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CAPÍTULO III – VESTIMENTA E DISTINÇÃO: GÊNERO, IDADE E

3.4 A MORTALHA

A moda inaugurou o entreposto dialético entre a mulher e a mercadoria – entre o desejo e o cadáver. Seu espigado e atrevido caixeiro, a morte, mede o século em braças e, por economia, ele mesmo faz o papel de manequim e gerencia pessoalmente a liquidação que, em francês se chama revolution. Pois a moda nunca foi outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas. Isso é a moda.327

A moda pode mesmo estar fadada a não mais existir, já que também é um invento que permite a fabulação de si mesmo, a incrível aventura de ser o outro. É essa mesma realidade que nos mostra a impossibilidade de viver em um mundo em que tantos produtos ou artefatos são insensivelmente usados como forma de vivenciar um novo impossível. Desprezada, mesmo deixando de ser útil, haverá uma substituição dela por outra, que vai gerar novo descarte, nova experiência rápida em que o desejo de saber supera o prazer de vivenciar, levando a um desinteresse imediato; atinge seu ápice e depois começa a cair, sendo deixada de lado, e logo ela morre.

E mesmo morto haverá necessidade de vestir esse corpo em que não há mais vida. Essa peça que cobre o ser sem vida chama-se mortalha. É essa indumentária que veste o morto, esse corpo inerte, esperando serem atendidos seus últimos desejos, amortalhado de acordo com o que cada um determinou em inventário. A mortalha nada mais é que a última moda que cada um irá usar.

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ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.156. Disponível em: <http://estudodainfancia.blogspot.com.br/2012/08/o-traje-das-criancas.html>. Acesso em: 01/08/2016.

326

HAROCHE, Claudine. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no ocidente. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008, p.58.

327

BENJAMIM, Walter. Passagens. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p.101-102.

As roupas do século XVIII eram tão importantes para os vivos quanto as mortalhas eram para os mortos. As mortalhas, inseridas na cultura material, vestiam os corpos dos mortos da cidade de São Paulo, conforme registros de óbitos do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo do século XVIII, no período de 1765 a 1776. Muitas pessoas tinham seus últimos desejos, definiam como queriam ser enterradas e ser vestidas para seguir para a última morada ao lado do Pai. Foram pesquisados três livros de registros de óbitos no referido Arquivo, sendo um livro da região central e dois livros da região da Freguesia de Santo Amaro. A escolha dessas duas regiões foi proposital, já que a Freguesia de Santo Amaro era um bairro distante do centro de São Paulo.

A maioria da população do centro da cidade de São Paulo era amortalhada com um hábito religioso, que poderia ser como o hábito de São Francisco ou como o hábito de Nossa Senhora do Carmo. E, para usar esses hábitos, os indivíduos tinham que pertencer a tais ordens. A Ordem Terceira de São Francisco era a que mais tinha devotos – a maioria dos moradores do centro da cidade de São Paulo era amortalhada com o hábito de São Francisco.

As ordens surgiram para promover o catolicismo entre a população. Em movimento desencadeado pela hierarquia eclesiástica, associações de leigos que formariam novas agremiações, como a Ordem dos Frades Menores da Regular Observância de São Francisco (1517)328, no século XVII, estabeleceram a Ordem Terceira Franciscana, que chegou ao Brasil no século XVII, primeiramente no Rio de Janeiro, depois na Bahia, em Santos e, por fim, na cidade de São Paulo.329 Suas vestes330 eram feitas de panos grosseiros, em cor parda, tons de marrom ou nuances escuras, mas o preto tornou-se a cor de identificação desses religiosos, simbolizando a pobreza e o desapego das coisas materiais.

Para pertencer a uma das ordens religiosas – ou seja, tanto a Ordem Franciscana como a Ordem de Nossa Senhora do Carmo –, o sujeito precisava se associar à irmandade331, assim teria garantia de assistência em caso de morte,

328

MORAES, Juliana de Mello. Os livros da Ordem Terceira de São Francisco entre Portugal e América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII. História, Histórias. Brasília, vol. 2, n. 4, 2014, p.62.

