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Neste capítulo procuramos trazer uma discussão sobre as juventudes7 contemporâneas e suas relações com o mundo e com a cultura que produzem, considerando os significados que são construídos e ressignificados, sobretudo diante da relação entre os jovens e o ambiente escolar. Trata-se de um suporte para compreendermos os enunciados analisados sem deixar de considerar os caminhos para os quais os próprios textos visuais/verbo-visuais apontam.

Desde o início do trabalho, apresentamos uma postura que não condena as atitudes dos jovens alunos. Procuramos uma aproximação a fim de compreendê-los como inseridas em um determinado contexto histórico e cultural, que proporciona, dentre outros aspectos, identidades flexíveis e culturas de resistência frente aos discursos e normas impostas.

Além disso, diante dessa resistência, optamos por não apresentar um tom melancólico, saudosista, ou purista de quem vê a juventude renovando os significados, mas lamenta e desconfia dos sinais de mudanças, desejando recuperar os significados construídos em épocas anteriores. De outro modo, compreendemos a necessidade e inevitabilidade dessas transformações, tendo em vista que esse processo representa e denuncia uma sociedade em constante movimento.

Como nossa principal referência teórica, o próprio Bakhtin (2013), discutindo os processos de carnavalização, apresenta uma reflexão relevante para pensarmos na relação entre o comportamento das diferentes gerações e sua relação com a história da sociedade da qual fazem parte. O autor afirma que, em Rabelais, a juventude representa, além de si mesma, uma transformação do homem histórico em constante crescimento. A partir dessa lógica, as mudanças representadas por cada geração são consequência do rejuvenescimento cultural. Do mesmo modo, a velhice não se constitui uma idade triste, muito menos a morte um evento trágico. A morte é um momento crucial no processo de renovação de um povo, configurando uma outra face do renascimento.

7 Concordamos com Dayrell (2003, 2007) sobre a impossibilidade de existência de um único modo de ser jovem. Cada um experiência sua juventude de um modo particular, levando em consideração os fatores biológicos, psicológicos e sociais envolvidos nessa fase da vida. Por esse motivo, utilizaremos as palavras juventude/jovem no plural a fim de demarcar essa diversidade em oposição à generalização.

Morte e vida, portanto, são dois polos indissociáveis. A morte não representa o total desaparecimento da cultura representativa da geração anterior. Cada ser nascente traz em si um pouco do ser agonizante e vice e versa. Dentro do contexto das imagens rabelaisianas, esse caráter ambivalente também pode ser atribuído ao inferno, pois, sendo o espaço que engloba o condenável, o indigno, inútil, também, e justamente por isso, possibilita a vida nova ao condenar o passado, o antigo. Desse modo, a renovação, que compreende nascimento e morte de práticas culturais, deve ser celebrada, tendo em vista que é ela que mantém a sociedade viva e em constante movimento.

Decorrente dessa discussão, Bakhtin (2013) ainda apresenta outro ponto acerca da luta para se manter traços culturais de uma época ao longo das gerações seguintes. Um exemplo utilizado pelo autor ocorreu quando o Renascimento insistiu em recuperar o latim clássico para torná-lo a língua oficial da época medieval. Essa tentativa serviu apenas para mostrar que essa variante do latim clássico já estava fadada ao fracasso, pois não suportava a variedade do cotidiano e da vida. O latim medieval, vulgar apresenta para o “latim de Cícero” o “espelho da comédia”, matando-o juntamente com suas pretensões à língua viva. Isto é, quanto maior a imposição maior são as estratégias para burlá-la, ainda que a resistência se utilize do formato antigo, carnavalizando-o.

É inevitável relacionar essa reflexão com a noção de identidade apresentada por Hall (2000), sobretudo no que diz respeito ao movimento de gerações proporcionado pela construção das identidades:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a utilização dos recursos da história, da linguagem a da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nós nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’” (HALL, 2000, p. 109)

Essa compreensão entre a relação das gerações nos auxilia no trato das mudanças que ocorrem entre uma geração e outra. Junto a isso, cabe a reflexão sobre os sujeitos que transitam em uma instituição específica não poderem ser compreendidos apenas considerando sua participação nesse lugar. Se as identidades estão sempre em renovação, a qual está aliada ao tempo e espaço em que esses sujeitos constroem modos de ser e de

se apresentar, as instituições lidam com múltiplos e mutáveis configurações identitárias. A escola, por exemplo, seria um ambiente “condenado” a uma constante renovação, pois sempre resultará desse encontro entre diferentes gerações, em que se formam arenas constantes de lutas, onde cada geração procura afirmar suas demarcações culturais. De qualquer modo, o discurso da juventude que anuncia a morte de uma geração anterior não pode ser visto de modo pavoroso, trágico, mas apenas como o rejuvenescimento da história e da cultura de um povo.

