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LISTA DE GRÁFICOS

3. Perspectiva teórica

3.3. A noção de autoria

Segundo Possenti (2002), existe uma variedade de discursos e sentidos sobre o tema da autoria, sendo um conceito usado de modo variado. Neste trabalho de pesquisa, relacionado à leitura e escrita adotamos a noção de autoria como proposta por Eni Orlandi baseada na perspectiva de linguagem de Michel Pêcheux e nas reflexões sobre esse tema propostas por Michel Foucault.

Vamos inicialmente a Foucault (1996), onde define o autor “como o princípio de agrupamento do discurso, como

129 unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (p. 26). De acordo com Foucault construção desse conceito (autoria) marca um momento de forte “individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na história das ciências” (FOUCAULT, 1992, p.33). Aponta que se passou a atribuir autoria a livros e a discursos a partir do momento em que o autor tornou-se passível de punição, de controle do funcionamento de discursos. Assim, a autoria é um dos elementos da ordem do discurso.

Na perspectiva de Foucault a autoria está restrita a determinados textos, especificamente relaciona autor e obra, ou seja, existem alguns textos com autoria (literatura, filosofia, ciências), mas não qualquer texto. Assim, autor e obra encontram-se intimamente relacionados. Foucault, assim, diferencia autor de escritor. Este seria o sujeito que escreve, o primeiro (autor) é o sujeito responsabilizado pelo seu dizer, ao qual se relaciona uma imagem, por exemplo, a de cientista, de poeta, etc. Para Foucault, o nome de autor representa muito mais do que a indicação do sujeito que escreve um texto, carrega toda a imagem que se faz do autor. Assim, o nome de autor caracteriza um certo modo de funcionamento de um discurso, orientando inclusive de que modo deve ser lido.

Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de autor, o fato de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso não é um discurso cotidiano, indiferente, um discurso flutuante e

passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto (FOUCAULT, 1992, p.45).

No entanto, aponta que ao longo da história das sociedades a função-autor não exerce seu papel de modo homogêneo. Comenta que na Idade Média, por exemplo, muitos dos textos caracterizados hoje como literários circulavam sem que houvesse necessidade de se questionar a autoria. Vemos o efeito oposto na atualidade, onde além se indagar pelo nome de autor, se busca saber sobre a vida do autor, que relações existem entre seus textos e suas experiências de vida, quais as suas intencionalidades, etc. O contrário, segundo Foucault, ocorre com os textos chamados hoje científicos, que nos séculos XVII e XVIII eram recebidos e dotados de verdade pelo nome de autor e que hoje estabelecem-se no anonimato. Esse movimento do discurso científico, da necessidade de nome de autor para o anonimato, torna-se possível a partir do momento em que os discursos científicos passam a ser garantidos por serem produzidos dentro de um conjunto sistemático de conhecimentos e não mais por seus autores de modo individual (FOUCAULT, 1992).

Hoje o desenvolvimento da ciência está relacionado a grandes laboratórios, o trabalho dos cientistas é realizado não de forma individual, mas em equipes. No entanto, no ensino de ciências a singularidade do autor, muitas vezes, marca presença, em livros didáticos, onde muitas vezes se apresenta o pesquisador como herói solitário, em discursos de professores

131 durante suas aulas e em encaminhamentos pedagógicos, por exemplo, no trabalho com biografias de cientistas. Entendemos que esse tipo de perspectiva sobre autoria do/no trabalho científico pouco contribui para a compreensão da natureza social desse conhecimento.

Outra perspectiva para a noção de autor abordada por Foucault é aquela que remete a grandes nomes e suas obras, chamados de “fundadores de discursividade”, entre os quais situa Marx e Freud, sujeitos que criam a possibilidades de constituir um novo discurso.

É possível perceber que Foucault coloca-se questões que não estão no campo da educação e que para ele a autoria não é parte de todo e qualquer texto. Desse modo, outros autores vêm contribuir para repensar a questão da autoria de um ponto de vista que nos interessa, qual seja, aquele que se preocupa com processos de ensino/aprendizagem. Entre eles está Eni Orlandi.

Orlandi (1996) reelabora o conceito de autor proposto por Foucault (1992, 1996) a partir de suas reflexões pautadas na AD francesa (de Pêcheux) e considera que a função-autor se produz sempre que um sujeito coloca-se como origem de seu dizer. A autora relaciona essa posição (do autor) com o que Pêcheux chama de esquecimento de número um, por meio do qual o sujeito coloca-se na origem do que diz. Esse esquecimento é um efeito do modo pelo qual somos afetados pela ideologia fazendo com que apaguemos a retomada de outros discursos (já ditos) em nossos dizeres. Para Pêcheux essa ilusão é necessária no funcionamento discursivo e permite que os sujeitos se constituam

identificando-se com o que dizem. No entanto, não significa que somos completamente assujeitados em relação aos sentidos, existe na constituição histórica (na história) dos sujeitos a possibilidade de resistência, de produção de outras posições de sujeito e de outros sentidos, como nos diz Orlandi, baseada em Pêcheux:

O autor é aqui uma posição na filiação de sentidos, nas relações de sentidos que vão se constituindo historicamente e que vão formando redes que constituem a possibilidade de interpretação. Sem esquecer que filiar-se é também produzir deslocamentos nessas redes (ORLANDI, 1996, p. 15).

