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Análise de interações discursivas em aulas de ciências

LISTA DE GRÁFICOS

2. Leitura, escrita e autoria: articulações com o ensino de ciências

2.2. Análise de interações discursivas em aulas de ciências

Neste tópico são apresentadas considerações sobre algumas pesquisas que tomam as interações realizadas em sala de aula como foco de articulação com questões de linguagem.

Uma perspectiva de pesquisa bastante interessante, é aquela em que as atividades de sala de aula são analisadas no sentido de construir entendimentos sobre a forma como são encaminhados os processos de ensino/aprendizagem e suas implicações. De acordo com Smolka (2007):

Investigar, portanto, as relações de ensino e, nessas relações, examinar os modos de participação dos alunos na construção do conhecimento, ouvi-los, procurar entender como eles operam, de onde partem, como relacionam informações e conhecimentos, como justificam ou explicam essas relações, que suposições ou hipóteses elaboram, pode contribuir para o refinamento do olhar e dos modos de considerar o que acontece no espaço institucional da escola. (p.16)

Monteiro, Santos e Teixeira (2007), desenvolvem um trabalho de investigação que tem como foco as relações estabelecidas em atividades práticas de ciências, entre professor e estudantes de turmas de terceira série do Ensino Fundamental, com base no referencial da Análise de Discurso de linha francesa. A intenção dos autores é apontar de que forma a condução da aula pelo professor (no caso do estudo, foram observadas aulas de três professoras), produz efeitos no processo de elaboração de argumentações por parte dos estudantes. Um dos pontos destacados pelos autores se refere à postura assumida pelas professoras enquanto autoras de seu

dizer. Para os pesquisadores, quanto mais o professor se aproximar de uma posição de autoria de seu discurso escolar sobre ciências, mais os alunos estabelecerão relações mais críticas e menos passivas frente a tais conhecimentos.

Apesar do destaque dado às falas de professores e estudantes e de serem apontadas diferenças importantes nos modos de dizer sobre ciências das professoras investigadas (as posições desses sujeitos), tanto a questão da incompletude da linguagem, quanto a naturalização no uso de um tipo de linguagem (científica), estão silenciados no artigo. Levando isso em conta, cabe destacar que nas análises empreendidas pelos autores citados, está ausente uma reflexão que busque vislumbrar as condições de produção dos discursos dos professores em suas aulas de uma forma mais ampla.

De modo particular, quando se trata de linguagem científica escolar, é possível vincular a forma como essa linguagem se apresenta em sala de aula por meio da voz do professor, ao modo como é veiculada em livros didáticos de ciências. Sabemos que esses materiais se configuram em uma instância importante para professores e estudantes, sendo muitas vezes, a única fonte de leituras sobre ciências a qual ambos têm acesso no espaço escolar. Essa consideração traz um exemplo de um tipo de discurso que pode constituir o discurso do professor sobre ciências. Em nossa pesquisa, muitas vezes a voz do autor do livro didático esteve presente nas aulas, sendo incorporada aos discursos de professores e estudantes.

73 Consideramos essa presença parte das condições de produção da leitura na escola, o que discutiremos no capítulo cinco.

Em um estudo, desenvolvido na Inglaterra, que tem como objetivo investigar até que ponto professores de ciências proporcionam espaços nas aulas de ciências para o desenvolvimento da argumentação, Driver, Newton e Osborne (1999), identificam alguns modos de funcionamento dos discursos científicos escolares. Entre eles, os autores destacam a dominação da argumentação por parte dos professores, o que resulta na limitação da possibilidade de reflexão e discussão de questões de ciências por parte dos educandos. Para Driver, Newton e Osborne, os problemas levantados acerca da argumentação do ensino de ciências podem ser entendidos como resultado, primeiramente, do processo de formação inicial dos professores. Como indicamos na seção anterior, muitas pesquisas têm indicado a necessidade da discussão de questões de linguagem na formação de professores (CASSIANI E NASCIMENTO, 2006; ANDRADE E MARTINS, 2006; OLIVEIRA, 2006). De acordo com estas pesquisadoras, o trabalho com questões de linguagem em processos de formação inicial de professores contribui para questionar abordagens homogeneizantes (monológicas) relacionadas à leitura e interpretação, como aquelas mais relacionadas ao ensino tradicional. Para as autoras essa perspectiva é vista como forma de contribuir para a construção de um ensino de ciências mais crítico.

