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CAPÍTULO III – VESTIMENTA E DISTINÇÃO: GÊNERO, IDADE E

3.3 ROUPINHAS

Nas descrições de bens encontradas nos inventários e testamentos é muito difícil aparecerem roupas infantis, as “roupinhas”.319

Depois de muita pesquisa no Arquivo do Estado de São Paulo, foi possível encontrar referência a trajes de

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Inventários e Testamentos, século XVIII - 1765-177. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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ROCHE, Daniel. O povo de Paris. Ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p.223.

crianças somente no inventário e testamento de Theodozia Maria de Jesus, mulher que morreu ainda jovem. Somos levados a crer que as “roupinhas” eram peças infantis pelo fato de ela ter deixado três crianças pequenas, todas meninas: a mais velha, Maria Angélica, de 5 anos; Manoela, de 2 anos e quatro meses; e um bebê, Anna Gertrudes, de 1 ano e meio. Na relação de roupas consta uma roupinha de seda branca, preta e amarela enfeitada de cetim cor de rosa forrada de tafetá e bretanha, que é um tecido fino de algodão ou linho, muito usado no século XVIII; e uma roupinha comprida de chita da Índia forrada, o corpo de bretanha, novamente da França.

Declarou mais huma roupinha de ceda branca, preto, amarelo. Guarnecida de cetim recortado cor de rosa forrado de tafetá bertanha que os avaliadores viram avaliaram em 6$400 com que se sahe.

Declarou mais uma roupinha comprida de xita da Índia forrada o corpo de bertanha de França em bom uso que os ditos avaliadore avaliaram em 2$800 com que sahe.320

As peças declaradas no inventário de Theodozia naquele período eram denominadas “roupinha”, e não “roupa infantil”. Não havia a noção de infância, a criança aos 7 anos já era ensinada a ter um comportamento decente. As cores das roupas dos pequenos eram as mesmas dos adultos, pois não havia essa variedade de tons no século XVIII; as crianças eram vistas simplesmente como adultos mirins.

Nesse período, as crianças se vestiam igual aos adultos, principalmente as meninas, e os meninos usavam vestidos mais ou menos até os 4 anos de idade.321 Somente no início do século XX os meninos deixaram de usar essa peça, passando a vestir calças curtas.

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Inventário e Testamento: Teodozia Maria de Jesus. CO 548, 1771. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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ARIÈS, Philippe. O traje das crianças. In: ARIÈS, Philippe. História social da criança e da

família. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.2. Disponível em: <http://estudodainfancia.

Figura 77 - Casaca de criança (palmela, réplica de roupa de criança século XVIII) - Museu Nacional do Traje, Lisboa - Portugal.322

Essa réplica de roupa de criança nos permite observar como os meninos se vestiam no século XVIII após os 4 anos, quando deixavam de usar vestidos. Essa imagem confirma que as roupas das crianças eram idênticas aos modelos dos adultos. O traje observado é composto por casaca, calção, camisa branca com punhos de renda e um lenço de renda no pescoço.

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MUSEU NACIONAL DO TRAJE. Disponível em: <www.museudotraje.pt/>. Acesso em: 08/12/2016. Referências da casaca de criança no Museu Nacional do Traje – Número de Inventário: 29720 TC / Tipo de Espécime: Transparência cores (TC) / Instituição/Proprietário: Museu Nacional do Traje / Número de Inventário do Objecto: 6377; 6378; 6379 / Categoria: traje / Denominação/Título: Casaca de criança (Palmela) / Datação: Século XX (c.1908) / Dimensões: Casaca Alt. 73 cm, Lg. Omb. 31 cm, Mga. 53 cm; Colete Alt. 48 cm, Lg. Ctas. 26,5 cm; Calças Alt. 66 cm, Cint. 63,5 cm / Informações técnica: Veludo de seda vermelho-escuro, bordão com fio, lantejoulas e canutilho de metal dourado. Colete de cetim de seda creme bordado. Calças de veludo vermelho / Fotógrafo: Carlos Monteiro, 2004.

