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A mundialização da economia e a crise sistêmica

No documento A crise da escola (páginas 131-138)

Feitas estas necessárias ponderações sobre as teorizações de Arrighi, retornemos à nossa discussão sobre a coniguração econômica que se constrói após a crise dos anos 1970.

É preciso insistir no fato de que os diversos elementos da rea- lidade atual em que está presente o nosso problema central, ou seja, a desestabilização do horizonte democrático da educação pública, da crise da escola, compõe uma só cadeia sistêmica, cujo cenário é, funda- mentalmente, o im da “Era de Ouro”.

Com o im da “Era de Ouro”, ergue-se um cenário caracterizado por relações políticas, econômicas, sociais absolutamente desfavo- ráveis às maiorias sociais. Aumenta a polarização social, crescem os índices de desemprego, não mais como um fenômeno circunstancial, mas como aspecto estrutural da nova fase de acumulação. Os investi- mentos produtivos diminuem drasticamente, passando a predominar os investimentos especulativos. O im da regulação fordista e da produção voltada para o consumo de massa altera todo o quadro econômico tanto no que diz respeito ao emprego, quanto ao consumo. O alto desenvolvi- mento cientíico e tecnológico movimentado pela concorrência, situado dentro da racionalidade do capital, aprofunda a situação do desem- prego. É toda uma cadeia sistêmica que se orienta pela racionalidade da acumulação capitalista, que tem acelerado o processo que marginaliza e exclui grandes parcelas de indivíduos. É neste contexto que perdem terreno valores como democracia, bem público, bem-estar social tão caros às classes trabalhadoras.

Chesnais defende que estes fenômenos colocados acima formam um todo único e como tal devem ser analisados, nunca como uma “so- matória de fatos isolados”. Para ele, aqueles fenômenos

Remetem às modiicações nas relações entre capital e trabalho – levando a formas de relação salarial sensivelmente diferentes das que prevaleceram entre 1950 e 1975 – bem como às mu- danças nas relações entre o capital produtivo de valor e o capital

inanceiro, que se deram no contexto da ‘mundialização do ca- pital’ [...] (CHESNAIS, 1996, p. 303).

Assim, na consideração do autor, foi mesmo a liberalização e a mundialização do capital que puseram im ao quadro econômico, político e social que caracterizou os “Anos Dourados”. Esses dois fenômenos, articulados à inanceirização da economia criaram uma contradição insolúvel entre a livre movimentação do capital privado e a regulação, fundamentalmente realizada nas fronteiras dos Estados nacionais. Pouco a pouco estes Estados “viram sua capacidade de in- tervenção reduzida a bem pouco, pela crise iscal, e os fundamentos de suas instituições solapados a ponto de torná-los quase incapazes de impor qualquer coisa ao capital privado” (CHESNAIS, 1996, p. 301).

Esses fenômenos citados acima desestabilizaram o tripé de sus- tentação do modelo de acumulação fordista: a produção em massa e a grandiosa extensão do trabalho assalariado; a estabilidade monetária in- ternacional, por meio da paridade ixa dólar-ouro; e a mais fundamental de todas: a existência de Estados nacionais que disciplinavam o mercado.

Seguindo as análises de Chesnais, consequentemente, também o problema do emprego, aliás, da destruição de postos de trabalho em proporção superior à criação de novos empregos, é um fenômeno que resulta da total mobilidade do capital, que pode investir ou desinvestir a qualquer momento em qualquer mercado, independente da naciona- lidade, ao sabor da sua ânsia de acumular e das vantagens oferecidas.

Ora, com a desregulamentação e liberalização dos mercados, num momento em que a concorrência capitalista com sua voracidade extrapola todas as fronteiras, as políticas de combate ao desemprego perderam muito de seu sentido, pois

A mobilidade do capital permite que as empresas obriguem os países a alinharem suas legislações trabalhistas e de proteção social àquelas do Estado onde forem mais favoráveis a elas (isto é, onde a proteção for mais fraca). Essa mobilidade tende neces- sariamente a limitar a eicácia de medidas como a redução de tempo de trabalho, se não puderem ser impostas às empresas por

toda parte – ou, pelo menos, nos principais países – onde estas sejam suscetíveis de se localizarem (CHESNAIS, 1996, p. 304). Além da desregulamentação e liberalização econômica, é preciso considerar ainda o fato de uma boa quantidade de postos de trabalho terem desaparecido sob a “racionalização” produtiva forçosamente pro- movida pela pressão competitiva que obriga o capital a reduzir custos, automatizando e eliminando postos de trabalho.

Outro efeito poderoso da mundialização do capital liberalizado, desregulamentado e sob intensa pressão competitiva é a queda drástica do consumo doméstico que, por sua vez, exerce forte inluência depres- siva sobre a economia como um todo.

Esta queda é devida, em primeiro lugar, à eliminação de postos de trabalho em proporção superior à criação de novos empregos e, em segundo, à pressão sobre os salários, que age no sentido de rebaixá-los.