329

Ibidem, p.62.

330

SCHMITT, Juliana. Mortes vitorianas: corpos, lutos e vestuário. São Paulo: Alameda, 2010, p.83.

331

QUINTÃO, Régis Clemente. Ritos fúnebres dos escravos e forros nas Minas Gerais do século XVIII: um debate historiográfico. Igualitária: Revista do Curso de História da Estácio BH. Belo Horizonte, n. 6, 2015, p.4.

como ser enterrado em cemitério da irmandade e contar com alguns sacerdotes acompanhando seu enterro. Os ritos332 de morte eram tão importantes quanto os ritos de casamento e nascimento. Através deles o morto encontraria a salvação eterna, já que todos esperavam entrar no Reino da Glória e ficar ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para isso contribuiriam as missas que seriam rezadas após sua morte e as doações realizadas aos pobres; muitos até libertavam seus escravos para alcançar a salvação.

Em São Paulo, a maioria desejava ser amortalhada com o hábito de São Francisco, e isso era feito através dos inventários post mortem, escritos minuciosamente333 pelo indivíduo antes de sua morte. Nesse inventário constava a quantidade de missas póstumas, como seriam as mortalhas – geralmente eram hábitos de São Francisco ou de Nossa Senhora do Carmo – e sempre o inventariado deixava dinheiro também para os santos de sua devoção, como foi a vontade de Joseph Rodrigues Pereira.

Figura 78 - Franciscano, Igreja de São Francisco de Assis - São Paulo.334

332

QUINTÃO, Régis Clemente. Ritos fúnebres dos escravos e forros nas Minas Gerais do século XVIII: um debate historiográfico. Igualitária: Revista do Curso de História da Estácio BH. Belo Horizonte, n. 6, 2015, p.3.

333

Ibidem, p.4, 9.

334

Joseph Rodrigues Pereira, aos vinte e hum de novembro de mil sette centos e settenta faleceo Joseph Rodrigues Pereira, viúvo por fallecimento de Dona Anna de Oliveira Montes com todos os sacramentos que foi na Capella dos Franciscanos de Sam Francisco. E fez seu testamento em que ordenou que seu corpo fosse amortalhado em hábito de Sam Francisco e por cima o hábito da Ordem, foi sepultado na Capella da Ordem terceira de Sam Francisco e levado na tumba da misericordia acompanhados ou que quicessem ver ao enterro e se redaria velho de que também seria acompanhado pelos parachos. Segundo outras disposições e ligados que não declara que fez seu testamento, porém com as couzas muito de estado e senão poderão cumprir as posições delas declara ao santíssimo sacramento da Sé Catedral cincoenta mil reis a Nossa Senhora do Rosário da Capella de Santo Antonio, cincoenta mil reis e revoga todos os mais ligados do testamento e também missas excepto as de corpo presente declara mais que se reza cincoenta missas em louvor a Sam Joseph deixa a Nossa Senhora da Penha seis mil quatro centos manda que dem dez patacas a Nossa Senhora do Monsette de Santos de esmolas de dez missas deixa cinco patacas à Senhora do Carmo desta cidade e que se diga dez missas pelas almas dos vivos e defuntos com quem vive regalos.

Os ligados que ficarão sem revogasão o que tudo fiz este testamento.335

Muitos moradores eram devotos também da Ordem de Nossa Senhora do Carmo e desejavam ser enterrados com o hábito pertencente a essa Ordem, como a defunta Anna Teixeira.

