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Diário de leitura, verbo-visualidade e a praça pública: uma possibilidade de resposta aos discursos oficiais na sala de aula

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM DEPARTAMENTO DE LETRAS

DIÁRIO DE LEITURA, VERBO-VISUALIDADE E A PRAÇA PÚBLICA: UMA POSSIBILIDADE DE RESPOSTA AOS DISCURSOS OFICIAIS NA SALA DE

AULA

RHENA RAIZE PEIXOTO DE LIMA

NATAL/RN

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DIÁRIO DE LEITURA, VERBO-VISUALIDADE E A PRAÇA PÚBLICA: UMA POSSIBILIDADE DE RESPOSTA AOS DISCURSOS OFICIAIS NA SALA DE

AULA

Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada. Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves

NATAL/RN

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DIÁRIO DE LEITURA, VERBO-VISUALIDADE E A PRAÇA PÚBLICA: UMA POSSIBILIDADE DE RESPOSTA AOS DISCURSOS OFICIAIS NA SALA DE

AULA

Tese de doutorado, examinada e defendida por Rhena Raíze Peixoto de Lima, aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na área de Linguística Aplicada, aprovada pela banca examinadora, em fevereiro de 2019.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (Orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof. Dr Hélio Márcio Pajeú (Examinador externo) Universidade Federal de Pernambuco

Profa. Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa (Examinadora externa) Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

Profa. Dra. Tatyana Mabel Nobre Barbosa (Examinadora externa) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira (Examinadora interna) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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A minha tia Marli (in memoriam), maior exemplo de que o sorriso e a pureza de coração podem vencer as mais terríveis tempestades.

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À professora Penha, por todo o incentivo, generosidade e reflexões que me ensinaram e ensinam tanto sobre ser mulher, ser professora e sobre lutar por uma educação de qualidade para todos.

Ao professor Orison, pelo olhar atento, minucioso e respeitoso durante o processo de banca para a qualificação.

Aos professores Hélio Pajeú, Maria do Socorro e Tatyana Mabel, por aceitarem o convite para fazerem parte da banca de defesa deste trabalho e por fazerem desse momento um espaço leve e produtivo de discussão sobre a pesquisa acadêmica e sobre práticas pedagógicas responsáveis.

À professora Maria Bernadete, por aceitar prontamente o convite para compor a banca de defesa e por, antes desse momento, contribuir grandemente para reflexões sobre a teoria bakhtiniana, as quais resultaram neste trabalho.

Ao amigo Gilvando, pelas observações sobre minha pesquisa, sobretudo em momentos informais, sempre acompanhadas de boas risadas e de valorosas reflexões sobre o curso da vida.

Ao meu tio Ailton, por todas as contribuições sobre teoria e vida, espalhadas nas conversas cotidianas do convívio familiar.

Aos meus pais, Edna e Edmilson, pelos constantes suporte e atenção sem medidas que se sobressaem nos momentos mais desafiadores da vida.

Aos meus irmãos, Júnior e Nyara, pelo afeto, presença e compreensão nos meus momentos de ausência.

Aos amigos Danielle, Daividson, Fernanda e Joicy, pelos momentos de descontração, pela parceria e por compartilharem as dores e alegrias das vidas acadêmica e profissional.

Às grandes amigas Ienanda, Lucyanne, Beatriz e Viviane, pelas conversas, conselhos e momentos felizes, essenciais para tornar a vida mais leve.

A Orlando, pela parceria, compreensão e auxílio em tantos momentos de tensão que também fizeram parte da execução deste trabalho.

A Josias, por todas as experiências e conversas sobre o carnaval, sobre estar na rua, sobre as feiras livres e sobre liberdade, as quais me ajudaram a aproximar ainda mais este trabalho das vivências cotidianas.

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Conforme sabemos, os escritos deixados por Bakhtin e seu círculo oferecem, até os dias de hoje, relevantes contribuições para o estudo da linguagem. Para este trabalho, considera-se a análise do estudioso sobre carnavalização e sobre as demais festas populares ocorridas em praça pública na Idade Média. Para o autor, a praça constituía-se como um espaço privilegiado, onde, por meio de práticas subversivas, os sujeitos contestavam os discursos oficiais impostos pela realidade social da época. Atualmente, há outras formas de contestação. No espaço escolar, por exemplo, o diário de leitura configura-se como um gênero motivador para a construção de discursos que objetivam subverter alguns dos discursos oficiais e, a partir disso, contribuir para a construção de uma nova realidade. Para essa discussão, analisaremos dez enunciados verbo-visuais/visuais registrados em diários de leitura produzidos em 2015 por alunos do 3º ano do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia (IFRN), campus João Câmara/RN. A principal metáfora da pesquisa relaciona a atividade do diário com a praça pública medieval, uma vez que os momentos de interação na praça são considerados significativos pelo autor por proporcionarem o questionamento e destronamento temporário dos discursos hegemônicos da época, sobretudo aqueles ligados à Igreja Católica. Diante disso, o nosso principal objetivo é analisar os posicionamentos dos alunos nos diários, mais especificamente aqueles que se orientam como resposta aos discursos ditos oficiais, que circulam dentro ou fora da esfera escolar. A pesquisa segue orientada por concepções acerca de sujeito e de pesquisa nas Ciências Humanas, as quais estão em harmonia com a proposta bakhtiniana para essa grande área. Nesse sentido, orientamo-nos por estudos de autores como Amorim (2004), Petrilli (2013) e Geraldi (2016), os quais prezam pela pesquisa interessada no aprofundamento dos dados, na escuta atenciosa do outro-pesquisado, juntamente com a imprevisibilidade do percurso e das conclusões possíveis ao fim do trabalho. Acreditamos que a compreensão de enunciados como esses pode nos levar a rever as nossas práticas, além de ressignificar concepções acerca do nosso aluno e, sobretudo, acerca de toda a configuração do sistema escolar a que estamos submetidos. Ou seja, espera-se que esta pesquisa propicie uma renovação da vida escolar e, consequentemente, uma renovação da vida dos sujeitos participantes.

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relevantes contribuciones para el estudio del lenguaje. En este trabajo, consideramos el análisis del estudioso sobre carnavalización y sobre las demás fiestas populares ocurridas em la plaza pública en la Edad Media. Según el autor, la plaza se constituía como un espacio privilegiado, donde, por medio de prácticas subversivas, los sujetos contestaban los discursos oficiales impuestos por la realidad social de la época. Actualmente, hay otras formas de contestación. En el espacio escolar, por ejemplo, seleccionamos el diario de lectura como un género motivador para la construcción de discursos que objetivan subvertir algunos de los discursos oficiales y, a partir de eso, contribuir a la construcción de una nueva realidad. En esta tesis, analizaremos diez enunciados verbo-visuales/ visuales registrados en diarios de lectura producidos en 2015 por alumnos del 3º año de la prepatoria del Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia (IFRN), campus João Câmara/RN. La metáfora central que direcciona la investigación relaciona la actividad del diario con la plaza pública medieval, porque los momentos de interacción en la plaza son considerados significativos porque implican cuestionamiento y destronamiento temporal de los discursos hegemónicos de la época, sobre todo aquellos unidos a la Iglesia Católica. Por lo tanto, nuestro objetivo principal es analizar los posicionamientos de los alumnos en los diarios, más específicamente aquellos entendidos como respuesta a los discursos oficiales, cuya circulación ocurre dentro o fuera de la esfera escolar. Para llevar a cabo esta tarea, la investigación tiene como orientación teórica las concepciones acerca de sujeto y de investigación en las Ciencias Humanas, las cuales están en armonía con la propuesta bajtiniana. Desde esta perspectiva, aún tenemos como bases teóricas los estudios de Amorim (2004), Petrilli (2013) y Geraldi (2016), los cuales se ocupan de la investigación interesada en la profundización de los datos, en la escucha atenta del otro-investigado, junto con la imprevisibilidad del mismo, el recorrido y las posibles conclusiones obtenidos al final del trabajo. Creemos que la comprensión de enunciados como estos puede llevarnos a revisar nuestras prácticas, además de resignificar concepciones acerca de nuestro alumno y sobre todo acerca de toda la configuración del sistema escolar al que estamos sometidos. Es decir, se espera que esta investigación propicie una renovación de la vida escolar y, consecuentemente, una renovación de la vida de los sujetos participantes.

