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O FIM DA “ERA DE OURO” E A NOVA CRISE MUNDIAL

No documento A crise da escola (páginas 112-118)

Uma pessoa, para se desenganar, precisa de tocar com a mão nas aparências.

Cervantes

Introdução

N

o primeiro capítulo, apresentamos uma série de análises de diferentes autores sobre a atual crise da escola. Essas análises apresen- tadas se realizam a partir de diversos pontos de vista, tratam a crise atual da escola realizando os mais diversos recortes, ora enfatizando as transformações operadas no nível do Estado, ora enfatizando os avanços tecnológicos, ora enfatizando a globalização. Estas análises compõem um quadro amplo da crise da escola de modo que, todas elas, de um modo ou de outro, colocam a crise da escola sempre em referência aos processos mais gerais de transformação como a globalização, o neoli- beralismo, a crise do trabalho, o avanço cientíico-tecnológico etc.

Nos capítulos seguintes (2o, 3o e 4o), abordaremos justamente

esta realidade que representa o entorno da crise da escola, os elementos e as relações materiais que consideramos constituírem a base funda- mental sobre a qual se processam as mudanças no horizonte da edu- cação; para ser mais especíico, discutindo o tablado em que se realiza o drama da crise atual da escola.

Será investigado, em linhas gerais, o movimento material complexo denominado por muitos autores nos termos de “globali- zação”, “neoliberalismo”, “ofensiva conservadora”, que tem contri- buído para desestabilizar os chamados valores liberal-democráticos da educação e atingido efetivamente as possibilidades concretas de realização da educação da maioria dos indivíduos numa perspectiva ampla, progressista, integradora e democrática, constituindo assim, a crise da escola.

As grandes mudanças processadas nos planos econômico e polí- tico constituem uma dimensão importante nas diversas análises, muito embora seja diferente o tratamento dado às mesmas e haja divergências a respeito do seu peso enquanto realidades determinantes. Porém, em todas as análises apresentadas, o elemento comum é a tentativa de am- pliar o terreno de investigação, situando os problemas da educação no cenário mais geral das transformações sociais.

Aquele quadro amplo e heterogêneo de análise da educação pode ser dividido em dois grandes grupos: de um lado, estão as análises que observam a hegemonia conservadora como uma recomposição política de direita, e o recente movimento da economia mundial como um movi- mento que impõe sérias perdas às maiorias sociais, assim considerando que, no campo da educação, as transformações têm sido conduzidas na direção de fazer retroceder as expectativas sociais quanto à democrati- zação da educação.

De outro lado estão as análises que, embora localizem a crise da escola no cenário social maior de transformações, guarda, frente a esse processo todo, um crescente otimismo quanto às possibilidades ofere- cidas pelos avanços cientíico-tecnológicos, quanto à integração global dos mercados e quanto às novas tendências da educação neste contexto.

De um modo geral, todas as análises reconhecem o fato de que a crise da escola é um momento das grandes transformações ocorridas recentemente nas mais diferentes esferas da sociedade. Para nós, estas transformações estão inexoravelmente associadas à crise sistêmica de- sencadeada entre as décadas de 1960 e 1970. É essa crise que aborda- remos agora em seus traços essenciais.

Parte das análises sobre a crise da escola considera que a edu- cação entrou, já há alguns anos, numa fase marcada por perdas signii- cativas, as quais se situam exatamente no bojo das perdas sociais mais amplas, no quadro de retrocesso das conquistas sociais. Essas análises são unânimes em considerar que este retrocesso social, de algum modo, se relaciona com a crise do capitalismo iniciada no começo da década de 1970. Mesmo as análises que não assumem uma postura mais crítica frente a esse processo, também essas o consideram como uma revira- volta na função social da escola.

Como já se falou anteriormente, é com a crise da década de 1970 que começam a ganhar corpo os elementos e os processos que vão se constituir como o divisor de águas do desenvolvimento social recente. Essa crise demarca o início do declínio do modelo de regulação for- dista, com seu padrão próprio de produção e consumo, do modelo de Estado de bem-estar, de um período de expansão sem par na história do capitalismo.18 Porém, mais que tudo, as profundas mudanças desen-

volvidas no interior dos processos de trabalho, que são a um só tempo causa e efeito da crise geral e das transformações econômicas, parecem ter signiicação maior, pois apontam para uma direção diferente do que foi, digamos assim, a perspectiva histórica da acumulação capitalista, cujo ápice se deu nos “anos dourados” do Pós-Segunda Guerra.

