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A Noção de Emergência e a Genealogia do Poder (Michel Foucault)

2.2 PARADIGMAS CULTURAIS E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

2.2.2 A Noção de Emergência e a Genealogia do Poder (Michel Foucault)

A questão do sujeito envolve diferentes formas de subjetivação através da história e por isso Foucault desenvolve uma arqueogenealogia do sujeito divido em três domínios: 1) o sujeito em sua relação com a verdade e conhecimento ou saber; 2) o sujeito em sua relação com a força e ação sobre os outros, ou seja, com o poder; 3) o sujeito em sua relação com a ética e os agentes morais. A motivação era a discordância da episteme em relação à fenomenologia, ao positivismo e ao marxismo, porque, respectivamente, havia a centralidade do sujeito ou a negação de sua existência.

Para Foucault, o sujeito é constituído pelos acontecimentos discursivos, epistêmicos e práticos, por isso questionou como se formaram os saberes em A história da loucura na Idade

Média (1961), em O nascimento da clínica (1963), em As palavras e as coisas (1966) e em Arqueologia do saber (1969). Foucault discute a questão do sujeito em sua relação com o

poder já a partir de A ordem do discurso (1971), Vigiar e Punir: nascimento da prisão (1975),

História da sexualidade I: a vontade de saber (1976), abordando os dois recortes: a episteme

clássica (séculos XVII e XVIII) e a episteme moderna (séculos XIX e XX). E, finalmente, aborda a questão do sujeito em relação à ética em História da sexualidade II: o uso dos

prazeres (1984) e História da sexualidade III: o cuidado de si (1984). Estes três domínios – o

saber, o poder e a ética – nem sempre estão separados, mas imbricados entre si desde que foram pensados (FONSECA-SILVA, 2007, p. 34).

Não há muito interesse do ponto de vista da pesquisa pela fase da arqueologia do saber, embora muitos conceitos, como acontecimento, enunciado, sujeito, formação discursiva, prática discursiva, arquivo e interdiscurso, sejam discutidos em Análise do Discurso de forma diferente. O domínio que mais se vincula a esta pesquisa é o segundo porque envolve o estudo da genealogia do poder na construção da subjetividade do sujeito. Inicia-se essa fase com o ingresso de Foucault no College de France em substituição a Jean Hiyppolite na disciplina

História dos sistemas de pensamento cuja aula inaugural teve como tema o discurso em 2 de

O livro que reúne os textos relativos à genealogia do poder é Microfísica do Poder (2012) em que não existe uma teoria do poder, considerando-o como uma essência de características universais. “Não existe algo unitário e global, chamado poder, mas, unicamente, formas díspares e heterogêneas em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social, e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2012, p. 12). Para compreender esses aspectos teóricos, faz-se necessário compreender os conceitos como genealogia, emergência e acontecimento. No texto

Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault toma emprestado o conceito de genealogia de

Nietzsche que o aplicava em relação à Moral e se apropria dele para construir a sua própria genealogia. Como filósofo da descontinuidade, não busca o sentido histórico tradicional de fundamentar tudo pela origem para justificar o presente ou alegar que a história tem objetivos teleológicos, mas trabalha com aquilo não histórico, as emergências, as lacunas, as descontinuidades, opondo-se assim à construção metafísica da origem.

A história será “efetiva” à medida que reintroduzir o descontínuo em nosso ser. Ela dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo. Ela não deixará nada baixo de si que teria a tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-lo repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar (grifos acrescidos). (FOUCAULT, [1979] 2012, p. 72).

Dentro dessa descontinuidade, o saber vem para cortar um movimento teleológico ou encadeamento natural quando se tenta enquadrar o acontecimento numa continuidade, numa linearidade ideal. Segundo Foucault ([1979]2012), o acontecimento não é uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um

[...] vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e outra que faz entrada, mascarada. As forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da lut a (FOUCAULT, [1979]2012, p. 72).

Examina três conceitos nietzschianos como Ursprung (origem), Herkunft (proveniência) e Entestehung (emergência) com os quais constrói a sua teoria. Foucault começa a desenvolver o seu pensamento questionando o conceito de origem, pois a origem das coisas

não está na pureza, na essência exata, mas na discórdia, no disparate entre as coisas; rejeita a alta origem das coisas, a nobreza de um princípio, porque a genealogia vai mostrar que o começo histórico é baixo: “[...] o homem começou pela careta daquilo em que ele ia se tornar” (FOUCAULT, [1979]2012, p. 17). Rejeita também a verdade como fim último, uma vez que se trata de um erro que não pode ser refutado. Ao ser relacionado ao discurso, a origem se torna interpretação e, na medida em que se torna interpretação, há uma interdição ao significado original, porque quem propôs a interpretação, a que prevaleceu e venceu, fez circular a predominância de um sentido verdadeiro que, para existir, teve de entregar ao sacrifício outros sentidos.