Contribuindo para a noção de identidade aqui reportada, Silva (2000) ressalta que sua construção é marcada pela diferença, por aquilo que não se é. Ser aluno, então, é também não ser professor; assim como ser jovem é não ser adulto ou criança. Isso explica porque, como participante de um grupo e não de outro, buscamos estratégias para afirmar nossa identidade, construindo uma imagem de quem compreendemos ser, e, junto a isso, afirmando também a diferença, isto é, o que nos difere do que não somos.

Essa constante afirmação pode se configurar por meio de determinados comportamentos, trajes, modos de falar e de se apresentar, signos de modo geral que destoam do outro e delimitam meu lugar no mundo. Nesse sentido, as produções aqui analisadas podem ser compreendidas como uma prática social simbolicamente marcada, na e pela qual os sujeitos produtores ressignificam e reafirmam o lugar que ocupam no ambiente escolar e nos demais espaços por onde transitam.

É importante salientar também que, como atos de criação linguística interdependentes, identidade e diferença não são elementos da natureza ou essência do sujeito, como fatos a serem revelados. Do contrário, esses elementos são criações culturais e sociais e, por isso, flexíveis e mutáveis. As identidades são criadas por meio de atos de linguagem. E como a linguagem é instável e indeterminada, a identidade e a diferença sempre aparecerão como conceitos e definições instáveis.

Em outras palavras, para a concepção pós-estruturalista, a diferença é essencialmente um processo linguístico e discursivo. Ela não pode ser concebida fora dos processos linguísticos de significação, tendo em vista que não é uma característica natural: ela é discursivamente produzida. Além disso, a diferença é sempre uma relação: “não se pode ser ‘diferente’ de forma absoluta; é-se diferente relativamente a alguma outra coisa, considerada precisamente como ‘não-diferente’” (SILVA, 2000, p. 87).

A fluidez das identidades encontra-se com a definição de modernidade líquida, cunhada pelo polonês Zigmunt Bauman (2001). Para falar em uma modernidade fluida, o autor recorre à enciclopédia britânica, que define esse material fluido como aquele que

sai de um estado sólido em um momento de tensão. Assim, os sólidos não possuem a mesma facilidade que os elementos fluidos de “escorrer”, propagar-se, preencher espaços. Não é possível ter controle sobre ele, reuni-lo em um único grupo ou conjunto.

Segundo Bauman (2001), essa compreensão pode ser associada à construção de identidades dos sujeitos e das instituições contemporâneas da modernidade. As certezas e padrões fixos são alvos de desconstrução e a configuração de tais identidades são relocadas. Porém, o autor chama a atenção para o fato de que essa nova configuração cria outros modelos que se tornam igualmente fixos e alvos de contestação, de confronto e de quebra, uma vez que também se solidificaram. Assim, todos os moldes que foram quebrados foram substituídos por outros.

Isso significa dizer que, na atualidade, além das referências institucionais, há ainda o que o autor chama de “comparação universal”, em que o processo de construção de identidades individuais nunca está dado, mas segue na constante possibilidade de transformação e contradição, considerando como parâmetro as antigas e fixas formações identitárias.

Além disso, as diferenças entre os sujeitos e a inadequação de conceitos universalizantes vieram para ficar. As diferenças existiram desde sempre, porém antigamente acreditava-se que os estranhos se esforçariam para assimilar a cultura vigente. Nos dias atuais, as pessoas que chegam a um novo local (seja um país, seja uma escola), não querem se tornar nativas, como também os que já fazem parte do lugar não querem assimilar uma nova cultura, ou abandonar um modelo vigente (BAUMAN, 2001).