Essa discussão se relaciona com o que na AD é chamado de repetição. Já comentamos que ao produzir discursos os sujeitos retomam já ditos e constituem seus discursos filiando-se a determinadas formações discursivas. Cabe então localizarmos o que é a repetição na AD, como se relaciona com a noção de autoria e quais as contribuições desse conceito para pensarmos o ensino de ciências.

Segundo Orlandi (2003), a repetição pode ser de três níveis: a empírica, em que há apenas repetição sem compreensão, também denominada pela autora de “efeito papagaio”; a formal, que se aproxima da paráfrase, ou seja, constitui uma outra forma de dizer o mesmo; e a histórica, em que há um movimento de historização do dizer, é o tipo de repetição que promove o deslocamento de sentidos tornando possível o surgimento do novo. É nesse terceiro modo de

133 repetição que localizamos nossa intenção de trabalho no ensino de ciências.

Destacamos nesse contexto uma diferenciação importante entre duas noções referentes à autoria: a função- autor e a de efeito-autor. A primeira diz respeito à funções enunciativas e torna-se visível toda vez que um sujeito filiando-se à memória discursiva, produz um novo dizer. Esse efeito, segundo Orlandi, é parte da constituição dos dizeres comuns de nossas vidas. Essa função é bastante explorada pela mídia que, dentro de uma formação discursiva, explora relações com já ditos e produz sentidos novos, às vezes inesperados. Não é apenas repetição (mnemônica) há o estabelecimento de novos sentidos. (Gallo, 2001)

Já o efeito-autor, se dá quando existe a constituição de uma nova formação discursiva que se dá a partir de confronto entre formações discursivas diferentes. Perspectiva explorada por Pêcheux (1990), onde realiza a análise da constituição de uma nova formação discursiva nas eleições francesas de 1981, a partir do confronto entre uma formação discursiva política e outra do esporte. Em nosso caso podemos pensar, por exemplo, naquela produzida a partir do confronto entre a formação discursiva pedagógica e a científica, ou mesmo, pedagógica e da mídia.

Em nosso estudo consideramos ambas perspectivas relevantes quando se trata do ensino de ciências. Retomando Orlandi, ao apontar para o espaço de produção de sentidos, a autora argumenta que:

O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer. Porque assume sua posição de autor (se representa nesse lugar), ele produz assim um evento interpretativo. O que só repete (exercício mnemônico) não o faz. (ORLANDI, 2007, p. 70)

Quando apontamos para a necessidade de historicizar a leitura e a escrita em aulas de ciências estamos nos referindo à necessidade de deslocá-las de suas posições tradicionais, em que têm um fim em si mesmas, mas que sejam processos de significação em que se possa estabelecer as pontes necessárias entre o discurso de ciências escolar e o contexto social mais amplo.

Freire (1996), ao abordar a importância da criticidade no ato de ensinar, aponta que o desenvolvimento de uma visão crítica é uma das tarefas fundamentais da educação. Para o educador, a superação de uma visão ingênua da realidade se dá através da curiosidade (epistemológica), que a indaga e procura esclarecimentos. Assim, é possível olhar de outra forma para o mundo que nos rodeia e que não deixa espaços para questionamentos, mundo este que aceitamos e naturalizamos culturalmente. Assim, consideramos que ensinar ciências não pode se restringir ao acúmulo de denominações, datas, nomes de personagens históricos. Deve sim contribuir para o desenvolvimento de compreensões que partam do estabelecimento de relações entre aquilo que se aprende em sala de aula e a realidade social. Deve ainda possibilitar que as pessoas sejam estimuladas a produzir sentidos que possam

135 ajudá-las a refletir e a questionar sobre o mundo em que vivem. Eis o sentido de cidadão/cidadania adotado nesse trabalho. Assim, entendemos que leitura e escrita, no sentido que defendemos nesse trabalho, são condições importantes para o desenvolvimento da cidadania.