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Comme nous savons les écrits laissés par Bakhtine et son Cercle offrent, jusqu'à ce jour, contributions pertinentes pour l’étude de la langue. Pour ce travail, nous considérons l’analyse de l’érudit sur la carnivalisation et sur les autres célébrations populaires qui se sont déroulées sur la place publique au Moyen Âge. Pour l’auteur, la place était un espace privilégié, où, à travers de pratiques subversives, les sujets contestaient les discours officiels imposés par la realité sociale de l’époque. Actuellement, ils existent autres manières de contestation. Dans l’espace scolaire, par example, nous sélectionnons le journal de lecture comme un genre motivateur pour la construction de discours qui visent à subvertir certains discours officiels et, a partir de celle, contribuer pour la construction d’une nouvelle realité. Pour cette discussion, nous analyserons dix enunciés verbe-visuels/ visuels enregistrés dans les journaux de lecture produits em 2015 par les élèves du 3° année du Ensino Médio du institut fédéral d'enseignement des sciences et de la technologie (IFRN), campus João Câmara/RN. La métaphore principale de la recherche relie l'activité du journal avec la place publique médiévale, depuis les moments d'interaction sur la place sont considérés signifatifs par l'auteur pour avoir fourni l'interrogatoire et le détrônement temporaire des discours hégémoniques de l'époque, en particulier ceux liés à l'Église catholique. Dans cette perspective, notre objectif principal est analyser les positions des étudiants dans les journaux, plus spécifiquement ceux qui s'orientent en réponse aux soi-disant discours officiels, qui circulent à l'intérieur ou à l'extérieur de la sphère scolaire. La recherche continue orientée par les conceptions sur le sujet et la recherche dans les Ssciences Humanines, qui sont en harmonie avec la proposition de Bakhtinienne. En ce sens, nous sommes guidés par les études des auteurs comme Amorim (2004), Petrilli (2013) e Geraldi (2016), qui tiennent profondément à la recherche intéressée par l'approfondissement des données, à l'écoute attentive de l’autre-recherché, ainsi que l'imprévisibilité du parcours et des conclusions possibles jusqu'à la fin du travail. Nous croyons que la compréhension de telles enunciés peut nous amener à revoir nos pratiques, en plus de redéfinir les conceptions à propos de notre étudiant et, surtout, à propos de toute la configuration du système scolaire auquel nous sommes soumis. Ou soit, nous espérons que cette recherche mènera un renouveau de la vie scolaire et, par consequente, un renouveau de la vie des sujets participants.

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1 CIÊNCIA, ARTE E VIDA: PRÉVIAS DE UM CARNAVAL...10

2 CONTEXTO DE PESQUISA...27

2.1 O QUE E PARA QUEM SIGNIFICA O IFRN...27

2.2 PROPOSTA DE CURRÍCULO ... 30

3 TEORIA E PRÁTICA: O PESQUISADOR DENTRO DA FOLIA...38

3.1 AUTORIA DE PESQUISA: POSICIONAMENTO ÉTICO E ALTERIDADE .... 41

3.2 ESTILO E REPRESENTATIVIDADE... 47

3.3 O DIÁRIO DE LEITURA E A LIBERDADE DO REALISMO GROTESCO ... 54

3.4 O RISO – A VERDADE POPULAR NÃO OFICIAL ... 57

3.5 A PRAÇA PÚBLICA E O DESTRONAMENTO DO DISCURSO OFICIAL ... 62

3.6 MOVIMENTO FESTIVO NO AMBIENTE ESCOLAR ... 67

4 JUVENTUDES E IDENTIDADES...72

4.1 A MORTE TRÁGICA OU A RENOVAÇÃO DOS SENTIDOS ... 72

4.2 UM LUGAR DE ENCONTROS CHAMADO RESISTÊNCIA ... 79

5 ENCONTRO COM O CARNAVAL...83

5.1 O PERCURSO DA FOLIA ... 83

5.2 O GRANDE REI CHAMADO CORPO ... 87

5.3 O CRONOTOPO QUE IMPULSIONA O CARNAVAL ... 91

5.4 ESCOLHENDO A FANTASIA: A ARQUITETÔNICA VISUAL ... 95

6 ENFIM, A PRAÇA...99

6.1 CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM ... 99

6.1.1 A porra da cortina azul: o destronamento da análise literária ... 99

6. 1. 2 Demoníaca mas de jesus: o outro lado da Matrix ... 104

6.1.3 Escrito em grego: resposta à risada maligna ... 108

6.2 CRONOTOPO DA SALA DE AULA ... 113

6.2.1 Conto do Facebook?: histórias que nos fazem dormir ... 113

6.2.2 Pelo resto da vida: breve quadro de obrigações ... 117

6.2.3 O pôr-do-sol e a indiferença: a dúvida que não quer calar... 121

6.3 PUNIÇÃO DO CORPO ... 126

6.3.1 Criatura adestrada: a coletividade do disforme ... 126

6.3.2 O corpo exausto: a escola como lugar dos sonhos ... 132

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1 CIÊNCIA, ARTE E VIDA: PRÉVIAS DE UM CARNAVAL

Penso que o maior perigo para a Pedagogia de hoje está na arrogância dos que sabem, na soberba dos proprietários de certezas, na boa consciência dos moralistas de toda espécie, na tranquilidade dos que já sabem o que dizer aí ou o que se deve fazer e na segurança dos especialistas em respostas e soluções. Penso, também, que agora o urgente é recolocar as perguntas, reencontrar as dúvidas e mobilizar as inquietudes. (LAROSSA, 2017, p. 12)

Certa vez, no início de minha carreira como professora, ainda como estagiária, estava dando aula sobre verbos. A fim de aproximar o conteúdo estimado para a 5ª série de uma escola localizada em um bairro periférico, localizado na fronteira entre os municípios de Natal e São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, de alunos extremamente desmotivados com a escola, procurei inserir verbos que eram utilizados por esses alunos em suas falas cotidianas. Acreditava, devido a minha inexperiência, que isso seria suficiente para que aquele público tão diverso visse sentido no que eu estava propondo.

Apesar dessa estratégia, ainda estavam lá os famigerados tu andas, vós andais, anomalias que causavam estranhamento, caretas, risos e entreolhares. Ainda soava como absurdo para mim, considerando toda a minha trajetória como estudante, excluir ou secundarizar essas variantes na sala de aula. Um dia, uma mão atrevida irrompe minha fala. Em seguida, uma voz provocativa, irônica, questiona: professora, pra que a gente vai usar isso na nossa vida?

Essa voz era de um garotinho de 12 anos, cujo nome ainda lembro, assim como de seu rosto e de seu comportamento arredio. Essa voz me acompanha até hoje por muitas razões. Primeiramente, pelo desconcerto e incômodo de ter uma resposta pronta para o menino, de modo que eu pudesse concluir a aula sem mais questionamentos desse tipo. Porém, a minha própria resposta não me convencia. E eu também sabia que ele não estava satisfeito. Em segundo lugar, a ousadia da pergunta veio com o a gente que havia sido desconsiderado totalmente como um possível pronome pessoal, tão utilizado, inclusive, por mim em minhas falas em sala de aula.

Em terceiro lugar, e o que mais me fez refletir diante dessa situação, a instabilidade maior veio do fato de o garoto se tratar de um dos alunos mais inquietos da turma. Aquele que sempre tumultuava, que sempre interrompia a ordem estabelecida e naturalizada a qual eu tentava impor naquele espaço caótico. Por que justo ele?

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Essa inquietação, que me acompanha até os dias de hoje, me fez vivenciar na prática, embora ainda não as tivesse encontrado, as palavras de Bakhtin (2010b): nossa existência é um constante não-álibi. Embora eu sempre tivesse como responder prontamente a questionamentos como o desse menino, jamais poderia fugir de minha responsabilidade diante daquele momento, daquela pergunta.