Por esse motivo, o encontro de gerações distintas é conflituoso, considerando que a fluidez contemporânea impõe-se e atropela os territorialistas, apegados à sua confortável solidez. Bauman explica esse fenômeno dizendo que:

Estamos testemunhando a vingança do nomadismo contra o princípio da territorialidade e do assentamento. No estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é dominada pela elite nômade e extraterritorial. Manter as estradas abertas para o tráfego nômade e tornar mais distantes as barreiras remanescentes tornou-se hoje o meta- propósito da política, e também das guerras, que, como Clausewitz originalmente declarou, não são mais que a ‘extensão da política por outros meios (BAUMAN, 2001, p. 20).

Essa discussão alia-se ao conflito entre a geração dos professores e a geração dos alunos. Esta representa a fluidez de um grupo que se reconhece e aceita sua indefinição e transitoriedade. Fluidez de um rio que segue se impondo por meio de sua expressividade

e atropelando os territorialistas, apegados ao que é sólido e à enganosa compreensão de que sua identidade já está formada e definida. Concluímos, portanto, que, assim como cultura e sociedade são moventes, os sujeitos sociais não são dados, mas estão em constante construção. Sobre eles, há o que se dizer, mas não tudo, pois nenhuma análise generalizadora conseguirá dar conta de suas particularidades.

Assim, mesmo com todos os conflitos inerentes à construção das identidades e ao ser jovem, não podemos desconsiderar duas reflexões importantes para o modo como lidamos com os sujeitos participantes desta pesquisa. Primeiramente, é necessário considerar a categoria jovem, suas derivações e toda a valoração associada a essa expressão. Neste momento, procuraremos discutir a compreensão sobre essa fase da vida, baseados na premissa essencial de que todos os sujeitos vivenciam a sua juventude de um modo particular.

Outra reflexão importante diz respeito à expressão aluno. Embora o termo seja utilizado constantemente em nosso trabalho, compreendemos que ele não define exatamente de que tipo de aluno estamos falando, apenas aponta para a condição de um sujeito que mantém uma matrícula em uma determinada instituição escolar. Assim, a idade, a época em que passaram por essa condição, de que recursos dispunham para estudar, qual a distância entre a escola e sua residência, entre outros aspectos devem ser abordados posteriormente neste trabalho para que seja possível visualizar a realidade desse sujeito aluno de modo mais completo. Essa é uma forma de contribuir para a ideia de que há outros fatores relevantes que atravessam esse ser aluno

O modo como encaramos as transformações protagonizadas pelas juventudes está associado à maneira como enxergamos os sujeitos que estão nessa idade. Segundo Dayrell (2003), o jovem é encarado pela sociedade como promessa do futuro, como o “vir a ser”, o que nos leva sempre a pensar em projetos futuros para esses sujeitos e pouco se discutir acerca do que ele é, do que está sendo, do que está sentindo, de como constrói os seus significados a partir de suas vivências reais e atuais.

Além disso, uma visão negativa paira sobre o ser juvenil, como se juventude fosse sinônimo de irresponsabilidade e incapacidade de tomar as próprias decisões. Essa compreensão é uma grande barreira para uma possibilidade de escuta atenta aos sujeitos que se encontram nessa fase da vida.

Freire Filho (2008) apresenta um breve histórico acerca da construção da imagem dos adolescentes, começando pelo século XVII, quando a obra O sofrimento do jovem Werther, de Goethe, foi proibida na Alemanha depois de ser associada a suicídios entre

jovens, os quais teriam sido influenciados pelo trágico destino do personagem suicida. O autor chama a atenção para o fato de que, embora a expressão “efeito Werther” seja utilizada até hoje nos estudos de criminologia, pesquisas recentes têm caracterizado a situação como um modo preventivo para que os jovens que tivessem acesso à leitura do livro não pensassem em cometer algum ato contra a própria vida. Isso porque não há registros formais de suicídios em grande escala associados ao livro e que justifiquem sua forte influência na decisão dos indivíduos de tirar a própria vida.

