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Forma e conteúdo: a produção de discursos sobre ciência na escola

LISTA DE GRÁFICOS

MOMENTOS DA PESQUISA

5. A leitura e a escrita em aulas de ciências

5.1. Forma e conteúdo: a produção de discursos sobre ciência na escola

“O que é um conteúdo sem uma forma, o que é uma forma sem um conteúdo? Há uma contradição completa quando se opõem estes dois termos, está-se a apor o que isoladamente não existe: não há forma e não há conteúdo. Para que existam têm que estar juntas. E se se altera a forma o conteúdo altera-se também.” José Saramago.

Como já mencionamos anteriormente, entendemos que forma e conteúdo não se separam. Ou seja, entendemos que não apenas o que é dito, mas também a forma como é dito, é parte dos sentidos que serão produzidos sobre determinado referente. Partindo desse pressuposto, é possível considerarmos que os sentidos produzidos em contextos de ensino de ciências relacionam-se não apenas com os conteúdos, mas também com a forma de abordagem dos mesmos em sala de aula.

Um exemplo disso pode ser identificado quando se analisa a linguagem de textos didáticos, esta freqüentemente

18 Algumas transcrições de aulas audiogravadas encontram-se na mídia em

195 apresentada de forma impessoal e com tendências cientificistas (GIRALDI, 2005; CASSIANI, 2006; LOGUERCIO, PINO E SOUZA, 1999). Esse tipo de linguagem pode produzir como conseqüência visões de ciência que remetem à neutralidade, à infalibilidade. Enfim, muitas vezes, a forma pela qual a ciência é apresentada em textos didáticos não contribui para que a ciência seja vista como empreendimento humano, localizado histórica e socialmente.

Assim, iniciamos nosso olhar para a sala de aula de ciências com algumas indagações: Que discursos sobre ciência circulam na escola por meio da leitura? Quais as possíveis conseqüências desses discursos na produção de sentidos por parte dos estudantes? De que ciência se fala?

Pontuamos inicialmente que são vários os interdiscursos que se relacionam aos discursos dos professores: a) discursos provenientes de cursos de formação inicial e continuada; b) discursos de documentos oficiais como as propostas curriculares (PCN, Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina, Proposta Curricular do Município de Florianópolis); c) além de documentos produzidos pela escola como é o caso dos Projetos Políticos Pedagógicos; d) discursos sindicais; e) discursos da mídia acerca da escola e do papel do professor; f) discursos de livros didáticos, por sua vez produzido em determinadas condições de produção19, dentre outros. Assim, entendemos que

19 Entre as políticas públicas nacionais que influenciam a elaboração de materiais

didáticos está o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ligado ao Governo Federal. Atualmente o PNLD está institucionalizado no que se refere à publicações voltadas para o Ensino Fundamental, sendo prevista sua implementação com relação

no funcionamento da linguagem em aulas de ciências, podemos identificar traços de diversos discursos que circulam socialmente. Acreditamos que ao consideramos esses discursos podemos ter elementos para compreender alguns aspectos das condições de produção do discurso sobre ciência no contexto investigado.

Iniciamos nossas análises apresentando um diálogo ocorrido em aula, do qual dois alunos participaram juntamente com o professor. O trecho apresentado foi transcrito de um dos áudios gravados durante uma aula de ciências em uma turma de 6ª série (7º ano), ministrada pelo professor Daniel (PD). Na aula, houve a leitura de dois textos de ciências tratando sobre paleontologia.

1 PD: Percebam que os dois textos começam com perguntas? (uma aluna lê as perguntas enquanto o professor continua sua fala). Tanto o do livro, quanto o xerocado.

2 A1: Por quê?

3 PD: Por que será tanta pergunta? Por que na ciência sempre tem muita pergunta? 4 A1: Como eu vou saber? Eu to perguntando.

5 PD: Está perguntando? Tá, por exemplo, se o professor pergunta...

6 A2: É porque o professor não sabe.

ao Ensino Médio, a partir de 2005. Porém, podemosestabelecer paralelos entre as influências exercidas pela política nos dois níveis de ensino, uma vez que a elaboração e estrutura dos materiais didáticos destinados a tais áreas doensino não diferem significativamente. Certamente, o PNLD é hoje um forte fator de influência na elaboração de materiais didáticos tendo em vista que estipula determinados critérios de seleção, aprovando ou não os materiais submetidos pelas editoras. Assim, objetivando sua venda, as editoras e autores tentam adequar suas produções e assim, o PNLD torna-se sem dúvida um fator bastante influente, parte das condições de produção dos livros didáticos atuais. (Giraldi, 2005).

197 7 PD: Tá, o professor não sabe. Mas, a pergunta ela instiga o quê?

8 A2: Uma resposta.

9 PD: À uma resposta, ótimo, isso mesmo. E daí, o cientista faz uma pergunta por quê? 10 A2: Porque quer uma resposta.

11 PD: E, muitas vezes, vai obter essas respostas como?

12 A1: Pesquisando.

13 PD: Pesquisando. No caso ali desse dinossauro, como é que ele vai obter as respostas?

14 A2: Pesquisando o osso, os fósseis. 15 PD: Pesquisando os fósseis e analisando. Então, muitas vezes tem um trabalho de laboratório também. Não é só um trabalho intelectual de...também tem um trabalho mais prático.