Diante das fronteiras existentes em um mesmo sujeito que assume papéis sociais distintos, mas se complementam, como o papel de pesquisador e de professor, teoria e prática andam juntas em um eterno ciclo dialógico. Esse diálogo, conforme a própria teoria bakhtiniana nos instrui, é repleto de tensões essenciais para a construção de novas possibilidades, que, por sua vez, partem do (re)visitar antigas concepções e velhas práticas, ou, até mesmo, antigos modelos revestidos com novas roupagens.

Apesar de cada um ocupar o seu lugar social, havia um lugar comum entre mim e aquele aluno. Sua dúvida também era minha. Comecei a refletir sobre todo o aparato construído por mim para aproximá-lo, naquele momento, do conteúdo: o que eu trazia não era suficiente. O distanciamento e o fracasso estavam mais evidentes para ele (pré-adolescente), do que para mim, afogada em teorias e métodos pedagógicos superficiais, pautados, sobretudo, em anos de experiência como aluna em escola particular. Eu reproduzi métodos de professores que tive ao longo de minha vida escolar. Ele teve a ousadia e a perspicácia que nem eu, nem meus colegas, tivemos na época de escola.

Como o garoto não apresentava um comportamento dos mais exemplares, passei a conferir mais atenção às vozes que vinham, sobretudo, desses lugares subalternos, ignoradas por nós, acobertadas por um tom generalizador tão presente na educação: ah, é só fulano atrapalhando mais uma vez...

Essa nova atitude decorrente de uma revisitação compreende uma escuta atenta a vozes abafadas por discursos representativos de autoridade, que visam manter ambientes organizados, atrativos, bem-sucedidos, entre outros aspectos vistos como positivos para uma convivência aparentemente saudável, pacífica e justa. Algumas dessas vozes convivem conosco como uma interpelação diária e insistente, a qual nos orienta a um inevitável (des)encontro entre teoria e prática. Assim, motivados pela lógica do não-álibi do ser, não há como ser indiferente a essas vozes, a esse outro. E não ser indiferente é ouvi-lo, mesmo quando suas palavras desestabilizam, corroem ideologias tão bem estruturadas e organizadas no eu-professor-pesquisador.

Quando o sujeito pesquisador se encontra em um ambiente escolar e esse outro é o seu aluno, a disposição para ouvir essas vozes deve estar atrelada à compreensão do

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espaço escolar como lugar que busca estar cada vez mais próximo dos alunos e à compreensão de cada aluno como sujeito único, diverso e heterogêneo, capaz de produzir enunciados em contextos igualmente irrepetíveis e diversificados. Além disso, ouvir o outro, neste caso, é considerar as inevitáveis relações de poder existentes nesse espaço, em que hierarquias bem definidas são estabelecidas e amplamente conhecidas por todos os que convivem ou conviveram nesse ambiente.

É fato considerar que a situação de vulnerabilidade social na qual se encontrava o garoto que me interpelava alguns anos atrás contribui fortemente para a distância entre ele e o ambiente escolar precário onde se encontrava. Porém, há outras questões que influenciam nesse desencontro. E é importante apresentá-las para que não pensemos que o descompasso ocorre apenas em escolas públicas precárias e/ou apenas com alunos pobres.

Alguns estudos que tiveram como propósito ouvir alunos adolescentes de escolas públicas mais de perto, considerando-os como sujeitos coparticipantes da pesquisa, identificam a possibilidade desse aluno contemporâneo não conseguir se adequar e se encontrar na instituição escolar, segundo os moldes em que ela se constitui atualmente. Em um desses estudos, Seraphim (2015) conclui, baseando-se nas atuais discussões sobre identidade, que essa não adequação se deve, principalmente, a construção de identidades móveis, características de nossa contemporaneidade. Diante de um processo identitário em constante construção, a instituição escolar não responderia mais aos anseios do sujeito pós-moderno, uma vez que ainda preserva o modelo de modernidade, em que as possibilidades de desenvolvimento desses sujeitos eram limitadas, como também os horizontes e fronteiras eram definidos mais claramente.

Esse desencontro é gerador e gerado por uma relação em que os alunos se sentem participantes, mas não construtores e agentes de transformação. Diante disso, alguns dos sujeitos inseridos no ambiente escolar não se reconhecem como parte do processo educativo e como construtores de uma realidade. Muitas vezes, sua concepção acerca de sua presença nesse ambiente é de um passante, cuja estadia é provisória e diante da qual sua função é tentar sobreviver a tudo o que a instituição escolar o reserva. Essa situação pode ser associada às análises de Bauman (1998) sobre o grupo social que nomeia arrivistas. Para o autor,

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nômades descobrem que são arrivistas. Arrivistas, alguém já no lugar, mas não inteiramente do lugar, um aspirante a residente sem permissão de residência. Alguém que lembra aos moradores mais antigos o passado que querem esquecer e o futuro que antes desejariam longe; alguém que faz com que os moradores mais antigos corram em busca de abrigo em escritórios do fornecimento de permissões, apressadamente construídos. Ordena-se ao arrivista que porte o rótulo 'recém-chegado', de modo que todos os outros possam confiar em que suas tendas estejam talhadas na rocha. (BAUMAN, 1998, p. 92-93).

A partir dessa reflexão, podemos considerar esta pesquisa como fruto da relação entre professor e aluno. Nessa relação, como o próprio autor diz, os aprendizes estão continuamente contestando nossas velhas certezas e sugerindo o novo, o futuro, o desconhecido e, por isso mesmo, assustador. E, atrelado a isso, nos fazem enxergar o quanto o antigo não está completamente superado, apagado. Além disso, consideramos outra relação, que se estabelece entre professor e pesquisador, num constante diálogo entre teoria e práticas de sala de aula, conforme já sugerimos nesta introdução.

Seguindo adiante, para este trabalho, é importante compreendermos pequenos atos de rebeldia contra o sistema escolar ou contra normas previamente estabelecidas como sinais de que o diálogo não está ocorrendo da forma como deveria. Diante desse contexto, o cotidiano escolar mostrou-se como uma oportunidade para ouvir e compreender essas vozes que, de tão silenciadas, convivem no ambiente escolar, moldadas em diferentes ocasiões e, por que não dizer, em diferentes gêneros discursivos. Percorrendo caminhos estratégicos, essas vozes sinalizam para uma certa conformidade de um discurso que afirma e confirma o papel da escola voltado para a autoridade e para imposição, não para o diálogo e negociação.

De fato, em muitas ocorrências de sala de aula, frente aos questionamentos desconcertantes do nosso outro-aluno, por plena incapacidade para lidar com essa situação, encontramos como única saída o silenciamento desse outro, revestido muitas vezes da confirmação de discursos prontos, oficiais, legalizados e, portanto, inquestionáveis (pelo menos naquela situação).

Nossa postura evidencia, entre outras coisas, uma reprodução do modelo escolar predominante a que fomos submetidos, seja na educação básica ou nas universidades, no qual a crise e as problematizações, na grande maioria das vezes, não encontra espaço. Assim, ainda que a instituição escolar objetive proporcionar discussões acerca da produção do conhecimento atual em áreas como as Ciências Humanas, ela pode,

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justamente por isso, considerar que não há necessidade de discutir as práticas que envolvem o seu funcionamento. Embora a problematização seja caráter intrínseco das relações humanas, segundo Larrosa e Skliar (2011), ainda hoje, mesmo com alguns avanços, procuramos evitá-la, imaginando que essa postura nos trará um conforto necessário. Para os autores, o fato é que nós “aprendemos já a desconfiar de todos esses discursos sobre a crise nos quais tudo está em crise exceto o discurso seguro e assegurado que a nomeia, a diagnostica e antecipa sua solução” (LARROSA; SKLIAR, 2011, p. 9).