A mundialização do capital também afeta negativamente as des- pesas públicas em primeiro lugar fazendo cair a arrecadação de im- postos em função do desemprego, da queda dos salários e da conse- quente estagnação do consumo. Além disso, há a tendência de reduzir a taxação sobre o capital, baseada na crença de que a resolução dos pro- blemas sociais, especialmente do desemprego, depende da “boa saúde da economia”.

Desde o início da década de 1970, o capitalismo mundial vive uma tendência de baixa das taxas de crescimento em que, como já foi demonstrado, os capitais particulares buscam autovalorizar-se na es- fera inanceira. O crescimento da movimentação dos capitais na esfera inanceira, no entanto, não constitui, ao contrário do que pode parecer, um movimento independente do restante da economia.

Por entender assim, como um movimento independente, é que correntes da economia analisam as sucessivas crises dos anos 1990 como crises meramente inanceiras. Para Chesnais, porém, todas essas manifestações, como a crise mexicana, argentina, e mesmo o caso da posterior crise russa, têm o mesmo caráter da crise asiática que, se- gundo aquele autor, apesar de “possuir um componente muito forte de

endividamento e de fragilidade bancária [...] ela não é, no entanto, i- nanceira. Ela é econômica” (CHESNAIS, 1998, p. 8).

Para aquele autor, ainda a respeito das raízes das crises inan- ceiras, falando especiicamente sobre a crise mundial aberta na Ásia

[...] a gravidade da crise em curso provém do fato de que, a des- peito deste aspecto, ela não é ‘inanceira’. Ela mergulha suas raízes nas relações de produção e de distribuição que regem cada economia e que comandam o caráter hierarquizado da economia mundial tomada no seu conjunto (CHESNAIS, 1998, p. 9). Dentro dessa coniguração, a mais óbvia conclusão aponta para a inevitabilidade dessas crises, dadas as condições atuais da economia mundial: queda do crescimento, agudização da concorrência capitalista, superprodução tendencial, altos níveis de endividamento dos países pe- riféricos. Tudo isso acompanhado do mais grave, o fato de que qualquer abalo econômico imediatamente atinge toda a economia global.

Com efeito, as crises geradas nesta etapa de expansão inanceira serão sempre crises um tanto diferentes das clássicas crises de super- produção justamente porque traduzem “as contradições de um sistema orientado, mais fortemente do que qualquer outro momento do estágio imperialista, no sentido predatório puro” (CHESNAIS, 1998, p. 10).

Muitos autores têm constatado, inclusive muitos daqueles que fazem apologia do sistema do capital, que todas as medidas austeras que foram tomadas ao longo dessas últimas décadas, como as priva- tizações, os ataques aos gastos sociais, a desregulamentação e libera- lização econômicas, não conseguiram reverter a tendência de estag- nação econômica.33

33 “A reestruturação induzida pelas políicas delacionistas juntamente com a desregulação dos mercados, na verdade produziram “uma prolongada desaceleração do crescimento econômico mundial, o aumento do desemprego, a queda absoluta do nível de renda dos trabalhadores e um salto gigantesco da acumulação inanceira. As evidências são tantas que até os eco- nomistas começam a reconhecer que a era fordista foi uma exceção mais do que a regra de um sistema econômico cuja idenidade contraditória e excludente está icando cada vez mais parecida com a do seu retrato feito no século XIX pela ‘críica da economia políica’ de Marx” (FIORI, 1997, p. 47).

Esta constatação é importante na medida em que demarca teórica e politicamente as teses conservadoras, mas não serve, a nosso ver, para ressuscitar a social-democracia como alternativa viável. Neste sentido nos afastamos de Fiori, para quem “o welfare state segue sendo a mais ambiciosa e bem sucedida construção republicana de solidariedade e proteção social.” (FIORI, 1997, p. 52). Para este autor, a saída se en- contra no “neo-keynesianismo global” de Galbraith.

O que nos afasta daquele autor nos aproxima de Chesnais, para quem a superação positiva e deinitiva dessas crises passa por uma pro- funda aprendizagem a partir das principais lições do século XX, ou seja, da “plasticidade” do sistema do capital e sua capacidade de so- brevivência, da experiência da social-democracia e do socialismo real- mente existente. Aprender com essas lições sem, contudo, prescindir do fundamental, que são medidas de expropriação do capital.

Chesnais corrobora as teses de Altvater (1995) citadas no início deste capítulo. Para o primeiro, o modo de desenvolvimento assegu- rado pela regulação fordista não poderia ser expandido senão para uma muito pequena parcela da humanidade. A respeito desta impossibili- dade, o autor em questão coloca-se nos seguintes termos