É interessante destacar que o professor inicia a atividade descrita colocando uma questão importante no desenvolvimento de qualquer ciência: as perguntas (turno 3).

Gaston Bachelard (1996), um dos mais importantes filósofos da ciência, em “A formação do espírito científico”, traz reflexões importantes acerca das perguntas no desenvolvimento do conhecimento científico.

Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. (Bachelard, 1996, p.18) Ao apontar para a existência de questionamentos no desenvolvimento da ciência, o professor ofereceu uma perspectiva interessante sobre esse conhecimento. Pode-se

dessa forma, afastar-se da idéia de que o conhecimento científico é desenvolvido a partir de observações neutras ou que é produzido por meio de experimentação, sem haver questionamentos. Ao apontar que o cientista busca suas respostas através de pesquisa (turnos 11 a 15) e que a mesma envolve momentos de reflexão teórica e de atividade laboratorial (turno 15), o professor está contribuindo para produzir uma visão de ciência em que a prática é guiada por teorias. É importante destacar aqui a relação com a leitura do livro didático de ciências adotado. Esse material traz na sua introdução referência a importância de questões no desenvolvimento do conhecimento científico:

No entanto, ao apontar que “Não é só um trabalho

intelectual de...também tem um trabalho mais prático.” (turno 15),

há uma separação entre teoria e prática. Não há trabalho prático sem respaldo teórico. Essa visão dicotômica, pode produzir entendimentos de que esses trabalhos (teóricos e práticos) são independentes. Problemas e formas de resolvê-los não são independentes, como disse Bachelard “na vida científica os

problemas não se formulam de modo espontâneo”,

(BACHELARD, 1996, p.16). De onde surgem então os problemas científicos? Essa pergunta pertinente para entendermos um pouco mais desse complexo processo de produção de conhecimentos não foi silenciada. Talvez essa indagação seja o cerne da pergunta feita pelo aluno (turno 4). Não temos a pretensão de respondê-la aqui, esse intuito mereceria maior aprofundamento de questões epistemológicas e filosóficas. No

199 entanto, destacamos apenas que é importante que na escola, as perguntas científicas não sejam também tomadas como neutras e descontextualizadas socialmente.

Outro ponto importante diz respeito às leituras do livro didático. Do turno 1 ao 3, podemos evidenciar que existe um movimento de interpretação de discursos: de um didático para um científico. Notamos que o discurso referido no turno 1 é de textos produzidos para alunos e professores de ciências (livro didático e uma revista de divulgação). São esses textos que trazem as perguntas referidas no episódio (tantas, como foi destacado pelo professor). No entanto, no turno 3 vemos uma modificação em sua leitura. Ao explicitar a palavra “ciência” em seu discurso, o professor produz uma interpretação de que as perguntas colocadas nos textos utilizados em sua aula são perguntas da ciência, elaboradas por cientistas. Não há referência ao fato de que são elaboradas por autores de materiais didáticos e que são de natureza distinta daquelas produzidas em âmbito científico. A didatização envolvida no processo de produção desses materiais, a compreensão de que livros didáticos ou materiais paradidáticos trazem discursos sobre ciências e não o discurso científico propriamente, parece não fazer parte da leitura do professor. De acordo com Orlandi (1993), esses modos de leitura podem ser diferenciados, dependendo das condições de produção da leitura, e indicam diferentes formas de relação entre leitor e texto. Assim, entram em jogo, diversas relações estabelecidas entre: autor/texto/leitor: as expectativas com relação ao texto, a imagem que se faz do

autor, o leitor virtual inscrito no texto, a condição histórica e social em que o texto está sendo lido

Identificamos na leitura do professor alguns elementos das condições de produção de sua leitura, importantes para pensarmos a relação com a produção de sentidos sobre ciência produzida na escola. Assim, cabe perguntarmos: que expectativas têm o professor acerca dos textos lidos? Que imagem faz dos autores desses textos? Em que condições estão sendo lidos? Que conseqüências pode haver para a leitura realizada pelos estudantes?

Acreditamos que a própria situação imediata em que a leitura foi produzida, uma aula de ciências em uma escola pública, ministrada pelo professor Daniel, já coloca em funcionamento elementos que apontam para a forma como o texto será lido.

No contexto da escola pública, podemos dizer que a leitura de textos didáticos é fortemente presente em aulas de diversas disciplinas. No contexto investigado, não é diferente. O livro didático assume posição central no desenvolvimento de muitas aulas, guiando atividades realizadas e direcionando conteúdos a serem trabalhados. Na aula referente ao episódio I, diferentemente de outras aulas observadas, houve a leitura de um texto alternativo ao didático, retirado da revista Ciência Hoje das Crianças. Cabe destacar que o referente dos textos era o mesmo: descoberta de fósseis de dinossauros. No entanto, as condições de produção das leituras desses textos foram diferenciadas. O texto retirado da revista e para economizar