O sistema do capital, movido pela sua lei fundamental, o im- perativo estrutural expansionista, sua voracidade de acumular, alimen- tada pela extração de trabalho excedente, revolucionou de tal maneira a composição orgânica do capital, que houve um incomensurável desen- volvimento do capital ixo, ou seja, da capacidade produtiva de meios de produção como máquinas de última geração da ciência e da tecno- logia em detrimento do capital variável, que tem se tornado cada vez menos imprescindível. Como consequência disso, veriica-se a exacer-

18 Não é demais lembrar Arrighi neste caso: para ele, a chamada “Era de Ouro” não representa um momento único de grande expansão capitalista. “Se escolhermos indicadores que fortale- çam uma tendência oposta (indicadores de comércio e não só de produção) e compararmos o período de 1950-75 com outro de igual duração, 1848-73, veremos que os desempenhos nas duas ‘eras douradas’ não parecem ter sido nada diferentes” (ARRIGHI, 1997, p. 308).

bação do caráter destrutivo do capital na medida em que cada vez mais se esgotam os suportes físico-naturais do metabolismo social.

Com efeito, dois aspectos de suma importância se colocam para o desenvolvimento social contemporâneo: a tendência ao esgotamento das condições naturais de produção, cujas consequências põem em risco a humanidade como um todo; e, de outra parte, uma situação so- cial absolutamente contraditória, de uma sociedade que fundou seu sis- tema produtivo, jurídico, político, cultural etc., sobre a relação capital- -trabalho, e que passa, doravante, a dispensar a força sem a qual ela não existiria, passa a negar o que antes era a sua pedra fundamental: o trabalho. Com o que acumulou em termos de trabalho morto, o sistema dispensa amplas parcelas de trabalho vivo e relega aos porões da so- ciedade imensos contingentes de indivíduos. Inicia-se um estágio que, segundo Mészáros (1999, p. 94), “ameaça privar o sistema do capital em geral de sua raison d’être histórica”.

É daí que se torna possível falar de uma mudança na perspectiva histórica do capitalismo, que deve, inclusive, alterar as formulações das classes exploradas e “excluídas” a respeito de seu presente e de seu fu- turo.19 Hoje soa como um tremendo absurdo e uma incrível necessidade

imaginar que o mundo seria melhor com a simples socialização e uni- versalização do padrão de consumo dos países avançados.20 A dramá-

tica situação que alcança a atual forma social pelo caráter destrutivo da racionalidade do capital torna imperativo que se repense radicalmente a base da organização da sociedade humana. Não há mais lugar para a simplória reivindicação da divisão igualitária das riquezas. Sem uma completa revolução do modo de ser do metabolismo social submetido

19 “É uma ilusão, e por isto uma desonesidade, alimentar e difundir a ideia de que todo o mundo poderia aingir um nível industrial equivalente ao da Europa Ocidental, da América do Norte e do Japão, bastando para isto que as sociedades menos desenvolvidas ‘aprendam com a Europa’. A industrialização consitui um bem oligárquico: nem um sequer dos habitantes da Terra pode gozar as benesses da sociedade industrial aluente, sem que todos os homens se- jam colocados numa situação pior do que aquelas em que se encontravam antes” (ALTVATER, 1995, p. 28).

20 “Conforme um argumento recorrente no debate ecológico, a humanidade deveria dispor de cinco planetas Terra se todo mundo quisesse (eu diria pudesse) imitar os gastos energéicos e materiais dos cidadãos dos EUA (ou dos habitantes da Europa Central)” (ALTVATER, 1995, p. 40).

ao controle do capital, não se mudará o curso da história e o sentido antiecológico do sistema do capital.21

Quando se fala em mudança de perspectiva histórica do capital, não se está querendo propor que nessas últimas décadas, ocasional- mente, tenha sido posto o problema da contradição entre o desenvol- vimento capitalista e a situação ecológica; não se está propondo que tenha havido uma ruptura radical no desenvolvimento do sistema e que esse tal caráter destrutivo estivesse ausente da própria essência do sistema. Esse caráter é inerente à produção capitalista, mas as sucessivas revoluções técnicas e o aprofundamento da saturação das condições naturais de produção alcançaram um estágio que tornaram o problema crucial. A perspectiva dos setores marginalizados, ex- cluídos e explorados, portanto, não mais deve se limitar a discutir os níveis de emprego, de assistência social, de direitos sociais, de participação política, mas, fundamentalmente, deve questionar a pró- pria essência desse modelo produtivo e social. As recentes mudanças do sistema produtivo, no nível da produção, consumo e circulação aceleraram o processo metabólico essencialmente destrutivo do ca- pital; paralelamente, a dinâmica regressiva revela o esgotamento da capacidade civilizadora do sistema de modo que as possibilidades de avanço progressista não parecem mais possíveis senão pela supe- ração radical das estruturas capitalistas. É possível airmar, daí, que