O conceito Herkunfg (proveniência) significa um entroncamento de fatos, de perspectivas, forças que afastam qualquer possibilidade de identidade ou fundo original, pois o que está em constante jogo são forças. Não se trata de reencontrar um indivíduo, uma ideia ou um sentimento, mas de descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar nele e formar uma rede difícil de desembaraçar. Não é demonstrar a continuidade dos fatos, mas

[...] demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existe verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. (FOUCAULT, [1979]2012, p. 27).

Associa também a proveniência ao corpo como a mais palpável superfície de inscrição dos acontecimentos. A obra de Foucault inscreve no corpo os sinais da loucura, demência, doença, castigo, punição, violação, numa maquinaria de jogos de verdade.

E, enfim, o conceito de emergência (Entestehung) é um não lugar onde as forças se colocam em combate, revelando seu jogo de dominação, que se expõe através de regras impostas pelos dominadores aos dominados. Ele deve

[...] mostrar seu jogo, a maneira como lutam, umas contra as outras, ou seu combate frente a circunstâncias adversas, ou ainda a tentativa que elas fazem – se dividindo – para escapar da degenerescência e recobrar o vigor, a partir de seu próprio enfraquecimento. (FOUCAULT, [1979]2012, p. 35).

Foucault ([1979]2012) diferencia duas interpretações de devir para a humanidade: do ponto de vista metafísico, seria colocar em foco uma significação oculta na origem das coisas, o que não ocorre numa interpretação genealógica, pois o devir da humanidade é uma série de

interpretações, de regras que foram subvertidas e usadas ao contrário, criando assim uma história que analisaria a emergência de interpretações distintas.

Relacionando a história tradicional e a genealogia, Foucault ([1979] 2012) evidencia as críticas de Nietzsche ao sentido supra-histórico, que se apoia sobre absolutos, e considera o sentido histórico como ideal para a genealogia trabalhar aquele que não se apoia sobre nenhum absoluto, mas trabalha em perspectiva, dissociando o que antes se achava puro e reintroduzindo o absoluto do devir, acreditando assim na inconstância do ser humano.

Retoma, assim, o conceito de História Efetiva, que trabalha com a singularidade do acontecimento, colocando-o sob o domínio do acaso e fruto de uma inversão de uma dominação de forças. Enquanto o historiador tradicional trabalha de baixo para cima, tentando alcançar o cume sempre inacessível da origem, o historiador efetivo trabalha de cima para baixo, apreendendo tudo e deixando operar as singularidades características do objeto, sempre trabalhando uma temática próxima (o corpo, as energias, etc.).

E, assim, Foucault ([1979] 2012) propõe outra forma de fazer a história, destruindo o modelo metafísico e antropológico da memória. Em primeiro lugar, tomar as construções paródicas e burlescas como forma de destruir as máscaras reais do passado e, como um carnaval, nos irrealizar em várias identidades reaparecidas: “A genealogia é a história como um carnaval organizado” (FOUCAULT, [1979]2012); em segundo lugar, buscar a dissociação sistemática de nossa identidade, pois o plural habita a vida, almas inumeráveis nela disputam. A história não descobrirá uma identidade esquecida, mas um sistema complexo de elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese domina. E, em terceiro lugar, fazer o sacrifício do conhecimento, pois repousa na injustiça, no perigo, desfaz a unidade do sujeito, apoia-se na violência.

O poder, para Foucault ([1979]2012), não podia ser considerado como uma dominação global e centralizada que se pluraliza, se difunde de forma homogênea em toda a sociedade, mas como existência e formas específicas no nível mais elementar. Segundo Machado (2012), o Estado não seria ponto de partida, a base de todo poder social e do qual se constituiriam os saberes nas sociedades capitalistas. “Funciona como uma rede de dispositivos ou mecanismo a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível. Daí a importante e polêmica ideia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade que se possui ou não”. [...] “Não existe aquele que tem o poder e o outro que não tem, o poder não existe, apenas existem relações de poder” (grifos acrescidos) (MACHADO, 2012, p.17).

Machado (2012) rejeita a ideia de poder inspirada no modelo econômico, que ele considera como mercadoria, no modelo jurídico na acepção de contrato, mas aceita a concepção de “[...] guerra, porque, como uma multiplicidade de relações de força, ele é luta, afrontamento, situação estratégica. Ele se exerce, se disputa. E não é uma relação unívoca, unilateral; nessa disputa, ou se ganha ou se perde” (MACHADO, 2012, p.18). Também não o associa à repressão, a aspectos negativos como exclusão, negação, recalque, censura, porque produz realidade e domínios de objetos e rituais de verdade, mas a aspectos positivos, pois possui uma eficácia produtiva, uma positividade no sentido de gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações, para que seja possível o aproveitamento de suas potencialidades e/ou aperfeiçoamento de suas capacidades (MACHADO, 2012).