Elemento formal, normativo, simbólico, sem dúvida, a roupa permite a compreensão das transformações e do funcionamento de uma dada sociedade. Elas são como as palavras de uma língua que é necessário traduzir e explicar.323

A roupa nos permite identificar determinados períodos da história, o modo como às pessoas se vestem caracteriza determinadas décadas, como as crianças que não tinham roupas específicas no século XVIII, fazendo com que os adultos vestissem seus filhos pequenos com roupas escuras. As meninas usavam modelos iguais aos da mãe e os meninos, até os 4 anos, vestiam um babador em formato de vestido, ou seja, era como um vestido de mulher. Enquanto as crianças pobres usavam roupas de segunda mão ou nem tinham o que vestir. Esse era o caso do menino Joaquim José, morador da freguesia de Guarulhos, processado juntamente com sua família por usar vestido de mulher.

Em outubro de 1743, Catarina Guedes e suas filhas Isabel Arcangela e Maria Gertrudes, moradoras da freguesia da Conceição de Guarulhos, foram processadas por vestirem de mulher o menor Joaquim José, filho de Catarina Guedes. O menino também foi processado; na ocasião, não tinha roupas masculinas, ou seja, roupas de homem. O menor era uma criança doente e acamada e a família não tinha condições de comprar suas roupas. Suas irmãs e sua mãe resolveram vesti-lo com vestido de mulher para ir à missa na igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição aos domingos e às segundas-feiras. A família foi denunciada por algumas inimigas, que talvez achassem desonestidade levar uma criança com traje inapropriado a uma igreja, por não ter mais idade para usar vestido.

Dizem Catarina, suas filhas por nome Isabel Arcangela, Maria Gertrudes e seo filho Joaquim José de menor idade nas superitendencias indo ouvir missa em dia de segunda domingo de outubro deste presente anno de 1743 na freguesia da Conceição de tivera da Cidade de Sam Paulo depois falta dos vestidos menino Joaquim José levava a igreja que satisfaça visto obrigação de preceito com vestidos de suas irmans que por favor suas inimigas juraram em hua duas fez ou denuncia a

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SOARES, Carmem Lúcia; ROVERI, Fernanda Theodoro. Entre laços, rendas e fitas, onde estão os botões? As roupas de crianças e a educação do corpo (década de 1950). ArtCultura. Uberlândia, vol. 15, n. 26, jan.-jun. 2013, p.155. Disponível em: <http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF26/6.3_ Entre_lacos_rendas_e_fitas.pdf>. Acesso em: 01/02/2017.

essa já feito semelhante procedimento com malicia ou dolo passarão superitendencia ter mais em que devia se cometteram grande delito contra as leis Divina e humanas.324

Após a denúncia, todos tiveram que responder a processo-crime, em audiência pública. O motivo do processo talvez fosse a idade de Joaquim José, que tinha entre 7 e 8 anos, sendo que meninos só podiam usar vestidos infantis até os 4 anos; mas não havia certeza quanto à real idade do menor e, sendo assim, ele não devia usar vestido. O processo durou pouco mais de quatro anos, de 3 de março de 1744 a 13 e julho de 1748. Nele foram ouvidas algumas testemunhas, que disseram não ter certeza da idade da criança na época do fato.

O Reverendo Senhor Doutor Manoel de Jesus Pereira perguntou às testemunhas o que tinham visto na ocasião da denúncia:

Que o Reo o fora em serta occasião à igreja vestido em trage de mulher e que suppoe que o vestirão nos dittos trage sua irmã mas que não sabe o fim para que foi à Igreja vestido em semelhante trage o que sabe pello ouvir e mais não disse. Testemunha Carlos Pedroso Moraes, casado natural da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, disse que naquelle tempo teria o Reo Joaquim José oito ou nove anos...

João Gonçalves Cardoso, Morador na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição natural da Vila de Sam Sebastião, disse que o Reo naquelle tempo teria sete ou oito annos pouco mais ou menos e então hoje terá ele bem precedido que foi obrigado da nececidade e falta de vestidos de homem e não pelos fins sinistros e dezonesto porque este a pouca idade vinha as irmãs do Reo pello seo bom procedimento haverão...

Houve ainda outra testemunha que declarou que o menino devia ter pouco mais de 6 anos, confundindo ainda mais a audiência de julgamento. Portanto, mesmo as roupas de criança seguiam regras que eram levadas a sério; após determinada idade, o menino já era considerado um homenzinho. Para Aires, não

324 Processo: Crime 1 O réu “Foi ouvir missa vestido de mulher”, de 1744. Arquivo da Cúria

existia uma distinção entre crianças, jovens e adultos.325 A criança tinha que seguir a etiqueta e os padrões da época, ou seja, honrar-se como um adulto.326