Ainda segundo os autores, embora vivamos em um mundo em que a diversidade é celebrada, o próprio discurso do diverso acaba se fechando em si mesmo, como se a aceitação das diferenças em nosso convívio fosse fato consumado. Além disso, a inclusão do diverso tem se dado de modo a incorporá-lo às normas estabelecidas, o que não consiste em uma inclusão de fato. Sendo assim, o que deveria aparecer como palavra nova aparece-nos como palavra velha, porém com uma nova roupagem:

[...] palavras relacionadas, como diversidade, tolerância, pluralidade, inclusão, reconhecimento, respeito. E são essas palavras as que nos soam como falsas quando as ouvimos no interior de muitos discursos dominantes no campo político, educativo, cultural, ético, estético ou, inclusive, empresarial. São palavras cada vez mais vazias e esvaziadas que significam, ao mesmo tempo, tudo e nada: marcas, clichês, etiquetas de consumo, mercadorias que se avaliam bem no mercado com a alta da boa consciência: palavras que mascaram a obsessiva afirmação das leis e da excessiva ignorância dos sentidos; palavras que permitem ocultar-nos atrás de nós mesmos e, ao mesmo tempo, representar uma mínima de alteridade que nos livra da presença inquietante de tudo aquilo que deve ter um nome e um lugar para ser incluído, excluído, comunicado e, de novo, ignorado, palavras para ensurdecer os ouvidos e nos tornar insensíveis às diferenças, para continuarmos sendo nós mesmos, com a mesma roupagem, a mesma arrogância, a mesma violência, o mesmo medo de nos abandonarmos, de nos sentirmos, de nos percebermos ou de sermos outro/s em trânsito” (LARROSA; SKLIAR, 2011, p.11).

Essas atitudes estão presentes, sobretudo, em instituições regidas por documentos que orientam o respeito e consideração à famigerada “diversidade”, pois esses documentos, quando lidos, são reproduzidos por anos de modo apressado e equivocado, uma vez que as discussões não se aprofundam e os estereótipos ligados ao termo são reproduzidos cotidianamente. Consideramos neste trabalho que o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia (IFRN), inevitavelmente, por estar inserido nesse contexto, constitui-se como uma dessas instituições, uma vez que o processo de rápida

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expansão nos últimos anos, assim como um aumento considerável de professores, contribui para a ausência de condições para acompanhar, discutir e formar esses profissionais sobre as práticas educativas ideais para uma instituição de ensino com propostas específicas como o Instituto.

Outro ponto relevante a se considerar, uma vez que fez parte do momento no qual este trabalho foi escrito, são as disputas ideológicas intensificadas durante e após o golpe de 2016, no qual, em um “grande acordo nacional” entre Câmara, Senado e Justiça Federais, a presidente eleita Dilma Rousseff foi deposta de seu cargo. Esse fato gerou inevitáveis e contraditórias posturas por parte de profissionais e alunos da Instituição, ainda que à revelia dos documentos até então oficiais (entre eles, o Projeto Político Pedagógico, produzido com participação de toda a comunidade escolar) que orientam (ou deveriam) orientar as práticas pedagógicas do Instituto.

Anterior a esse acontecimento, durante os dois anos de pesquisa no mestrado, pudemos verificar o quanto, a seu modo, os alunos já percebiam, em Lima (2013), como o discurso da pluralidade e da aceitação às diferenças soava impositivo e mascarado dentro de um ambiente escolar pouco diversificado. Outra questão que podemos apontar a partir das análises construídas na dissertação é o quanto os alunos pesquisados ainda não estavam preparados para conviver ou tolerar minimamente o outro que julga ser diferente de si. Isso nos faz questionar ainda mais as nossas práticas de sala de aula e sobre os discursos que circulam no ambiente escolar.

Compreendendo a nossa relevante contribuição para esse questionamento, objetivamos com a atual pesquisa escutar novamente enunciados produzidos por adolescentes, estudantes do ensino médio do IFRN, registrados em diários de leitura, os quais propiciam o acesso a vozes representativas dos sujeitos para quem deve estar, prioritariamente, orientado todo o processo educativo. Afinal, são esses mesmos sujeitos que adentram todos os anos as escolas, a quem de modo generalizante ainda chamamos de alunos (SACRISTÁN, 2005).

Diante dessa realidade, quando um professor assume também o papel de pesquisador de enunciados produzidos por adolescentes, ele também é responsável por um processo de “tradução” do discurso (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2011, p. 122). O termo não pode ser visto ao pé da letra, mas como uma representação de uma alteridade dentro de uma determinada pesquisa, por exemplo. O termo tradução nesse processo da pesquisa aponta para uma assimilação do discurso do outro segundo as intenções e nomenclaturas atribuídas pelo pesquisador. Os autores discutem que essa tradução se dá

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a partir de relações de poder em que o discurso do outro, o qual está numa posição hierárquica inferior com relação à posição do eu, embora intraduzível, precisa ser traduzido, assimilado. Nesse complexo contexto, o pesquisador não pode utilizar-se de lógicas binárias, com fins de manipulação para benefício próprio. Nesse embate:

O centro expulsa suas ansiedades, contradições e irracionalidades sobre o termo subordinado, levando-o com as antíteses de sua própria identidade. O outro simplesmente reflete e representa aquilo que é profundamente familiar ao centro, porém projetado para fora de si mesmo (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2011, p. 123).

Nesse sentido, não cabem aqui repetições de discursos “colonizadores”, que orientam sempre para o outro a necessidade de rever suas posturas, seus comportamentos, a fim de fazer prevalecer os padrões do eu e de manter o seu lugar de privilégio. Essa compreensão supõe que “a pobreza é do pobre; a violência, do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a deficiência, do deficiente; a exclusão, do excluído” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2011, p. 124). Assim, o professor-pesquisador põe-se diante do outro como aquele que vai instruí-lo ao caminho do esclarecimento, selecionado a partir da visão de mundo desse educador, assumindo uma postura “colonizadora” e, sobretudo, desonesta. Do contrário, a postura para esta pesquisa deve pressupor aluno e professor-pesquisador como responsáveis pelos discursos que circulam no ambiente escolar, para que, juntos, embora ocupando lugares sociais diferentes, encontrem soluções para as problemáticas que se apresentam.

Consideremos a relevância da reflexão sobre como o posicionamento do sujeito será “traduzido”, tendo em vista que, nas pesquisas de graduação ou de pós-graduação, a voz do aluno de Ensino Básico, embora sempre presente, é inevitavelmente apresentada a partir de pontos de vista outros. Ou seja, as vozes sempre aparecem sob um enquadramento específico do pesquisador, o que nos leva a refletir ainda mais sobre a responsabilidade diante dos discursos presentes nas vozes desses sujeitos.

Diante disso, discutir sobre o modo como o professor concebe a alteridade é imperativo. Principalmente, se atentarmos para o fato de que a noção de alteridade e diversidade, no ambiente escolar, tem se voltado para questões de gênero, de raça, de etnia, de classe social, etc. Ou seja, a análise é feita a partir de marcas culturais que corroboram o estigma dos sujeitos que, embora encontrem espaço no ambiente escolar,

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continuam ocupando o lugar do diferente diante do que é considerado padrão. Essa concepção de alteridade exclui alguns pensamentos que lhe são essenciais: a) a diversidade faz parte da essência do sujeito. Portanto quando falamos de diversidade, estamos incluindo todos os indivíduos, independentemente de suas “marcas culturais”; b) há diversidade dentro das próprias marcas culturais, de modo que cada indivíduo que se considera negro vive a negritude a seu modo; cada indivíduo pobre vive sua condição de pobreza a seu modo e assim por diante.

Ademais, no Brasil, os documentos oficiais e legislações orientam que o professor considere, em seu planejamento, uma perspectiva multiculturalista, representada pela inserção do estudo de elementos característicos de povos historicamente excluídos, modificando o antigo papel da escola pautado na reprodução do modelo cultural dominante. O problema surge quando esse multiculturalismo aparece como uma permissão/autorização para que “os outros continuem sendo os outros porém em um espaço de legalidade, de oficialidade, uma convivência sem remédio” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2011, p. 130).

Por fim, nessa perspectiva, o campo educativo permanece reproduzindo a desigualdade em três aspectos apontados pelos autores. O primeiro deles diz respeito ao lugar conferido ao multiculturalismo, evidenciado nos eventos folclóricos caracterizados por um breve passeio na exoticidade dos costumes de povos e culturas essencializados. O segundo aspecto, de certo modo já antecipado, é associar a palavra diversidade aos grupos desprivilegiados, de modo que a palavra passe a funcionar como sinônimo de pobre, de negro, de pessoas com necessidades especiais, entre outras nomenclaturas. No terceiro, temos a autonomia institucional como desculpa para a não responsabilização de se encarar determinadas temáticas. Isto é, fica a cargo de cada escola, segundo os seus recursos materiais e humanos, a forma como se dispõe a considerar a alteridade.

