 2016; PEREIRA; ABREU, 2016). Conforme relatório Global Trends da ONU, em 2016, somavam-se 75.073 haitianos solicitantes de proteção (UNHCR, 2016).

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Conforme relatório Global Trends da ONU, até o final de 2018, somavam-se 3,4 milhões de venezuelanos que solicitaram proteção em diversos países (UNHCR, 2018). No Brasil, segundo o Ministério da Justiça, foram 201 pedidos em 2014, 822 em 2015, 3.375 em 2016, 17.865 em 2017 e 61.681 em 2018 (BRASIL, 2018; 2019).

Até julho de 2019, embora o Brasil já tenha recebido a solicitação de refúgio de mais de 110 mil venezuelanos (POLÍCIA FEDERAL, 2019), apenas 174 haviam sido reconhecidos como refugiados (ACNUR, 2019a), o que mostra os embaraçamentos entre a legislação e os emaranhados do ―tecido da vida‖ e o quanto as migrações estão cada vez mais mistas (HÉRAN, 2016).

Quanto aos procedimentos para solicitação de refúgio, o estrangeiro que chega ao território nacional pode expressar a vontade de solicitar reconhecimento como refugiado19 a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira e, conforme o princípio da não devolução (non-refoulement), em hipótese alguma ele pode ser deportado para território em que sua vida ou liberdade sejam ameaçadas, mesmo que ele esteja em situação irregular ou indocumentada (ACNUR, 2011).

No Brasil, compete ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, analisar o pedido e declarar o reconhecimento da condição de refugiado, orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, da assistência e do apoio jurídico aos refugiados. O refugiado e o imigrante têm direito à cédula de identidade comprobatória de sua condição jurídica, à carteira de trabalho e a documento de viagem (BRASIL, 1997; 2017a).

Após realizada a solicitação de refúgio, cabe ao Departamento de Polícia Federal emitir protocolo em favor do solicitante e de seu grupo familiar que esteja em terras brasileiras, autorizando a estada até a decisão final do processo. Isso permite ao Ministério do Trabalho expedir carteira de trabalho provisória para o exercício de atividade remunerada no país. Ressalta-se que enquanto esse processo está pendente, o indivíduo ainda é um solicitante de refúgio, e não um refugiado. Além disso, esse indivíduo também não possui ainda um visto humanitário, sendo aplicável a ele a legislação vigente relativa ao migrante, a saber, a Lei de Migração (nº 13.445/2017).

Proferida a decisão como refugiado, o CONARE o notifica para registrar-se no Departamento de Polícia Federal, devendo assinar termo de responsabilidade e

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Cabe ressaltar algumas restrições que impossibilitam um indivíduo de se beneficiar da condição de refugiado: já desfrutar de proteção ou assistência por parte de organismo ou instituição das Nações Unidas que não a ACNUR; residir no território nacional e ter direitos e obrigações relacionados à condição de nacional brasileiro; ter cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas; ser considerado culpado de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas (BRASIL, 1997; ACNUR, 2011).

solicitar cédula de identidade pertinente. Quando um pedido de refúgio é negado, mas subsistem preocupações humanitárias, o CONARE pode encaminhar o caso ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que tem o papel de buscar soluções alternativas de proteção (GODOY, 2011), como o visto humanitário ou outras formas de autorização de permanência, como a residência temporária. A ACNUR (2011) lembra que cabe recurso a uma primeira decisão não favorável. Em caso de aceite do recurso ou caso o pedido tenha sido acatado prontamente, o pleiteante de refúgio obtém o direito de ser assentado em um Estado que o receba.

Há casos em que um refugiado, mesmo protegido em um país estrangeiro, solicita o reassentamento em um segundo país. Esse fato decorre quando não se aplicam mais as condições necessárias para a proteção ou integração no primeiro país de refúgio (LEÃO, 2011). Isso pode ocorrer quando a vida, a liberdade, a segurança, a saúde, o acesso ao trabalho ou outros direitos humanos fundamentais estão em risco também no país de refúgio, ou quando esse país não tem estrutura interna para atender essas necessidades (MENEZES; REIS, 2013). Tais circunstâncias conformam uma situação imperativa que impulsiona a necessidade de se encontrar outro país de acolhida para o refugiado. Quando um indivíduo está em um terceiro país, isto é, seu segundo país estrangeiro com vistas à proteção internacional, não sendo nem o seu país natal e tampouco o primeiro país estrangeiro que lhe concedeu refúgio, é considerado um refugiado reassentado (LEÃO, 2011).

Por fim, é possível perceber e evidenciar que a legislação e os acordos internacionais vão se modificando na medida em que os Estados se deparam com a concretude de novas situações migratórias em seus territórios. Novas categorias jurídicas surgem, visto que as novas e múltiplas situações do tecido da vida não cabem mais nas categorias antigas (HÉRAN, 2016). Isso mostra a dinâmica existente entre Estados e fluxos migratórios. Os primeiros estão em tentativa constante de controlar quem pode entrar e sair de suas fronteiras; e os segundos estão em constante reconfiguração e tentativa de romper tais aparatos legais devido a forças estruturais de ordem global e capitalista que os impulsionam a movimentos de migração e refúgio.