Anna Teixeira seis de outubro de mil sette centos e setenta sepultada na Igreja de Sam Bento acompanhada pelo Paracho e 3 clérigos o testamento determinou o seguinte: que seja sepultada na Igreja Sam Bento de fronte de Nossa Senhora do Pillar, amortalhada no hábito de Nossa Senhora do Carmo. Levado na tumba da Misericordia.336

Na região central da cidade de São Paulo, tanto os abastados como os mais pobres livres eram amortalhados com hábitos de São Francisco ou de Nossa Senhora do Carmo, desde que pertencessem à irmandade, diferentemente dos escravos. Os registros dos óbitos não especificam quais eram as mortalhas dos

335

Registros de óbitos 1-2-21. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

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escravos, não se sabe ao certo se eram enterrados nus ou com alguma mortalha. Um dos poucos documentos em que aparece a informação se refere ao escravo Antonio, solteiro, escravo do Capitão Mathias de Oliveira Bastos, amortalhado em pano branco com todo o sacramento. Cecília, casada com Paulo, escravo do Capitão-mor Manoel de Oliveira Cardoso, faleceu subitamente em 8 de abril de 1769 e foi amortalhada também em um pano branco, sepultada no Adro da Sé.337

A ausência dos sacramentos da Igreja Católica Apostólica Romana no sepultamento acarretaria multa de dois mil reis (2$000), pois era obrigação dos parentes chamar o pároco para o moribundo, para que pudesse receber as bênçãos da santíssima igreja. Foi o caso da filha da defunta Maria Bueno e da filha de Francisco Xavier Garcia, no ano de 1765; ambas não chamaram o pároco a tempo de dar os sacramentos e por isso tiveram que pagar multa de dois mil réis.

Maria Bueno aos vinte e dois dias do mês de abril d 1765 faleceo da vida presente Maria Bueno sem sacramentos porque não chamarão a tempo na vida que já na agonia de morte chegou Pe. Mel de Figueirdo, por isso condenou sua filha em dois mil reis, fez testamento no qual determina que seja sepultada na ordem terceira da Senhora do Carmo e amortalhada em habito da mesma ordem deixa os sufragios a eleição.338

Francisco Xavier Garcia aos vinte quatro de abril de mil sette centos e cinco faleceo sem sacramentos Francisco Xavier Garcia por não avisar estando enfermo na cidade de e por isso condenou sua filha em dois mil reis, foi amortalhado em habito de Nossa Senhora do Carmo enterrado na sé.339

Na freguesia de Santo Amaro, a maioria da população era enterrada com panos ou lençóis brancos, fosse a família rica, pobre ou de escravos, como o defunto Joam Rodrigues de Crasto, com 75 anos, que deixou metade de sua fazenda para o convento de São Francisco e outra metade para o Convento de Nossa Senhora de Vila de Itanhaém. No seu inventário, desejou ser amortalhado de pano branco.

337

Registros de óbitos 1-2-21. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

338

Registros de óbitos 1-2-21. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

339

Mas Josefa Florinda, mulher de Joseph Lino da Silva, foi enterrada na igreja matriz de Santo Amaro e amortalhada com o hábito da Ordem Terceira de São Francisco. Morreu em 24 de março de 1770, com todos os sacramentos da igreja.340 Entre os registros de óbito pesquisados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, Josefa foi a única mulher a ser amortalhada com o hábito de São Francisco na freguesia de Santo Amaro.

A abundante produção de testamentos, feitos pelos homens de todos os estratos sociais341, tornava-se também prática de manutenção da memória do morto. No inventário de João Rodrigues do Prado, por exemplo, amortalhado de pano branco, conforme desejo expresso no documento, está toda a história de seus pertences, como eram utilizados pelo próprio morto, o que significava cada item e quais os valores agregados por ele.

O escravo Miguel foi enterrado de branco pelo dono, Joam Maciel. Todos os registros de óbito referentes à freguesia de Santo Amaro especificam o uso da mortalha, seja de pano branco, com hábito de São Francisco ou com hábito de Nossa Senhora do Carmo. Já nos registros relativos à região do centro da cidade, somente consta descrição sobre pessoas livres amortalhadas – como já mencionado, não aparece na maioria dos registros de forros e escravos essa informação. Fica uma interrogação: será que houve esquecimento a respeito das vestes desses indivíduos nos registros de óbito? Ou para os moradores essa especificação em relação aos escravos e forros não tinha importância? A mortalha é tão significativa quanto um símbolo da morte, é a última veste a cobrir o corpo dessa pessoa que um dia teve vida.