[...] sabe-se, há pelo menos uns dez anos, que, sob os ângulos decisivos do consumo de energia, das emissões na atmosfera, da poluição das águas, dos ritmos de exploração de muitos recursos naturais não renováveis – ou só renováveis muito lentamente – etc., o modo de desenvolvimento sobre o qual os países da OCDE construíram seu alto nível de vida não pode ser generali- zado à escala planetária. Mesmo levando em conta certas mu- danças de consumo que vieram depois das duas ‘crises do pe- tróleo’ e o surgimento de novas tecnologias, a extensão, para todo o planeta, das formas de produção, de consumo, de trans- porte (por automóvel individual) associados ao capitalismo avançado é incompatível com as possibilidades e limitações tec- nológicas atualmente previsíveis. Os fundamentos do modo de desenvolvimento do capitalismo monopolista contemporâneo – a propriedade privada, o mercado, o lucro, o consumo exacer- bado pelo aguilhão da publicidade, mas também constantemente buscado como base de retomada da atividade industrial (inclu-

sive pelos partidos ‘de esquerda’ e pelos sindicatos), o produti- vismo a qualquer custo, sem atenção aos recursos naturais e à repartição do trabalho e da renda – estabelecem os seus limites sociais, políticos e geográicos (CHESNAIS, 1996, p. 314). Não são apenas limites ecológicos que se impõem ao desiderato de um modelo “neo-keynesiano” global. Os limites são de ordem econômica e política e são, nesses campos, praticamente intransponíveis dentro da ordem econômica vigente. Como pensar nos termos de um “neokeyne- sianismo” global diante de uma economia cada vez mais encadeada mun- dialmente, dominada por um punhado de gigantescos conglomerados que compõem uma hierarquia absolutamente rígida; diante de uma economia profundamente contraditória, constituída de um mercado cada vez mais reduzido e competitivo e ao mesmo tempo mundializada?34

Ora, pois as novas bases em que se apoiam a produção e o con- sumo e o salto produtivo do trabalho na indústria criaram um novo pa- drão de relação entre o centro e a periferia capitalista, ainda mais cruel. As grandes companhias que comandam a economia precisam, única e exclusivamente, de mercado para onde possam empurrar sua produção. Por isso se estabeleceu agora uma relação seletiva que abrange apenas alguns países da periferia como produtores de matérias primas – em es- cala cada vez mais reduzida e com preços em queda –, como bases de terceirização do capital comercial, ou pelo potencial do mercado interno. Segundo Chesnais, foi por estas razões que estancaram os investimentos diretos para muitos países, concentrando-se esses nos países da Tríade.

34 “Depois da reestruturação da economia mundial, ocorrida nos anos 80, o poder de invesimen- to no mundo é deido por menos de duzentos grandes conglomerados econômicos e cerca de vinte bancos internacionalizados” (FIORI, 1995, p. 188). “Em 1988, os países da OCDE gastaram um total de cerca de 285 bilhões de dólares em P&D. Desse total, os EUA respondem por quase metade (138 bilhões de dólares, ou seja, 48,4%), os países da CEE por pouco mais de um quar- to (27,7%), o Japão por 17,9% (51 bilhões de dólares) e o conjunto dos demais países, por ape- nas 6%.” (CHESNAIS, 1996, p. 141). Sobre a concentração de capital, os dados da década de 80 já assustavam. Alguns exemplos: no setor de automóveis, em 1984, 12 empresas respondiam por 78% da produção mundial; no setor de processamento de dados/ ASIC, 12 empresas res- pondiam por 100% da produção mundial; na produção mundial de material médico, em 1989, 7 empresas respondiam por 90%; na produção de pneus, em 1988, 6 empresas respondiam por 85% da produção mundial (Idem, ibidem).

Estas são, pois, algumas das marcas fundamentais do quadro econômico atual, caracterizado por Fiori como o período da “vingança do capital” (FIORI, 1997, p. 48). É nesse cenário, obviamente mais complexo do que se fez parecer, que devem ser pensadas as derrotas políticas das classes trabalhadoras e dos demais setores progressistas. É aí que se coloca o retrocesso das conquistas35 sociais e no bojo delas a

atual crise da escola. É no contexto da crise de acumulação que sucedeu à “Era de Ouro” e a partir das manobras do grande capital em sua “vin- gança” que se pode explicar o caráter desfavorável da realidade atual, em todos os sentidos possíveis, para as maiorias sociais.

Lembrando Balzac, “Quando um nome corresponde a um fato social que não se poderia dizer sem perífrases, a fortuna dessa palavra está feita”36. Para a desgraça de muitos, nas últimas décadas, foi feita a fortuna de palavras como exclusão social, desemprego estrutural, neoli- beralismo, globalização e tantas outras do novo vocabulário econômico.

35 Consideramos o estágio do Estado de bem-estar como o resultado da organização das classes trabalhadoras e do seu poder de pressão, mas consideramos também que foi mesmo a ex- pansão econômica do Pós-Segunda Guerra o fator fundamental que tornou possível ao capital semelhantes concessões. Este ponto de vista é comparilhado, com algumas diferenças, por Mészáros (1996a, 1999), Arrighi (1996, 1997, 1998), Chesnais (1996, 1998, 1999), Fernández Enguita (1989, 1990), Hobsbawm (1998), para citar alguns.

36 Do conto "Um homem de negócios". BALZAC, H. A mulher abandonada e outros contos. Rio de Janeiro: Ediouro, [19-?], p. 136.

A CRISE DO TAYLORISMO − FORDISMO E A

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