A partir dessa discussão, devemos considerar diversidade como parte integrante do ser humano. Todos nós somos diversos diante do nosso outro. Desse modo, considerar como parte da diversidade apenas aqueles que são parte de grupos desfavorecidos é estereotipar esses grupos e reafirmar uma exclusão latente e uma ideia de estranheza prejudicial à compreensão do respeito a que se pretende alcançar. Portanto, procuraremos neste trabalho considerar cada sujeito a partir de suas individualidades e das particularidades de seus posicionamentos “traduzidos” em seus enunciados, compreendendo que cada ponto de vista representa um modo único de ver e vivenciar o mundo à sua volta.

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Sem essa consciência, a educação seguirá mantendo os sujeitos no currículo, mas não na escola. O objetivo passa a ser o ensino da diversidade cultural, e não a educação da alteridade. Consequentemente, os outros permanecerão “ao alcance da mão, porém longe, marcados em fotos, pinturas, músicas, teatros, bandeiras, festas escolares etc.” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2011, p. 133).

Todos esses acontecimentos na vida escolar mostram o quanto a tolerância, no sentido negativo do termo, faz parte do processo educacional. Aprende-se na escola a conviver de forma harmoniosa com o diferente, mas ainda estimulamos a competição como a única forma de integração social, além de naturalizarmos discursos e evitarmos polemizar situações para que não sejamos protagonistas das mencionadas crises. A tolerância é frágil, uma vez que dissimula a aceitação do outro e torna-se indiferença e comodismo frente ao que me é estranho.

Além disso, outra compreensão ligada à noção de tolerância revela relações de poder que produzem mais diferença. Sendo assim:

Apesar de seu impulso aparentemente generoso, a ideia de tolerância, por exemplo, implica também uma certa superioridade por parte de quem mostra “tolerância”. Por outro lado, a noção de ‘respeito’ implica um certo essencialismo cultural, pelo qual as diferenças culturais são vistas como fixas, como já definitivamente estabelecidas, restando apenas “respeitá-las”. (SILVA, 2010, p. 88)

Portanto, esta pesquisa não pretende apenas celebrar a diferença e a diversidade, mas questioná-las e discutir as tensões que estão relacionadas à sua construção. Não apenas isso, mas como as identidades são construídas tendo como referência a identidade dominante e como o ambiente escolar proporciona reprodução e questionamentos acerca desses modelos hegemônicos.

É por essas questões aqui apresentadas que vimos a necessidade de evidenciar exatamente os discursos desconcertantes produzidos nos diários de leitura. Compreendemos que, diante dessas relações entre professor e aluno, professor e escola, aluno e escola, relações em que se estabelecem posições hierárquicas bem definidas, o aluno sente a necessidade de encontrar estratégias para burlar normas e, com isso, questionar, debochar, ridicularizar alguns discursos oficiais que lhe chegam como formas de imposição.

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oportunidade para externar seus questionamentos acerca dessas imposições. É nesse sentido que compreendemos como estratégica a escolha do gênero diário de leitura para constituir o corpus desta pesquisa. A partir da análise dos diários iniciadas no mestrado, percebemos nitidamente o quanto a liberdade conferida ao aluno, por meio das características do gênero1, foi a principal motivação para a existência de gírias, palavrões, imagens obscenas, críticas negativas ao professor, à sua metodologia e a seu trabalho; sem falar na exposição consciente de uma opinião agressiva, que se utilizava, por vezes, de expressões consideradas chulas, preconceituosas e grosseiras2. O que mais chama atenção nessa postura é o fazer consciente revelado no discurso dos alunos, ou seja, não há uma modalização do dizer, uma tentativa de utilização de expressões mais brandas. O que há é uma intenção consciente de depreciar, expor a imagem do outro, aproveitar-se do espaço do diário, que, inicialmente, é um espaço privado, para dizer o que se deseja dizer, sem censura ou restrições.

Portanto, o trabalho com o gênero proporcionou uma reflexão acerca desse espaço híbrido: uma atividade escolar, avaliativa, na qual o aluno pode revelar sua opinião de uma forma peculiar. Dessa reflexão, surgiu a proposta desta tese, que tem como principal objetivo analisar as respostas dos alunos aos discursos oficiais que circulam na esfera escolar ou fora dela, procurando compreender as relações complexas entre os sujeitos envolvidos no cronotopo da sala de aula3. Esses discursos podem representar a voz do professor como autoridade escolar, a voz dos PCN, dos regimentos escolares; como também a voz da ética, do bom comportamento, das legislações, do politicamente correto. Além disso, como já apontamos, a questão principal que motivou a existência deste trabalho foi a forma como essa resposta a esses discursos aparecem. Não há, na grande maioria dos enunciados, uma preocupação com a utilização de construções linguísticas ou visuais associadas valorativamente, no meio social, à polidez e ao respeito. Do contrário, os discentes parecem aproveitar o espaço que lhes foi dado para registrar toda a sua revolta diante desses discursos. Atribuímos essa atitude à própria proposta da

1 O diário de leitura consiste em uma atividade na qual as esferas íntima e escolar se cruzam, com o objetivo de registrar posicionamentos, sensações, questionamentos e análises de alunos diante de textos lidos (MACHADO, 1998). O diarista escreve, em primeiro lugar, para si mesmo e, por isso, muitas vezes desvia do objetivo principal para tecer comentários sobre seu cotidiano, alegrias e frustações, como também comentários sobre seus professores e suas respectivas práticas pedagógicas, e sobre a escola, ambiente em que um aluno do IFRN geralmente passa grande parte do seu dia.

2 Sugestão: ver enunciados Se você não gosta, azar o seu e A melhor parte de mim, ambos analisados na dissertação. (LIMA, 2013, p 108, p. 116.)

3 A expressão Cronotopo da sala de aula será utilizada algumas vezes neste trabalho, fundamentada na discussão apresentada por CASADO ALVES (2012) e explorada na sessão 5.3.

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atividade, a qual direciona o aluno a escrever, em primeiro lugar, para si mesmo (MACHADO, 1998). Inclusive, essa acaba se tornando uma justificativa dos diaristas, convenhamos, plausível, para o tipo de linguagem utilizada.

Pensando nisso, recordamos, inicialmente, as palavras de Medviédev (2012) sobre a ligação entre as condições em que o gênero é produzido, suas características estruturais e o potencial de transformação que ele pode atingir a partir dessas condições:

[...] a realidade do gênero e a realidade que o gênero pode alcançar estão organicamente ligadas. Porém, vimos que a realidade do gênero é a realidade social de sua realização no processo de comunicação social. Dessa forma, o gênero é um conjunto de meios de orientação coletiva na realidade, dirigido para seu acabamento. Essa orientação é capaz de compreender novos aspectos da realidade. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 200).

Portanto, o gênero diário de leitura é, dentro da esfera escolar, o propiciador de determinados posicionamentos e de modos específicos de apresentá-los. Os horários e momentos definidos para manifestações individuais devem seguir regras conhecidas por todos os que nessa esfera transitam. Ou seja, há um supradestinatário4 que dita o que e como se pode dizer/fazer na escola. Nesse sentido, a utilização de linguagem chula, por exemplo, dentro desse ambiente é considerada uma transgressão passível de punição, pois a linguagem da rua não deve invadir a escola.

É dentro dessa realidade do gênero que compreendemos que sua composição por si só fomenta o aparecimento de discursos que fogem aos padrões dos demais gêneros incluídos nas atividades escolares. A partir desses discursos, agressivos ou não, que emergem dos diários como vozes que respondem aos discursos do professor, da escola, ou de demais instâncias oficiais da sociedade, esta pesquisa foi pensada para avaliar esse gênero como uma representação da praça pública medieval dentro da esfera escolar. Esse ambiente consistia no lugar onde ocorriam os carnavais dessa época, caracterizados pela inversão de valores, inversão de papéis sociais, exaltação dos baixos corporais e materiais (BAKHTIN, 2013). Mais adiante, veremos a importância dessa comemoração carnavalesca para a relativização das hierarquias e da alternância entre o que se considerava como verdade e o que estava fora dela.