Um segundo ponto, indicado por Driver, Newton e Osborne (1999), como fator condicionante das relações argumentativas em aulas de ciências está a pressão exercida sobre as escolas pelo currículo nacional inglês e seu sistema de avaliação. No Brasil podemos dizer que não é muito diferente. Apontamos anteriormente, entre os fatores que influenciam o funcionamento da leitura e escrita em aulas de ciências, os exames oficiais (SAEB, PISA, Prova Brasil, ENEM). Ao proporem um conjunto de objetivos a serem atingidos e “medidos” em questões, os exames apontam rumos para o ensino escolar. Freitas (2007) analisa de forma bastante crítica os possíveis efeitos de tais exames no que se refere a responsabilizar escolas pelo resultado nas avaliações, produzindo hierarquização das mesmas e competição. Como apontam os autores ingleses, na ânsia de atingir os objetivos propostos em avaliações externas à escola, os professores acabam adequando as suas aulas ao que lhes dá maior segurança. Assim, configuram-se discursos que sustentam práticas pedagógicas que desconsideram os estudantes como leitores (autorizados) de ciências.

De acordo com Orlandi (2003a), um trabalho pedagógico que considera questões de leitura de forma não naturalizada permite que o professor se situe com relação às interpretações, ou seja, ao considerar que os sentidos não são evidentes, não são óbvios, ocorre a interferência (e modificação) nas práticas de leitura colocadas em funcionamento nas salas de aula.

Com preocupações semelhantes a Driver, Newton e Osborne (1999), Mortimer e Scott (2002), focalizam atividades

75 discursivas em aulas de ciências, tendo em vista a forma e os padrões no qual os discursos das salas de aula de ciências se estruturam, consideram esse discurso como um gênero distinto (no sentido bakhtiniano). Para os autores o discurso científico escolar constitui um gênero de discurso estável e passível de análises. Na intenção de indicar caminhos para realização da análise desse tipo de discurso, os autores apresentam uma ferramenta analítica que tem como intenção analisar a forma como as interações discursivas orientam a construção de significados em aulas de ciências. Sobre essa forma de interação em aulas de ciências, os Mortimer e Scott (IBID) apontam que:

Se o objetivo do ensino é fazer com que os estudantes desenvolvam um entendimento do tópico em estudo, esses estudantes devem engajar-se em atividades dialógicas, seja de forma interativa ou não-interativa: participando de, ou escutando a, uma interação dialógica entre o professor e a classe; discutindo idéias com seus colegas em pequenos grupos; pensando sobre as idéias. Seja de que forma isso se concretize, cada estudante precisa ter a oportunidade de trabalhar as novas idéias, „especificando um conjunto de suas próprias palavras‟ em resposta a essas idéias, para que possa apropriar-se dessas idéias, torná-las suas próprias idéias. (MORTIMER E SCOTT, 2002, p.302)

Cabe aqui nos determos um pouco mais sobre o trabalho dos autores, uma vez que configura importante referência nas pesquisas sobre ensino de ciências e linguagem. Muitos pesquisadores da área têm tomado as propostas apresentadas nesse estudo de Mortimer e Scott (IBID), do ponto de vista de teórico e metodológico, no que tange à formas de abordagem

das questões de linguagem em sala de aula de ciências, como norteadoras de suas próprias pesquisas.

