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O realismo grotesco e o riso na Idade Média tinham como palco a praça pública. Embora as festividades contribuíssem para um sentimento de realização individual, era a construção coletiva que conferia sentido maior para os eventos nelas desenvolvidos. A praça era, portanto, o lugar de encontro, onde o riso era construído coletivamente, as imagens grotescas ganhavam visibilidade e o público passante era agregado aos acontecimentos da festa.

O clima libertador da praça também podia ser visto no tipo de linguagem utilizado, longe das amarras oficiais. Esse caráter da linguagem, não é forçoso dizer, não constitui um desvio aleatório da norma. Pode ser facilmente associado a uma afronta à tradição, à limpeza, à intolerância e à rigidez da norma vigente e do que ela representa historicamente, isto é, a linguagem da nobreza.

A praça pública, então, é o espaço em que a linguagem popular e “suja” não somente é permitida como também é valorizada. Assim:

Os elementos da linguagem popular, tais como os juramentos, as grosserias, perfeitamente legalizadas na praça pública, infiltravam-se facilmente em todos os gêneros festivos que gravitavam em torno dela (até no drama religioso). A praça pública era o ponto de convergência de tudo que não era oficial, de certa forma gozava de um direito de “exterritorialidade” no mundo da ordem e da ideologia oficiais, e o povo aí tinha sempre a última palavra. Claro, esses aspectos só se revelavam inteiramente nos dias de festa. Os períodos de feira, que coincidiam com estes últimos e duravam habitualmente muito tempo, tinham uma importância especial. Por exemplo, a célebre feira de Lyon se realizava durante quinze dias quatro vezes ao ano; no total, dois meses completos por ano, Lyon conhecia a vida de feira e, consequentemente, em larga medida, a vida de carnaval. O ambiente carnavalesco reinava sempre nessas ocasiões, qualquer que fosse o momento do ano. (BAKHTIN, 2013, p. 133, grifos do autor)

Nesse contexto, a linguagem popular não deve ser vista como uma atitude de rebeldia inconsequente. Ela representa a negação da oficialidade que desconsidera a diversidade da linguagem e da expressão humana. Permitir que essa linguagem popular venha à tona, portanto, não constitui um ato arbitrário. Do contrário, é garantir um espaço em que essa manifestação se desenvolva plenamente longe de qualquer tipo de censura.

Com essa finalidade, a linguagem da praça pública atribui elementos de exposição da realidade íntima e grosseira de forma hiperbolizadora. Apesar dos exageros, essa linguagem apresenta os rituais solenes do lado sério do cotidiano. Na praça, o sério e o riso se misturam como se o elemento a ser subvertido não tivesse de ser ignorado, mas passa a ser um elemento constitutivo da linguagem subversiva. O sério, neste caso, não constitui um problema para o riso, é seu aliado. O riso só existe a partir do sério. E os dois coexistem na praça pública, o riso tendo como papel impedir a força unilateral e fixa da seriedade.

A mistura entre o sério e o cômico pode ser considerada agressiva quando os discursos sagrados e intocáveis se misturam às obscenidades e demais elementos não oficiais da linguagem. Essa violação flagrante de regras representa

uma deliberada recusa de curvar-se às convenções verbais: etiqueta, cortesia, piedade, consideração, respeito da hierarquia, etc. Se os elementos desse gênero existem em quantidade suficiente e sob uma forma deliberada, exercem uma influência poderosa sobre todo o contexto, sobre toda a linguagem: transpõem-na para um plano diferente, fazem-na escapar a todas as convenções verbais. E essa linguagem, liberta dos entraves das regras, da hierarquia e das interdições da língua comum, transforma-se numa língua especial, uma espécie de jargão. Em consequência, ela propicia a formação de um

grupo especial de pessoas iniciadas nesse contexto familiar, um grupo franco e livre na sua expressão. Era assim de fato a multidão da praça pública, em especial nos dias de festa, de feira, de carnaval” (BAKHTIN, 2013, p. 162, grifos do autor).

Conforme essa lógica, o uso de linguagem chula ou obscena não representa apenas uma recusa à linguagem oficial. Esses usos transgridem as leis de formalidade e de bom comportamento impostas a uma época. Ainda mais, temos uma transgressão que vai além do texto oral ou escrito e aponta para transformações nesses ambientes oficiais que serviram de objeto de análise, crítica pejorativa ou chacota nos textos cômicos. É nesse sentido que a praça pública se constitui como um espaço de transformação, de metamorfose.

Cada época possui suas expressões oficiais e suas expressões não oficiais, como em cada época convencionam-se os espaços, cerimônias, rituais em que a linguagem oficial é exigida. Às margens desses espaços, nos momentos de festa, a linguagem da praça pública ganha espaço. Contudo, essa linguagem relegada não existe apenas como contraponto à oficialidade. Subsiste como uma forma encontrada pelos guetos de penetrarem nos espaços de formalidade, corroendo concepções fixas e hierarquias predeterminadas. Assim,

Essas palavras e expressões criam um ambiente de franqueza, dirigem a atenção para alguns assuntos, trazem concepções não oficiais. Naturalmente, as possibilidades que o carnaval oferece a esse respeito se revelam plenamente na praça pública em festa, no momento em que se suprimiram todas as barreiras hierárquicas que separam os indivíduos, e se estabelece um contato familiar real. Nessas condições, esses elementos atuam como parcelas conscientes do aspecto cômico único no mundo. (BAKHTIN, 2013, p. 163)