4 Bakhtin (2010a) usa a expressão supradestinatário para referir-se aos discursos presentes na sociedade como imposições ideológicas de uma época. Não se sabe ao certo de onde surgiram, mas eles exercem influência nos posicionamentos dos sujeitos dessa época. Como exemplos, o autor menciona representantes desses discursos: Deus, a verdade absoluta, o povo, o julgamento da história.

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Acima de tudo, este trabalho só tem sentido se enxergamos a carnavalização como uma metáfora de transformação (HALL, 2003), pela qual é possível questionar e transformar os valores culturais predominantes e refletir sobre a possibilidade de um modelo de sociedade diverso do já estabelecido, baseado nas velhas hierarquias sociais. O autor apresenta o valor da metáfora bakhtiniana da carnavalização, compreendendo-a para além de uma simples metáfora de inversão do alto e do baixo cultural. A ampliação de tal concepção proporciona o pensamento de que

No carnaval de Bakhtin, é precisamente a pureza dessa distinção binária que é transgredida. O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas aquelas formas impuras e híbridas do ‘grotesco’; revelando a interdependência do baixo com o alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas, símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o exercício arbitrário do poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os mecanismos pelos quais se funda a construção de cada limite, tradição ou formação canônica e o funcionamento de cada princípio hierárquico de clausura cultural (HALL, 2003, p. 226).

Autorizados por essa reflexão, compreendemos que a proposta de estudo sob o viés da carnavalização bakhtiniana não propõe solução dos conflitos sociais a partir de uma simples inversão de papéis desempenhados pelos sujeitos na sociedade. A interdependência entre esses papéis sugere que o carnaval seja compreendido como um momento no qual a irredutibilidade dos lugares sociais seja questionada de modo profundo e responsável, sugerindo transformações tão complexas a ponto de permitir mudanças, mesmo que cada sujeito continue ocupando o mesmo lugar fora do carnaval. Desse ponto de vista, para esta pesquisa, não faz sentido a defesa da figura do professor sem sua autoridade, como também do aluno livre para fazer o que bem entender na escola.

Pensar no modo bakhtiniano de compreender o mundo medieval e na relação entre professor e aluno dentro do ambiente de sala de aula é pensar numa relação em que lugares sociais são previamente estabelecidos. Desde cedo, os alunos são ensinados e habituados a respeitar a figura do professor, manter-se sentados em seus lugares, desenvolver atividades conforme a permissão desse profissional e apenas se ausentar da sala mediante autorização.

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Além disso, o ambiente da sala de aula é um ambiente tradicionalmente sério e formal. Por mais que muitos alunos tentem burlar essa tradição com uso do celular, comportamentos agressivos, entre outras atitudes reprováveis neste ambiente, ou o faz escondido ou consciente da grande possibilidade de punição.

Por esses e por outros motivos, consideramos que, ainda nos dias de hoje, atitudes rebeldes não condizem com o esperado para a relação entre professor e alunos no cronotopo da sala de aula. Por isso, os enunciados presentes nos diários podem chocar alguns professores que tenham contato com a pesquisa, ou professores que desejam trabalhar com o gênero em sala. Apesar desse conflituoso contato, compreendemos que tratamos de momentos diferentes e, portanto, de relações diferentes. Isto é, estar em sala de aula e exigir respeito de seus alunos, como também não permitir que utilizem o tipo de linguagem que desejarem quando se referirem ao professor ainda é o ideal a ser feito. Por outro lado, compreendendo as possibilidades trazidas pelos variados gêneros discursivos, quando a professora reencontra, em momento posterior, o texto de uma atividade que desenvolveu com os alunos em um determinado momento, as vozes e o potencial delas percebido por essa mesma leitora apresentam mudanças consideráveis.

Sobre isso, o próprio Bakhtin (2015, p. 128) afirma que a melhor forma de representar o universo do outro é por meio de suas próprias palavras. Mesmo que unida à voz do eu, é a voz do outro sobre sua própria experiência que melhor define o modo como este compreende as experiências registradas. Portanto, agressividade, suavidade, expressões modalizantes são expostas com intenções específicas que não podem ser mascaradas pelo pesquisador. Do contrário, elas devem ser evidenciadas, considerando o estilo como uma marca do posicionamento do sujeito pesquisado.

Nesse sentido, é importante também ressaltarmos a perspectiva teórica utilizada neste trabalho para o estudo do gênero. Rojo (2005) esclarece as implicações teóricas da utilização das nomenclaturas gênero discursivo e gênero textual. Segundo a autora,

[...] aqueles que adotam a perspectiva dos gêneros do discurso partirão sempre de uma análise em detalhe dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa, privilegiando, sobretudo, a vontade enunciativa do locutor — isto é, sua finalidade, mas também e principalmente sua apreciação valorativa sobre seu(s) interlocutores(s) e tema(s) discursivos — e, a partir desta análise, buscarão as marcas linguísticas (formas do texto/ enunciado e da língua — composição e estilo) que refletem no enunciado/texto, esses aspectos da situação (ROJO, 2005, p. 199).

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Logo, partindo desse princípio, consideramos o diário de leitura como um gênero discursivo e, portanto, analisaremos os enunciados a partir de uma situação de comunicação específica em que estão envolvidas diversas questões históricas e sociais. Dentro desse contexto, os sujeitos envolvidos em situações de comunicação diversas produzem textos, selecionam palavras, projetam elementos textuais segundo sua “vontade enunciativa”. O produto dessa elaboração não consiste apenas em um texto configurado em um determinado gênero, mas representa também o modo como o sujeito produtor intervém na sociedade e como concebe o mundo à sua volta. Assim, toda a sua organização e escolha de elementos para materializar o seu dizer são orientadas por suas visões de mundo.

Um exemplo dos efeitos das condições históricas e socias na produção textual é a tendência recorrente de alguns adolescentes se posicionarem nos diários por meio da construção de textos visuais/verbo-visuais. A escolha por essa modalidade é uma tendência em uma época em que a profusão e propagação de imagens nas redes sociais, por meio de diferentes gêneros (e aqui ressaltamos em particular os gêneros produzidos de forma amadora, como os memes, os gifts e similares), é uma constante no cotidiano desses jovens, o que pode ter estimulado a criação de diversos textos com elementos visuais nos diários, mesmo quando não solicitado pelo professor. Devido a essa recorrência e a fim de analisar como os sujeitos produtores se apropriam de elementos de textos visuais em suas produções para revelar seus posicionamentos, selecionamos para esta pesquisa apenas enunciados visuais ou verbo-visuais.

Para tanto, influenciados, principalmente, pela perspectiva bakhtiniana sobre os gêneros discursivos, consideraremos os textos visuais/verbo-visuais como enunciados concretos, com todas as implicações que essa nomeação pode trazer, conforme aponta Volóchinov (2017). Para o autor, os fenômenos ideológicos sígnicos se manifestam em algum material, seja “no som, na massa física, na cor, no movimento do corpo e assim por diante” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 94). Portanto, as imagens aqui analisadas, mesmo quando apresentadas sem o texto verbal, constituem-se também como enunciados, os quais apontam para a compreensão acerca de uma esfera ideológica específica, uma vez que toda construção sígnica reflete realidades a seu modo e refrata outras que podem, inclusive, se encontrar fora de seus limites.

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Por isso, a imagem também é ideológica, pois possui uma estrutura configurada por meio de signos que, embora não sejam linguísticos, apontam igualmente para pontos de vistas específicos (JOLY, 2012). Ainda que a imagem oriente para uma representação fiel de uma realidade específica, ou simulação de um acontecimento, essa simulação sempre chega até o interlocutor intermediada por uma visão ideológica particular, pertencente também a um determinado campo de criação ideológico. Isso ocorre porque todo signo se aproxima do signo verbal, uma vez que emergem nele e são esclarecidos também por ele. Desse modo, nenhum signo permanece isolado do ato verbal, da palavra, pois ela sempre fará parte de sua construção e de sua interpretação.

