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As ideologias de mercado e as reformas educacionais

No documento A crise da escola (páginas 61-66)

O processo a que estamos chamando de crise da escola é ana- lisado por Candeias (1995) com uma diferença: ele faz uma profunda análise das políticas educativas em voga a partir do inal da década de 1970 e constrói um discurso bastante crítico dessas políticas e dos fun- damentos ideológicos que as embasam.

Na verdade, a caracterização de crise da escola não aparece nas análises de Candeias, mas nos diagnósticos oiciais sobre educação dos anos 80. Segundo este autor, o ponto comum entre os diversos rela- tórios deste período, como o Nation at Risk nos EUA, o do Hillgate

Group na Grã-Bretanha de Margaret Thatcher e o Éducation et société, les Déis de l’an 2000, de Jacques Lesourne na França, é precisamente a

constatação de uma situação calamitosa no âmbito da educação. Para o autor, o discurso de tom catastróico, presente em todos estes relatórios, é, no im das contas, um ardil por meio do qual as forças políticas conservadoras, então em ascensão, procuravam atacar

o sistema de escola que vigorou no seio do Estado de bem-estar social. Ele coloca que a utilização do conceito de crise serve para legitimar a destruição dos consensos anteriores e que os neoliberais pretendem usar a educação como um dos meios de arrumar a economia, mas não só pre- tendem também mudar a maneira de se encarar e praticar a democracia (CANDEIAS, 1995, p. 163).

Esta diferença quanto à caracterização da crise da escola, no entanto, não torna as ideias de Candeias inócuas; muito ao contrário, elas trazem uma importante contribuição para o nosso intento, ou seja, de construir aqui um panorama geral da crise da escola. O que temos chamado de crise da escola não é outra coisa senão a transição de um sistema de escola que se expandiu no Pós-Segunda Guerra, para um sistema posto em xeque pela dinâmica do capital mundializado. Desta maneira, trata-se do mesmo processo, o que logicamente faz das aná- lises do autor perfeitamente adequadas à nossa discussão.

Os relatórios citados, indistintamente, reletem a perspectiva neo- liberal. Mesmo analisando mais de perto o relatório francês, o autor con- sidera que, de um modo geral, as reformas educacionais expressam os mesmos objetivos e partem dos mesmos princípios teóricos e políticos.

No caso do relatório francês, o autor airma que ele representa a tentativa de

[...] reletir a nível do ensino, as modiicações que, desde os i- nais da década de setenta, princípios de oitenta, se vão dando de uma forma rápida no domínio econômico a través da crise do sistema de produção industrial localizado nos países do centro do sistema econômico mundial, habitualmente designado por fordismo (CANDEIAS, 1995, p. 161).

Candeias constrói um paralelo entre os dois modelos de educação, o que vigorou com o Estado de bem-estar e o neoliberal. Segundo este paralelo, o primeiro baseava-se num modelo moral de democracia,12 12 Candeias baseia-se nos conceitos de Wilfred Carr “moral model of democracy” e “market mo-

cuja base era a igualdade política e a realização das capacidades hu- manas por meio da participação na vida social; era a premissa das polí- ticas sociais e educativas do Pós-Segunda Guerra. Já o segundo modelo assenta sobre o modelo de democracia de mercado, cujo princípio bá- sico é a competição.

O modelo neoliberal de educação, baseado nos preceitos da ideologia de mercado, na competição, na livre escolha, na eiciência etc., propõe mudanças no nível curricular, reforçando a relação da educação com as necessidades econômicas, valorizando as matérias de inclinação técnica em detrimento das de inclinação política, como as humanidades, e valorizando as línguas estrangeiras, especialmente o inglês etc. As propostas atingem também o nível de autonomia das escolas e o nível dos produtos da educação, buscando qualidade e eiciência. Sob estes resumidos pontos, segundo Candeias, “estende- -se um denso e completo programa de mudança, com enormes conse- quências a nível do futuro, se vierem a ser integralmente aplicados” (CANDEIAS, 1995, p. 165).

Sobre as mudanças no nível curricular, o autor destaca suas ca- racterísticas mais essenciais. Por meio das reformas propostas, visa- -se à construção de um currículo desideologizado, ou seja, com “mais instrução e menos educação”. O pragmatismo e o utilitarismo são duas características básicas dessa proposta, além do dualismo do ensino que ela relete. O dualismo é destacado nessa proposta, pois a simpliicação dos currículos não é geral, mas atinge apenas a educação das massas as quais devem aprender unicamente o que for útil para seu desempenho nas funções subalternas do mercado de trabalho. De outro lado, há um currículo bem mais completo e que dá lugar à relexão, mais voltado para os postos de trabalho altamente qualiicados e para os altos cargos de comando do Estado e do capital.

Para Candeias, a grande diferença entre a proposta atual e as po- líticas conservadoras do século XIX, reside no fato de que aquela é o eco da crise generalizada do sistema econômico atual e se localiza num mundo bem mais complexo, além de vir como resposta a um momento de “hegemonia de esquerda”.