21 “Também a destruividade, pertencente à normalidade do sistema do capital é claramente evidenciada nas épocas de crises cíclicas, manifestando-se na forma de eliminação de capital superacumulado. Além disso, nós a encontramos sob outro aspecto no crescente desperdí- cio - que se desenvolve como um câncer - que caracteriza o sistema nos ‘países capitalistas avançados’, unido à criação e saisfação de apeites ariiciais, frequentemente exaltados pelos apologistas do capital - não somente no ocidente mas também entre os recém-converidos ‘so- cialistas de mercado’ - como a prova, evidente por si mesma, do ‘progresso pela compeição’. Entretanto, a destruividade do sistema do capital não se limita, absolutamente, aos ‘preços do progresso’ acriicamente aceitos. Com o passar do tempo, assume formas de manifestação muito mais graves. Na verdade, o caráter destruivo do sistema vem à luz com uma intensidade especial - desaiando a própria sobrevivência da humanidade - quando o predomínio histórico do capital enquanto ordem metabólica global vai chegando ao im. Eis um período que, em razão das diiculdades e contradições que derivam do controle - necessariamente contestado - da circulação global, o ‘desenvolvimento desigual’ só pode produzir desastres para os quais não existem atenuantes sob o sistema do capital” (MÉSZÁROS, 1999, p. 105).

a crise iniciada com o declínio do welfare state e do padrão fordista traz consigo uma quantidade de elementos econômicos, políticos, so- ciais, culturais que demarcam, por que não dizer, uma nova era do desenvolvimento social.

Essa nova complexidade sistêmica ou, dizendo de outro modo, essa nova coniguração do metabolismo social (para usar a expressão de Mészáros (1996a, 1999), caracterizado pelo acentuado processo de mundialização do capital, pelo declínio do Estado de bem-estar, pelo crescimento dos índices de pobreza e desemprego, pela degradação das condições de vida e trabalho das maiorias sociais e pela ascensão ao controle político nos mais diversos cantos do mundo dos setores sociais dominantes mais conservadores.

Essa nova coniguração do sistema do capital e do mapa político traz consigo a desestabilização dos ideais liberal-democráticos da es- cola, da histórica promessa de escola universal gratuita e obrigatória. Esse processo de mudanças atinge os pilares em que se basearam a con- solidação e expansão da escola, ou seja, a capacidade de gestão e inan- ciamento dos Estados nacionais de um lado e, de outro, o sistema pro- dutivo de trabalho assalariado que se expandia constantemente e cuja hegemonia, frente às demais formas de trabalho, era inquestionável.

Trata-se de dois momentos bastante distintos: o Pós-Segunda Guerra, conhecido como um dos mais prósperos períodos da história do capitalismo, talvez a mais expansionista de todas as fases do sistema, com altas taxas de crescimento, que permitiam a satisfação de impor- tantes demandas sociais e, inclusive, o quase pleno emprego; era uma época marcada pela produção e consumo massivos – neste momento, é quando efetivamente se avança em termos de expansão da escola e se realiza, em muitos países, algo próximo da democratização do acesso, muito embora, é preciso nunca esquecer, tudo isso represente uma rea- lidade circunscrita a determinadas e minoritárias áreas do globo.

Sucede essa etapa uma segunda, que nada mais é senão uma con- sequência direta da anterior em que a concorrência capitalista comanda um processo de retirada dos capitais para o setor inanceiro, obriga as empresas a diminuírem os custos de produção, acirrando ainda mais

a competição no campo do desenvolvimento cientíico e tecnológico, cuja consequência, na lógica do sistema, é o desemprego em massa.

Dá-se, neste momento, a queda das taxas de crescimento e dos índices de lucratividade, por sua vez favorecendo o ataque às conquistas sociais, levado em frente pelos setores conservadores que ascenderam ao poder em importantes países. É aqui que se localizam as chamadas “políticas neoliberais”, o ataque às conquistas sociais, às organizações representativas das classes trabalhadoras e à participação política destas – no bojo disso tudo o ataque à educação por meio de cortes de gastos sociais e privatizações.

Portanto, a chamada ofensiva conservadora deve ser observada em sintonia com a tentativa de retomada dos altos índices de cresci- mento e lucratividade, nunca como um movimento político autônomo, criado pela mente perversa dos direitistas.

Aqui está o cerne de nosso problema: compreender os elementos essenciais da complexidade sistêmica que vem desestabilizar os ideais da escola liberal-democrática.

No documento A crise da escola (páginas 112-118)