No artigo os autores apresentam uma proposta de análise do discurso de interações desenvolvidas em aulas de ciências. Tal análise visa caracterizar as formas de interação em sala de aula, tendo como foco o modo como professores interagem com seus alunos no processo de construção de significados. Para tanto, os autores propõem três aspectos a serem analisados: a utilização da linguagem, a interação estabelecida, mediação realizada. A partir de análises de aulas de ciências, Mortimer e Scott, estabelecem um conjunto de categorias inter-relacionadas, que visam contribuir para traçar a condução do discurso dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Destacamos a importante contribuição dada pela pesquisa no que se refere à mudança do olhar sobre a linguagem, pois possibilita que a mesma seja considerada nos processos de ensino/aprendizagem de ciências. No entanto, encontramos na pesquisa um silêncio no que diz respeito a reflexões sobre que ciência está sendo ensinada nas escolas, quais suas conseqüências para as relações estabelecidas por sujeitos e discursos científicos, de onde vem, por quem é produzida. Em nossa pesquisa tais reflexões são destacadas envolvendo a perspectiva dos Estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade), na intenção de que haja um avanço sobre essas questões tão importantes para o ensino de ciências.

Linsingen (2007) aponta a relevância de se discutir tais questões quando o que se pretende, por meio da educação

77 científica, é contribuir para promover maior participação social nas políticas públicas, maior reflexão no que diz respeito ao consumo de artefatos tecnológicos, ou ainda, construir espaços para se pensar em outros modelos de sociedade e de desenvolvimento científico e tecnológico que não o hegemônico (norte-americano ou europeu). Colocando-nos ao lado do autor perguntamos: que ciência vamos ensinar? Aquela que tem todas as respostas, que cala, que é sinônimo de progresso, de benefícios, que representa a verdade e que, portanto, não é possível questionar. Ou aquela que tem história, que é empreendimento humano, que tem implicações sociais, que é condicionada por questões políticas e ideológicas. Se considerarmos, de acordo com a AD, que forma e conteúdo não se separam, podemos entender que um trabalho que vise a produção de sentidos sobre a ciência como algo diferente da perspectiva caricata, hegemônica, poderá produzir outras relações entre sujeitos e esse conhecimento. Se o discurso é efeito de sentidos, é importante então que nos preocupemos não só com o ensino de conteúdos científicos, mas, com a forma como a ciência se faz presente no discurso científico escolar.

Foucault (1996) aponta que quando algo nos é descrito, narrado, apresentado via um discurso, a linguagem em funcionamento produz “realidades” em nós e para nós, ou seja, a linguagem não apenas nomeia, descreve histórias e conceitos científicos, mas os constrói.

Desse ponto de vista torna-se interessante compreender que as interpretações são produzidas mediante a multiplicidade

de linguagens, que não apenas a escrita ou oral. Ao questionar sobre as formas de linguagem usadas em contextos pedagógicos, Piccinini e Martins (2003 e 2004) possibilitam uma reflexão acerca da variedade de formas e usos de diferentes linguagens no ensino escolar. De forma interessante as autoras analisam um episódio de ensino mostrando a relevância da linguagem gestual no estabelecimento de compreensões e re- elaborações por parte dos estudantes. Para as autoras,

[...] os modos de interação (professor/aluno/conhecimento) foram mobilizados em contextos específicos, valorizados pelos interlocutores e tornados legítimos para efeito da comunicação pretendida naquela situação social. (p.13) A partir dos resultados apresentados pelas pesquisadoras, é possível compreender que na construção de argumentações em sala de aula ocorre a presença de um contínuo nos modos de linguagem, onde gestos e falas se complementam na produção de sentidos.

Relacionar ensino de ciências e linguagem, de nosso ponto de vista, implica em considerarmos que a forma como trabalhamos os conhecimentos em sala de aula constituem sentidos sobre ciência, tecnologias, cientistas e isso traz implicações importantes para a perspectiva que será construída na escola sobre as relações desses temas com o que acontece em nossa sociedade. Fazendo um paralelo com a análise de discurso francesa, podemos dizer que um sujeito só se constitui como tal na interação que estabelece com o outro por meio da linguagem. Essa perspectiva permite que a linguagem escolar

79 seja vislumbrada como uma atividade social e histórica, onde os sujeitos (incompletos, inacabados), constroem suas identidades e visões de mundo.

2.3. Funcionamento da leitura em aulas de ciências/outras