Aos trinta e hum de agosto de mil sette centos e sessenta e oito falaceo da vida presente João Rodrigues do Prado com todos os sacramentos da penitência da Eucarístia e Extrema Unção idade de 45 annos filho de Amaro Rodrigues Velho fez testamento em que deixou por sua alma dezeseis missas foi amortalhado em motalha branca foi sepultada na igreja Matriz de Santo Amaro.342

340

Registros de óbitos 4-2-42. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

341

SCHMITT, Juliana. Mortes vitorianas: corpos, luto e vestuário. São Paulo: Alameda, 2010, p.158.

342

Aos vinte e cinco dias do mês de setembro de mil sette centos e settenta e dois faleceo da vida presente Miguel escravo de Joam Maciel, casado com Catarina forra natural desta freguesia de Santo Amaro de idade de sincoenta annos com os sacramentos foi amortalhado em panno branco.343

Aos vinte e quatro de abril de mil sette centos e settenta e quatro faleceo da vida presente Joam Rodrigues de Crasto setenta e sinco annos de idade com todos os sacramentos fez seo apontamento seo corpo foi sepultado ao pé de Nossa Senhora do Rozario onde se sepultou deixou 25 missas por sua alma e o remanscente de sua fazenda se dese a metade ao convento de Sam Francisco de Sam Paulo e outra metade ao Convento de Nossa Senhora de Vila de Itânhaem deixou mais uma das dá de esmola a Santo Amaro e outra Nossa Senhora do Rozario, nomeou por seo curadores a Domingos Francisco ao Tenente Caetano Barbosa e a Tenente Manoel da Silva, foi amortalhado em panno digo lençol recomendado e acompanhado de cruz de fabrica e do Rozario e conduzido na tumba para Igreja Matriz de Santo Amaro.344

Poucos moradores da freguesia de Santo Amaro eram amortalhados com o hábito de São Francisco ou com o hábito da Ordem do Carmo, somente os que faziam parte de uma das agremiações, mas a maioria era enterrada na igreja matriz de Santo Amaro. A freguesia ficava muito distante do centro da cidade de São Paulo e as irmandades estavam todas nessa região central.

Mesmo os que não tinham dinheiro, conforme identificado nos inventários, podiam ser amortalhados com hábitos de São Francisco ou de Nossa Senhora do Carmo, mas eram associados à irmandade. Foi esse o caso dos defuntos: Bernardo de Moura, de 74 anos, e Jorge Moreira Saldanha, de 70 anos mais ou menos, sepultados com hábito da ordem de São Francisco, mesmo não tendo dinheiro para o inventário; e Anna Tenória, de 80 anos mais ou menos, e Luís Rodrigues da Silva, amortalhados com hábito de Nossa Senhora do Carmo.

343

Registros de óbitos 4-2-42. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

344

Figura 79 - As Carmelitas. Pintura do teto da Igreja Nossa Senhora do Carmo - São Paulo.345

O hábito das carmelitas era usado pelas mulheres que pertenciam à ordem de Nossa Senhora do Carmo, como Anna Tenória; os homens pertencentes à mesma irmandade usavam o hábito masculino da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo.

Aos tres de abril de mil sette centos e sessenta e oito faleceo da vida presente Anna Tenoria viuva de José Torres, natural desta freguesia de Santo Amaro de oittenta annos pouco mais ou menos, com os sacramentos não fez testamentos por não ter com que, foi amortalhada em hum habito de Nossa Senhora do Carmo acompanhada com a cruz de fabrica.346

Os homens, portanto, também eram enterrados com o hábito da ordem a que pertenciam, como Luís Rodrigues da Silva347, que faleceu em 26 de agosto de 1765, com 80 anos. Morreu com todos os sacramentos da igreja e foi amortalhado com o hábito da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, enterrado na igreja matriz de Santo Amaro.

345

Foto de Sandra Regina da Silva. Acervo pessoal.