Sendo assim, podemos nos referir neste trabalho às propriedades da palavra associando-as às propriedades do próprio signo imagético, entendendo que ambas as linguagens são complementares e dependentes uma da outra, não permitindo a divisão entre verbal e não verbal, mas induzindo-nos a nomear os enunciados como visuais ou verbo-visuais, tendo em vista que o material verbal não deve ser negado, ainda que o enunciado seja constituído apenas por imagens.

Ademais, o encontro com o Outro, mediado pela palavra, só é possível a partir da construção de signos valorados por ele, capazes de transformar a realidade de ambos os envolvidos no processo dialógico, considerando que cada encontro é uma oportunidade de desconstrução da mesmice em que nos encontramos, quando insistimos em permanecermos em nossa própria bolha, dialogando apenas com os nossos pares. Em contribuição a essa ideia, Miotello afirma que

Na minha relação com o Outro apenas consigo permitir que esse Outro entre em mim, me mudando, me destruindo e me reconstruindo em uma mesma ação, se nós dermos conta de SIGNIFICARMOS o que está em jogo nessa relação. Ser signo é fundamental. Só consigo me abrir a uma relação com o Outro, se o Outro bater em mim como signo: a) como materialidade; b) como materialidade sócio-histórica; c) como ponto de vista humanizador e humanizado. Assim se dá a ventura humana. Ir aquém e além do visto e do sentido. Não ficar preso na matéria apenas. Um rio não é só um rio. Uma rosa é uma rosa e não é uma rosa. Romper a mesmice. Ser o mesmo e o diferente ao mesmo tempo e ao mesmo lugar. (MIOTELLO, 2011, p. 10)

A partir disso, retomamos o objetivo principal do trabalho que só é possível por meio da compreensão da palavra como “o indicador mais sensível das transformações sociais” (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 106). É ela o território que nos proporciona avaliar e

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compreender como se constituem e se organizam os sistemas ideológicos em toda a sua complexidade, sinalizando as lentas, passageiras ou quase imperceptíveis mudanças de um sistema aparentemente consolidado.

Considerando o sistema escolar como um desses sistemas ideológicos, as indicações de questionamento e destronamento dos discursos preestabelecidos podem ser percebidas em produções dos sujeitos a quem todo o projeto escolar se destina: o próprio aluno. Diante dessa possibilidade e do potencial dessas produções, a atual pesquisa é orientada pelos seguintes questionamentos:

➢ A que discursos oficiais os alunos respondem nos diários de leitura?

➢ De que elementos da linguagem visual e verbo-visual os alunos se valem para elaborar a resposta aos discursos oficiais?

➢ Como a contraposição aos discursos oficiais na produção do diário configura-o como um espaço semelhante aos aspectos da praça pública medieval referenciada por Bakhtin?

Esses questionamentos nos levam a considerar os seguintes objetivos:

➢ Cotejar dialogicamente os discursos oficiais e as respostas a esses discursos presentes nos diários produzidos pelos alunos.

➢ Problematizar o diálogo e a tensão provocados pelo confronto entre os discursos oficiais e as respostas que eles estimulam.

➢ Discutir o espaço proporcionado pelo gênero diário de leitura como um lugar privilegiado e propiciador de reconhecimento e reflexão sobre tensões provocadas pela contestação permanente de discursos oficiais.

Para alcançar esses objetivos, dez enunciados produzidos por jovens estudantes do IFRN – Campus João Câmara foram selecionados de acordo com critérios que serão apresentados na sessão O percurso da folia, presente neste trabalho. Os discentes participantes da pesquisa estavam matriculados, no ano de 2014, ano em que a atividade foi desenvolvida pela autora da pesquisa, nos cursos técnicos e integrados de Eletrotécnica e de Informática, conforme explicaremos melhor mais adiante.

O trabalho foi estruturado em seis capítulos. No primeiro, que consiste nesta introdução, pudemos explicitar brevemente os acontecimentos e reflexões que motivaram

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a existência da pesquisa. No capítulo seguinte, Teoria e prática: o pesquisador dentro da folia, embasamos todas as nossas práticas e discussões por meio da abordagem dos conceitos teóricos essenciais e coerentes aos nossos objetivos de pesquisa e, principalmente, às nossas concepções de trabalho com a linguagem, de educação, de pesquisa e do nosso fazer científico. Mais à frente, no capítulo Juventudes e Identidades, discorremos considerações sobre o ser jovem e sua relação com o espaço escolar. Em seguida, passamos a descrever e apontar problematizações advindas do percurso da análise e do contato e seleção do corpus. É neste capítulo também que explicitamos o percurso para a criação de nossas categorias de análise. No capítulo Enfim, a praça, apresentamos as análises dos dez enunciados selecionados. Por fim, temos No carnaval, esperança, em que retomamos alguns pontos considerados relevantes e reflexões para trabalhos futuros.

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2 CONTEXTO DE PESQUISA

2.1 O QUE E PARA QUEM SIGNIFICA O IFRN

O Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte conta com mais de cem anos de existência em nosso estado. A instituição teve início na capital e funcionava com a denominação Escola de Aprendizes Artífices. Ao longo dos anos, respondeu a diferentes reformas regidas por leis federais, tornando-se Liceu Industrial, Escola Técnica do Rio Grande do Norte – ETFRN, Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET, até se tornar IFRN.

Conhecida no estado como referência de ensino de qualidade, a Instituição recebeu, ao longo desses anos, muitos estudantes advindos de diversos municípios do interior do estado. Somente em 1994, uma unidade descentralizada foi inaugurada em Mossoró, facilitando o acesso ao ensino técnico e de nível médio no âmbito federal por parte dos alunos da região. Doze anos depois, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC), inicia a primeira fase de expansão dos institutos para as regiões interioranas. As fases seguintes ocorreram, respectivamente, nos anos de 2009 e 2013, resultando em 21 campi distribuídos em todas as regiões do estado.5

As transformações social e individual nos sujeitos que residem nessas regiões, sobretudo as mais carentes, e que têm a oportunidade de ingressar em cursos oferecidos pela instituição são inegáveis. Muitos jovens e adultos não poderiam ter outro acesso a uma educação de qualidade, considerando: a distância entre seu local de moradia e a capital do estado, ou demais escolas minimamente bem estruturadas; a renda familiar insuficiente para custear transporte, alimentação e possível moradia em local mais próximo ao ambiente escolar; a precariedade das instituições escolares de sua região, principalmente em se tratando de pessoas que moram em zonas rurais, sítios, assentamentos, entre outros locais igualmente isolados e/ou com recursos materiais escassos.

Nesse contexto, a presença de uma instituição como o IFRN, além dos auxílios disponibilizados para alunos em situação de vulnerabilidade social e diversas oportunidades de bolsas, participação em eventos e integração com instituições nacionais

5 O histórico completo da instituição pode ser acessado no link <http://portal.ifrn.edu.br/institucional/ historico>. Acesso em: 25 de novembro de 2016.

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e internacionais representa uma mudança significativa na história de muitos moradores de áreas carentes de recursos da mais diversa ordem.

Por outro lado, ao expandir uma instituição desse porte, há de se pensar na diversidade de públicos que serão encontrados nos diferentes municípios. Há lugares onde, por exemplo, existe uma cultura de incentivo ao estudo e os alunos sentem menos o impacto em sua rotina ao ingressar no IFRN, instituição conhecida pelo rigor na cobrança dos estudos e pela quantidade de atividades exigidas por um ensino médio integrado ao ensino técnico. Em outros municípios, talvez pela cultura do lugar estar atrelada a um comportamento passivo de uma população habituada a não vislumbrar outras possibilidades além do que se evidencia de imediato, a instituição precisa medir esforços para criar uma cultura de participação e de maior integração entre comunidade e escola, além de despertar o hábito de estudo e de leitura constantes. Nesse sentido, alguns projetos de extensão, bem como feiras de conhecimento e tecnologia são desenvolvidos para proporcionar a integração entre a comunidade local e a Instituição.