Uma das reformas mais importantes é a que acontece no nível da autonomia da escola. Ela é a expressão mais acabada da democracia de mercado, pois aqui os indivíduos podem escolher a escola onde en- tendem que devem estudar seus ilhos. Nesta reforma, no entanto, no entender de Candeias, está colocada “a liberdade de escolha das escolas em vez do acesso ao controle de tais escolas, e nesta diferença, que tem passado tão despercebida, reside um abismo que a esquerda contem- porânea não tem sido capaz de capitalizar” (CANDEIAS, 1995, 170).

A autonomia da escola proposta pelo neoliberalismo é um mo- delo de controle social e político indireto, por meio das regras de mer- cado. Esta tal autonomia signiica uma semiprivatização; ela estimula e é estimulada pela competição e tende a produzir uma disparidade entre as escolas dentro do mesmo sistema, pois, de um lado, existirão as es- colas mais bem equipadas, com melhores professores, melhores salá- rios, maior procura e melhores avaliações e, de outro, as escolas que apresentam um quadro oposto.

O autor destaca uma questão importante que não se encontra na superfície da discussão da autonomia da escola. Ele airma que o pro- blema já começa quando a escola é discutida individualmente em de- trimento da categoria “sistema educativo” que engloba a totalidade das escolas autônomas ou não; desta forma, se perde a noção de sistema e se pulveriza a discussão das políticas educacionais.

Outra consequência deste tipo de autonomia proposto é que os professores, levados a buscar os melhores postos, entram em compe- tição entre si, fazendo com que os sindicatos percam seu poder de inter- venção; os pais são tratados e agem como meros clientes, escolhendo as escolas em vez de lutar pela melhora do sistema. Isto tudo afasta a possibilidade de discussão e construção social de um sistema efetiva- mente democrático.

O terceiro ponto é a discussão dos conceitos de “qualidade” e “eiciência”, que viraram uma espécie de bandeira das ideias neolibe- rais para a educação e para os serviços públicos em geral. Como já foi dito anteriormente, a ofensiva neoconservadora se justiicava a partir dos diagnósticos que tiveram lugar nos EUA e na Europa nos anos 80.

Após constatar o “colapso” da escola, emerge uma nova concepção de Estado e de educação, prometendo “qualidade” e “eiciência” nos ser- viços públicos em geral.

Candeias chama atenção para o fato de que os conceitos de boa ou de má escola guardam uma relação muito estreita com a ideologia de mercado; além do que, os critérios de avaliação das instituições seguem um padrão eminentemente quantitativo, o que se constitui, no entendi- mento do autor, num grave problema.

O peril ideal de uma escola eiciente, segundo o ideário neoli- beral, passa por uma estrutura hierárquica que conte com uma liderança forte; estabelecimento de objetivos precisos a curto e médio prazos; re- muneração de professores segundo sua “produtividade”; mais trabalho e mais tempo na escola para os alunos; treinamento para docentes e funcionários em modernos métodos de administração. Segundo este peril, observa-se o reforço do autoritarismo, aumento quantitativo da instrução visando às notas inais, e maior pressão sobre professores e alunos. Candeias considera que

Focar a atenção nas escolas apenas, na sua autonomia, sempre necessariamente limitada, ou na sua ‘eiciência’ frequentemente dependente de decisões tomadas fora delas é um procedimento clássico de desviar as atenções do geral focando-as no particular (CANDEIAS, 1995, 176).

No entender de Candeias, pelo menos quanto ao campo da edu- cação, a orientação neoliberal não diminuiu o papel do Estado, como se costuma entender (neste ponto, pelo menos, sua conclusão vai na mesma direção da de Pedró). No entanto, diferentemente deste, ele con- sidera que os mecanismos de controle se reforçaram. Ele airma que “a opção pela ‘liberdade de escolha’ visa, no seu essencial, reforçar, de uma forma pouco transparente, o papel do Estado na educação ao mesmo tempo que reforça os mecanismos sociais de diferenciação” (CANDEIAS, 1995, p. 181).

O autor se arrisca com algumas proposições: destaca a impor- tância das matérias ligadas às novas tecnologias e às línguas estran-

geiras, como conteúdos da escola pública, acessíveis a todos; também como imprescindível o ensino da cultura universal; coloca ainda que o afunilamento do segmento “vocacional” deve ser adiado ao máximo na aprendizagem das crianças e que esse tipo de especialização nunca deve ser desmunido dos aspectos culturais e humanos. O autor acrescenta ainda que, em vez da “liberdade de escolha”, da fria relação de consu- midor e mercadoria, os cidadãos devem estabelecer um controle direto sobre as escolas, ainal, mantidas por eles. Por último, Candeias propõe:

Em suma, em oposição a um sistema educativo dual, um forte, eficiente e interessante ensino politécnico e integral, na esteira dos modelos educativos defendidos, mas rara- mente praticados pelos libertários do princípio deste século (CANDEIAS, 1995, p. 180).

No documento A crise da escola (páginas 61-66)