As imagens pertencentes ao “mundo sério”, em seu contexto convencional, estão bem amarradas e instituídas em seu lugar de destaque, de respeito, de legalidade. A ressignificação, contanto, dessas imagens, conferindo-lhes um novo lugar, uma nova roupagem em que o seu lugar convencional é questionado, pode ser considerada “um novo nascimento”, ou destronamento, em que o antigo é apresentado em um fundo novo, insólito, no qual essas imagens costumam não aparecer.

considerados um elemento não oficial da língua. Neles, os nomes de santos ou de reis eram substituídos por apelidos, criando um ambiente propício para a licenciosidade, para o blefe e para a contestação da autoridade imposta pela Igreja e pelo Estado, os quais consideravam-no blasfemador, profanador de nomes sagrados e indignos de piedade. Por isso, muitos deles eram condenados e considerados como não oficiais, representando uma violação das regras da linguagem. Assim, os juramentos tornaram-se um instrumento de protesto contra o sistema de concepções oficiais.

Para falar sobre uma obra que mantém relação com Rabelais, mas que não é de um autor contemporâneo seu, Bakhtin (2013) elege “O jeu de la feuillée”, do trovador de Arras, três séculos mais antiga que a obra rabelaisiana. Trata-se de um drama ocorrido em Arras, cidade natal do autor, cujos personagens são o próprio autor, seu pai e demais cidadãos da cidade, mencionados na obra a partir de seus nomes reais.

O enfrentamento ao discurso oficial dentro da obra é caracterizado por meio da relação entre os personagens. Um deles, por exemplo, é um monge, que adormece longe da parte central da cena, um caramanchão. Está claro que esse monge representa a verdade oficial da época e que, ao posicionar-se distante deste lugar, propicia que demais personagens se aproximam para um momento de ceia festiva, desfiles e conversas.

A junção na narrativa do personagem dito sábio, sério, respeitoso sendo enganado pelos personagens festivos e tolos conferem ao autor o direito de focar em um tema não oficial. Confere espaço também à linguagem do tolo, uma vez que o sábio, isto é, o discurso oficial encontra-se longe dos olhos, dormindo, incapaz de intervir e de incomodar.

A partir dessa obra, ao autor do drama é dada a oportunidade de exprimir um ponto de vista que não faz parte da oficialidade, oferecendo um modo particular e de se ver a realidade, um modo que se constitui também como hostil à oficialidade da época.

Nesses moldes, a hierarquia social é esquecida e impõe-se uma nova ordem, baseada no destronamento dos soberanos e na elevação dos grupos sociais menos favorecidos. Isso gera o que podemos chamar de criação do “elemento utópico”, assim chamado por representar uma realidade que só é possível na trama, mas submete todos os envolvidos na nova ordem, de modo que os prejudicados, nesse caso os representantes do discurso oficial, não possam se queixar do novo lugar que lhes é conferido.

Esse exemplo nos mostra que a cultura não oficial coexiste com a cultura oficial. Para que isso ocorra, a cultura popular da praça pública precisa encontrar caminhos para sua sobrevivência mediante às tentativas dos discursos oficiais de sufocamento,

intimidação ou apagamento. As formas de resistência se dão dos modos mais diversos, mas todas elas devem considerar o poder que a oficialidade tem sobre o povo, sobretudo porque o desrespeito ao oficial sempre está atrelado a punições severas. Por isso, a cultura popular sobrevive às margens, no limite entre o sério e o riso, criando seu próprio espaço e sua própria história de tradição e continuidade.

Mesmo quando um poder parece ser derrubado, o medo imposto por uma cultura ainda exerce grande força na consciência daqueles que durante muito tempo foram a ela submetidos. Assim ocorreu com a cultura oficial da Idade Média. Elaborada ao longo de séculos, apoiada na Igreja Católica, construiu discursos que perseveraram mesmo após a formação feudal chegar ao fim. Nesse sentido, a poderosa cultura cômica foi providencial para continuar combatendo uma ideologia milenar, porque também foi construída a partir de milhares de anos.

Logo mais à frente, o autor demonstra o poder renovador do banquete e do ato de comer. O momento da refeição estava intimamente ligado ao trabalho, uma vez que se tratavam de momentos nos quais a sociedade participava em condições de igualdade. Desse modo, o ato de comer não correspondia apenas a uma necessidade biológica, mas também, e principalmente, a um importante acontecimento social, em que, coletivamente, as pessoas se confraternizavam de modo alegre. Além disso, o banquete simbolizava um coroamento, uma finalização vitoriosa não somente nas obras rabelaisianas, como também em outras obras populares.

Compreendemos que, assim como a praça pública, o banquete proporciona momentos alegres e de renovação. Isso porque

As conversações à mesa são conversas livres e brincalhonas: o direito de rir e de entregar-se a palhaçadas, de liberdade e de franqueza, concedido à ocasião da festa popular, estendia-se a elas. Rabelais coloca sobre seus escritos o chapéu protetor do bufão. Mas ao mesmo tempo, as conversações à mesa cumprem perfeitamente o seu papel, por sua própria natureza. Ele prefere o vinho ao azeite, símbolo da seriedade piedosa da quaresma (BAKHTIN, 2013, p. 249)

A praça pública, então, é o lugar que propicia práticas de renovação que podem ou não estar atreladas ao riso festivo, mas sempre estão associados à renovação da vida por meio do novo lugar que concedem ao discurso sério e oficial a que os participantes

do evento estão submetidos. A importância dessa praça, que é pública, que é de todos, mostra a importância das práticas coletivas e de ações simples do povo em busca do destronamento de discursos responsáveis pela opressão.

A seguir, procuraremos verificar como esse contexto de renovação pode estar associado ao espaço escolar e a suas práticas.