Essas especificidades de cada lugar não são consideradas a priori quando os currículos dos cursos dos campi dos interiores obedecem, rigorosamente, aos conteúdos dos cursos já estabelecidos no campus central, localizado em Natal. Essa repetição induz os professores dos novos campi a reproduzir os conteúdos e metodologias semelhantes para públicos que, embora residam no mesmo estado, distanciam-se local e culturalmente. Apesar disso, muitos desses alunos são bem sucedidos em processos seletivos, como ENEM, olímpiadas nacionais e concursos outros. Ainda assim, e estimulados pelos enunciados analisados nesta pesquisa, podemos afirmar que o IFRN, mesmo constituindo-se como instituição exemplar em nosso estado, acaba reproduzindo um problema característico da formação escolar ocidental: a distância entre a organização curricular e a realidade do aluno. Quando essa dificuldade não é reconhecida, podemos, equivocadamente, atribuir a responsabilidade apenas ao aluno e a sua incapacidade de acompanhar o ritmo da instituição.

Essa dificuldade foi enfrentada no campus de João Câmara, município onde estudavam os alunos participantes da pesquisa. O campus, assim como grande parte dos campi no interior do estado, está localizado em terreno relativamente distante da concentração populacional da cidade. O município localiza-se na mesorregião denominada Agreste Potiguar e na microrregião de Baixa Verde. Possui, em média, 58.936 habitantes e mantém como arranjos produtivos sociais e culturais locais a cajucultura, a agricultura, a pecuária, a apicultura e o comércio (DANTAS; COSTA,

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2012).

A instalação de um campus em uma determinada região deve objetivar contribuir na formação humana e profissional dos estudantes do lugar. Outra preocupação é a contribuição para o desenvolvimento econômico local e regional. Apesar disso, surpreendentemente, o campus de João Câmara oferece os seguintes cursos na modalidade técnico integrado: Informática, Eletrotécnica e Administração.

Assim como ocorre em outros campi, devido à carência das regiões vizinhas, muitos alunos ingressam no curso técnico integrado visando a oportunidade de cursar o que é considerado o melhor Ensino Médio da região. Por esse motivo, muitos deles não conhecem o perfil do profissional dessas áreas, que disciplinas técnicas vão encontrar ao longo do curso, quais as oportunidades de emprego e quais as exigências da área escolhida. Por outro lado, há também aqueles que se interessam previamente pela área técnica e apresentam certa resistência às áreas propedêuticas.

Com toda a assistência social proporcionada pela Instituição, há situações relatadas pelos alunos e pelo serviço social que interferem diretamente na aprendizagem e no envolvimento do aluno com o curso. O campus de João Câmara recebe alunos de cidades como Jandaíra, Ceará-Mirim, Bento Fernandes, Touros, São Miguel do Gostoso, entre outros locais relativamente próximos. A maioria dos alunos utiliza o transporte público escolar para se locomover até a escola. Muitas vezes, por diversos motivos, o ônibus escolar não é disponibilizado. Outra questão é a quantidade de regiões em que alguns desses ônibus circulam antes de chegar até a escola, provocando não apenas atrasos, mas também uma longa permanência desses estudantes nas viagens de ida e volta, algumas dessas viagens chegando a até duas horas de duração cada.

Pudemos perceber também o descompasso entre os objetivos que a escola traça para os jovens e os objetivos que representam a cultura de seu nicho familiar. Mesmo frequentando a escola, a pressão para casar e ter filhos, principalmente para as meninas, ou para trabalhar e auxiliar na renda familiar, principalmente para os meninos, foi relatada algumas vezes por alguns alunos. Por esse motivo, era comum meninas engravidarem ou casarem durante o curso, ou meninos precisarem se dividir entre trabalho e estudo (em muitos casos, trabalho pesado na roça), ou, ainda, concluírem os seus estudos sob forte pressão para que abandonassem o curso para trabalhar.

Todas essas problemáticas sobrevivem diante do esforço de se apropriar, compreender e pôr em prática a proposta do projeto político pedagógico do IFRN, um

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documento completo, do ponto de vista teórico, e coerente com os documentos federais que regem o ensino público no país.

A seguir, abordaremos algumas considerações apresentadas no documento.

2.2 PROPOSTA DE CURRÍCULO

No projeto político pedagógico do IFRN, pode-se encontrar um panorama do perfil identitário da Instituição, o qual se configura, prioritariamente, em algumas expressões-chave como: formação humana integral, exercício da cidadania, igualdade e justiça sociais, democratização da educação, gestão democrática. Logo, como veremos a seguir, as concepções apresentadas no documento estão direcionadas para o objetivo principal da construção de um ambiente escolar que contribua para a diminuição da desigualdade social e para a autonomia do sujeito que ingressa na instituição na condição de aluno.

A compreensão de currículo apresentada pelo documento também pode ser resumida na integração entre conhecimentos sobre o ser humano, sobre sociedade, sobre cultura e sobre ciência. Diante disso, nenhum desses conhecimentos devem ser privilegiados e isolados, uma vez que eles não devem ocorrer sem que haja um constante diálogo entre si.

Nessa reflexão, o documento propõe a compreensão sobre as relações de poder existentes na elaboração de um currículo. Essa perspectiva pós-estruturalista pode ser encontrada em Silva (2010), o qual discute o ato de selecionar conteúdos, estratégias de ensino e teorias pedagógicas como um ato de poder, uma vez que, ao selecionarmos determinados conhecimentos entre inúmeras possibilidades, exercemos um ato de poder que considera a hierarquia da esfera educacional. O autor confirma que

As teorias do currículo não estão, neste sentido, situadas no campo “puramente” epistemológico, de competição entre “puras” teorias. As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter hegemonia. As teorias do currículo estão no centro de um território contestado” (SILVA, 2010, p. 16)

Considerando essa discussão, o documento segue justificando as escolhas institucionais não apenas ligadas ao que as instituições educativas desejam desenvolver,

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mas inserindo todo o mosaico social diante dos costumes, identidades e crenças, ou seja toda a diversidade social como fatores também determinantes na produção curricular.

Nesse sentido, a concepção de ser humano está pautada na ideia do sujeito multidimensional, dinâmico e complexo. Por esse motivo, não há como reduzir esse sujeito a um só componente, ou compreendê-lo a partir de uma lógica binária. Está, portanto, numa condição de imprevisibilidade e de possibilidades. Outra questão importante é o fato de não considerar o sujeito como um ser que já nasce repleto de valores humanos. Do contrário, compreende que esses valores são construídos socialmente, e a escola tem também o dever de confirmá-los ou de construí-los juntamente com os demais discursos. Essa concepção explica o porquê da valorização da formação humana juntamente com a formação técnica, não apresentada como acessório, mas como uma formação fundamental para desenvolver a capacidade humana de “produzir o seu projeto existencial” (DANTAS; COSTA, 2012, p. 41)

No que diz respeito à concepção de sociedade, o documento reconhece, alicerçado, principalmente, no pensamento de Bourdieu, que a escola tem sido ao longo dos anos reprodutora de desigualdades. Nesse sentido, quanto maior o capital cultural do aluno ingressante em uma instituição escolar, maiores são as chances de reconhecimento entre esse aluno e os conteúdos ministrados. Consequentemente, é esse tipo de aluno que alcança as maiores notas e ocupa os empregos mais valorizados. Diante desse contexto, a proposta do IFRN é contribuir para a diminuição dessa seletividade social, transformando a realidade por meio da democratização dos processos de ensino e aprendizagem, proporcionando a todos os seus alunos, independentemente de seu histórico, uma educação de qualidade.

Em se tratando de cultura, o PPP apresenta duas concepções para essa expressão. A primeira é a concepção clássica, para a qual a cultura significa sinônimo de civilidade. Essa perspectiva é amparada pelo evolucionismo, que considera a existência de estágios evolutivos para todas as sociedades (selvageria, barbárie e civilização). Isso implica dizer que há uma série de elementos que caracterizam as culturas evoluídas que representam o status a que se deve atingir as demais culturas de escala inferior. Em contraponto, a visão antropológica, visão que norteia o documento, compreende a cultura como modo de vida.

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