Ações como essa se estendem ao longo das épocas posteriores. Diversões culturais como os folhetins, os romances de detetives, as versões hollywoodianas, o funk, o gangsta rap, a internet, os videogames, ainda que ocorram em épocas diferentes, são alvo de avaliações deterministas por parte do grupo social formado por adultos, que se vê como capaz de avaliar a relação entre a juventude e essas práticas culturais, conforme aponta o autor:

Formuladas por observadores presumidamente sensatos, estáveis e autônomos, as agourentas conjecturas acerca da influência das diversões e do consumo cultural de moças e rapazes adquiriram, ao longo do tempo, um status axiomático. (FREIRE FILHO, 2008, p. 34)

Assim, as investigações sobre a influência dessa indústria cultural aparecem associadas a atitudes de insubordinação, agressividade, crime, uso de entorpecentes, sexualização precoce, entre outras ações consideradas problemáticas ou reprováveis. Tal abordagem, presente em grande parte dos estudos entre mídia e adolescência, reforça e legitima a ideia de superioridade e de necessária intervenção oriunda de pais, de professores e demais adultos responsáveis pela educação dos jovens.

Essa questão alia-se ao julgamento das práticas das juventudes como menos importantes ou até mesmo à indiferença devido à crença de que um sujeito nessa fase da vida não é capaz de opinar, de decidir, de falar por si mesmo, de participar e protagonizar as mudanças sociais sem o auxílio de alguém mais velho. O outro adulto é sempre a figura do grupo social responsável por regular, unificar, centralizar os discursos dispersantes produzidos pelas juventudes. Enquanto isso, há uma força que procura se afirmar por meio da contraposição e do questionamento ao discurso oficializado e sério do mundo adulto, sobrevivendo, como afirma Bakhtin (2010c), “por baixo, nas barracas de feira”, sendo influenciada pelo mundo oficial, mas subvertendo-o como forma de sobrevivência

e resistência.

É preciso considerar também que

Construir uma noção de juventude na perspectiva da diversidade implica, em primeiro lugar, considerá-la não mais presa a critérios rígidos, mas sim como parte de um processo de crescimento mais totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto social. Significa não entender a juventude como uma etapa com um fim predeterminado, muito menos como um momento de preparação que será superado com o chegar da vida adulta (DAYRELL, 2003, p. 42). Sendo assim, como adultos, a partir dessa imagem do jovem cuja voz não deve ser considerada e propagada, podemos ser responsáveis por repetir práticas silenciadoras, proibindo esse sujeito de ser ele mesmo, privando-o, consequentemente, de desenvolver as suas potencialidades. Também em decorrência disso acabamos por criar um mundo voltado para jovens, mas construído, prioritariamente, por adultos.

Em se tratando do ambiente escolar, como já apontamos brevemente, procuramos organizar todos os sujeitos em uma categoria a que chamamos aluno, como se ela fosse capaz de representar toda a multiplicidade de sujeitos e suas vivências singulares. Inevitavelmente, todo o planejamento didático construído dentro e fora de sala de aula está baseado no modo como compreendemos e enxergamos esse outro e em parâmetros que ditam o que está dentro da normalidade e o que está fora do tolerável (SACRISTÁN, 2005).

Silva (2000) também nos auxilia a refletir sobre o processo de categorização:

Dividir o mundo social entre ‘nós’ e ‘eles’ significa classificar. O processo de classificação é central na vida social. Ele pode ser entendido como um ato de significação pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos, em classes. A identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações. As classificações são sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. Isto é, as classes nas quais o mundo social é dividido não são simples agrupamentos simétricos. Dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados. (SILVA, 2000, p.82)

Como professores, adultos, que passaram pela experiência de ser aluno, costumamos repetir o discurso que naturaliza essa condição e, por isso, muitas vezes não

questionamos o que significa ocupar esse lugar social e, principalmente, o que significa ocupá-lo em uma época diferente da nossa, que oferece outros desafios, outras oportunidades, outras imposições. Criamos, desse modo, a falsa ilusão de que nossa experiência como aluno e como professor (adulto e formado), torna desnecessária a incessante busca pela compreensão de como nossas práticas de sala de aula estão intrinsecamente ligadas ao modo como significamos esse grupo. Ou seja, as práticas escolares, muitas vezes, podem representar o que nós queremos que a juventude seja, e não o que ela é.

Dayrell (1996) chama a atenção ainda para o fato de a escola não ser o projeto de vida dos adolescentes. Ela é um dos projetos. E cada aluno compreende e significa esse lugar a partir de suas vivências. Ou seja, cada sujeito compreende a escola de modo diverso, e, por isso, esse espaço é polissêmico (p. 144). Respondendo ou não às expectativas dos adolescentes, o ambiente escolar é ressignificado conforme suas necessidades, podendo configurar-se, sobretudo, como um lugar de resistência, conforme veremos na sessão seguinte.