346

Registros de óbitos 4-2-42. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

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Figura 80 - Os Carmelitas. Pintura do teto da Igreja Nossa Senhora do Carmo - São Paulo.348

Os escravos da região central em sua maioria eram enterrados no Adro da Sé, uma área externa em geral cercada das igrejas. Pode também ser usada como um lugar sagrado349 em que se enterram os mortos, como acontecia no século XVIII, na cidade de São Paulo, onde muitos escravos foram enterrados.

Desse modo, a pesquisa realizada no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo permite perceber que, no século XVIII, em São Paulo os moradores eram amortalhados com hábitos das ordens religiosas a que pertenciam; os que não pertenciam a nenhuma congregação eram enterrados com panos ou lençóis brancos; já quanto aos escravos mortos na região central, não há especificação sobre como foram enterrados, permitindo entender que eram sepultados supostamente nus.

No século XIX, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, as famílias mais abastadas, com o advento da fotografia350, passaram a embalsamar seus mortos, principalmente crianças, para tirar fotos e compor o álbum de família com a última lembrança daquele ente. Geralmente, as crianças usavam mortalha branca,

348

Foto de Sandra Regina da Silva. Acervo pessoal.

349

TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do caos ou cidade da conversão? São Paulo na administração do Morgado de Mateus. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2007, p.80.

350 VAILATI, Luiz Lima. As fotografias de “anjos” no Brasil do século XIX. Anais do Museu Paulista:

História e Cultura Material. São Paulo, vol. 14, n. 2, jul.-dez. 2006. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142006000200003>. Acesso em: 01/08/2016.

porque a cor simbolizava pureza e inocência. Segundo Juliana Schmitt, em Mortes

vitorianas, antes de ser embalsamado, o morto era vestido com sua melhor roupa e

bem penteado para parecer vivo no momento do retrato ao lado da família. Mas tudo isso só foi possível com o advento da fotografia, que possibilitou aos familiares guardarem a última lembrança de seus mortos.351

O uso dos hábitos de congregações religiosas, como os hábitos de São Francisco e de Nossa Senhora do Carmo, tinha uma função cristã escatológica.352 Segundo Norberto Tiago Ferraz, o propósito de se amortalhar com esses hábitos era garantir a intercessão desses santos de devoção junto a Deus, uma forma de ter a salvação eterna o indivíduo que usasse essas vestes envolvendo seus restos mortais. Assim, o uso dessas mortalhas poderia apresentar uma imagem de pobreza e humildade após a morte, imagem essa que muitas vezes não correspondia com a vida do falecido. Mas, segundo esse raciocínio, ser enterrado de maneira simples e humilde talvez pudesse servir como consolo com certeza da salvação.

Em 1740, na Inglaterra, o pequeno Marquês de Normambyd, de 3 anos de idade, foi amortalhado com uma saia amarela, recoberta por um vestido de veludo, traje das crianças pequenas; foram usadas ainda fitas da infância.353 As crianças da cidade de São Paulo, diferentemente do pequeno Marquês, mais precisamente na Freguesia de Santo Amaro, eram amortalhadas com muita simplicidade, em linho branco, e costumava-se acrescentar a palavra “inocente” aos seus nomes quando morriam:

Gertrudes Innocente faleceo da vida presente aos vinte e sete de dezembro de mil sette centos e settenta e hum amortalhada em linho mãe forra.

Joseph Innocente quatro annos aos dez de janeiro de mil sette centos e setenta faleceo da vioda presente fois amortalhado em linho mãe forra.

Quiteria Innocente dez annos aos dez de maio de mil sette centos e setenta e dois faleceo da vida presente filha de Domingos Rodrigues Cavalheiro e de sua mulher Anna Gomes

351

SCHMITT, Juliana. Mortes vitorianas: corpos, luto e vestuário. São Paulo: Alameda, 2010, p.177.

352

FERRAZ, Norberto Tiago. Vestidos para a sepultura: a escolha da mortalha fúnebre na Braga setecentista. Tempo [online]. Niterói, vol. 22, n. 39, jan.-abr. 2016, p.111.

353

ARIÈS, Philippe. O traje das crianças. In: ARIÈS, Philippe. História social da criança e da

família. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.4. Disponível em: <http://estudodainfancia.