Ao assumir a posição de autor o sujeito situa-se em uma determinada posição social, filiando-se a uma rede de sentidos. Vemos aí um lugar privilegiado para se estabelecer relações entre sujeitos e ciências que caminhem para uma perspectiva crítica. Segundo Orlandi:

A função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não contradição e fim. A função de autor é tocada de modo particular pela história: o autor consegue formular, no interior do formulável, e se constituir, com seu enunciado, numa história de formulações. O que significa que, embora ele se constitua pela repetição, está é parte da história e não mero exercício mnemônico. (ORLANDI, 1996, p.).

Contudo, segundo Baldini (2007), para que seja construída a autoria por parte dos estudantes é necessário que o professor assuma também a posição de autor. Ao discutir sobre a assunção dessa posição na educação escolar, Baldini destaca que a autoria não é ensinável. Concordamos com o autor quando aponta a impossibilidade de que a autoria seja algo que se possa ensinar na escola, mas acreditamos que é algo que pode ser possível sob certas condições. Desse modo, defendemos a existência de “condições de produção de autoria” que está ligada às condições de produção da leitura e da escrita em sala de aula.

Assim, para a assunção da autoria é preciso que os processos de ensino/aprendizagem escolar permitam a abertura de um espaço de dizer. Entre as condições para que esse espaço seja viável localizamos: leituras diferenciadas das tradicionalmente realizadas (não só no conteúdo, mas também na forma), escritas que exijam mais do que cópia, uso de diferentes gêneros de leitura e de escrita, diálogo entre estudantes e estudantes- professores, maior liberdade no processo de escrita de textos, ensino não-livresco. Em nossa pesquisa buscamos colocar em funcionamento essas condições e indicamos em nossas análises algumas possibilidades para o ensino de ciências.

Em nosso contato com as escolas percebemos que há preocupações e esforços para que as práticas da leitura e da escrita sejam vistas e trabalhadas de modo que contribuam efetivamente para o ensino e aprendizagem de ciências. Nesse sentido, vinculando o ensino de ciências ao papel social da escola atual, acredito que possibilitar que na escola se reflita e se questione sobre as formas de organização da sociedade e sua relação com questões científicas e tecnológicas pode contribuir para a formação de sujeitos que produzam visões menos ingênuas sobre sua realidade social e sobre a ciência construída nessa realidade. A perspectiva referente à educação e ao ensino de ciências, destacada aqui, se relaciona com as críticas ao ensino escolar tradicional, esse de lógica internalista, mais particularmente àquelas produzidas no âmbito dos estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade).

137 Por fim, ressalto que o uso dessa teoria do discurso, muito mais do que um referencial analítico, representa um forte referencial teórico. Além disso, ressalto também que não se trata de uma aplicação da teoria, como foi proposta por Pêcheux. Não tenho a pretensão de me posicionar como linguista (nem poderia). Na pesquisa fazemos uso de algumas noções teóricas elaboradas no âmbito da AD que contribuem para compreendermos o papel da linguagem no ensino de ciências de modo menos ingênuo, menos naturalizado. A partir do olhar produzido com base nesse referencial é possível colocarmos questões importantes sobre a relação entre ensino de ciências escolar e linguagem, seus modos de funcionamento e de produção de sentidos. Essa perspectiva possibilita que se compreenda que esse fazer sentido é um processo dinâmico, em que sempre é possível a produção de interpretações diferenciadas. Além disso, como destacamos anteriormente, a AD possibilita considerarmos a não-transparência da linguagem, o que implica em compreendermos que os sentidos não estão colados às palavras/figuras, mas dependem de leituras produzidas histórico-socialmente.

A partir do que apontamos até o momento, pontuamos como contribuições da perspectiva de linguagem adotada na pesquisa a construção de uma relação menos ingênua com a linguagem do/no ensino de ciências escolar, o que possibilita questionarmos as relações com a linguagem, a evidência de sentidos, sua transparência. Ao mesmo tempo também podemos

nos colocar diante dos textos sobre ciências de forma diferenciada na medida em que o compreendermos como passível de diferentes gestos de interpretação e, portanto, passível a polissemia.

Outro ponto que destacamos é a possibilidade de buscarmos as condições de produção das leituras e das escritas em aulas de ciências, o que permite compreendermos as relações estabelecidas entre sujeitos e textos. Essa consideração é importante na pesquisa, pois compreendemos as leituras e escritas como espaço de produção de sentidos, o que se dá não apenas acerca do conteúdo dos textos, mas do próprio modo como são colocados em funcionamento.

Nesse caminho, ao trabalharmos com a leitura e a escrita enquanto eventos interpretativos, a noção de autoria aparece como perspectiva interessante por contribuir na compreensão dos lugares sociais ocupados pelos sujeitos ao dizer. Outra contribuição dessa noção na pesquisa é o fato de termos colocado a formação do sujeito-autor como objetivo a ser atingido no ensino de ciências.

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