Em Vigiar e Punir ([1975]1987), Foucault desenvolve a ideia do poder como disciplina e, para isso, recorre à estrutura, inicialmente arquitetônica, do Panopticon, por Bentham (século XVIII), uma prisão-modelo de forma circular em que havia uma torre no centro onde o vigia podia olhar e fazer com que o outro, para quem os olhos se dirigem, saiba que está em constante vigilância, mesmo sem ver o vigilante. Foucault mostra como o poder soberano do Antigo Regime empregava essa tecnologia de poder no exército, com a utilização de armas de fogo, mas que, depois, passou a ser usada como poder disciplinar nas prisões, hospitais, fábricas, conventos e escolas, aperfeiçoando gradativamente seu alcance, estendendo seus tentáculos até os indivíduos, tornando-os dóceis e úteis à sociedade na Modernidade. O poder disciplinar visa dirigir a conduta dos indivíduos, controlando as mínimas ações, antes mesmo que estas aconteçam, por isso esse tipo de poder se caracteriza por elementos rígidos e/ou determinados por certa jurisprudência: a vigilância, a recompensa, as punições (FERNANDES, 2012).

No terceiro domínio – Estética da existência: o sujeito em relação com a ética –, Foucault não centra mais o sujeito em relação com o saber e com o poder, mas com a ética: trata-se da constituição do sujeito mediante práticas de si. Para isso, Foucault faz um deslocamento teórico, pois substitui o conceito de poder pelo de governo, o que torna possível o governo de si. “A governabilidade consistiria no encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (FONSECA-SILVA, 2007, p. 69). Nos séculos que antecederam a era cristã, os filósofos se preocupavam com a interpelação dos sujeitos a uma ética que recairia sobre a conduta humana. Surge o princípio Conhece-te a ti mesmo, uma frase inscrita no templo de Delfos, na antiga Grécia, que revelava a exigência de o sujeito buscar uma verdade sobre si que estava fora de dele, em outrem, por isso eram

discursos carregados de moral, em princípio, exteriores ao sujeito, mas deviam constituí-lo pela produção de subjetividade; caso contrário, não tinha o direito de ir à polis.

Para os gregos antigos, esta busca da verdade estava relacionada com o uso dos prazeres em termos de domínio de si e de virilidade, por isso tinham preocupação com a saúde, a alimentação, o sono, as relações sexuais, os exercícios físicos, porque os que cuidam de si não eram escravos de seus desejos e paixões; aquele que comanda a si mesmo poderá comandar os outros – História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984). Para as práticas sexuais na cultura greco-romana, a partir dos textos dos estoicos e epicuristas, percebe-se que o cuidado de si não serve mais à vida na polis e ao desempenho do poder político, mas para um fim em si mesmo, numa abrangência de vida que compreendia uma moral pela renúncia, pela valorização da mulher e do casamento, pela estética da existência baseada na reciprocidade, na fidelidade – História da sexualidade III: o cuidado de si (1984).

A constituição do sujeito moral nos séculos I e II da Era Cristã foi muito diferente, pois a cultura de si valorizava o sujeito pelo que ele era, e não pelo ele possuía, daí a dificuldade de conciliar a desigualdade e a reciprocidade no casamento ou na vida político-social. Segundo Fernandes (2012), o cristianismo impunha, como cuidado de si mesmo, a sujeição, a renúncia com a promessa de salvação, a promessa da vida eterna. Para essa atividade,

[...] o (in)definido sujeito enunciador vale-se da palavra – a palavra de Deus buscada na Bíblia – considerada como um lugar de verdade e que, assim o sendo, precisa ser recebida. Intenta-se uma governabilidade, compreendida como um campo estratégico de relações de poder. (FERNANDES, 2012, p.82).

Diferente do poder político que age sobre territórios, o poder pastoral reina sobre indivíduos e não é um poder triunfal; ao contrário, é um poder benfazejo, pois cabe ao pastor sacrificar- se pelas ovelhas. Em nome dos mandamentos de Deus, o pastor exige a obediência absoluta, porque essa forma de poder liga-se à produção de verdade; exige que o sujeito seja humilde, consciente de suas fraquezas, pois, enquanto discursos, produz subjetividade pela sujeição a uma verdade.

Ora, quem produz o Jornal Aurora da Rua não tinha consciência das origens que legitimavam aquilo que é dito em suas páginas, porque, quando ele surgiu, em 2007, foi o resultado de acontecimentos inesperados, de experiências vividas nas ruas que, como uma sutura, produziram uma formulação discursiva que permanece num processo de atualização até o presente. Portanto, o jornal não significa apenas um saber que é construído a partir de

determinada formação discursiva no sentido foucaultiano, mas também representa um poder que não é uma dominação global e centralizada, mas uma forma de micropoder com existência e formas específicas. Esta forma de existência em que sobressai o cuidado de si e dos outros se refere à ética, ao corpo, à moral, em que se encontra o cinismo grego que vai constituir-se naquilo que foi dito antes (pré-construído) e que produz sentidos na formulação discursiva do jornal e das pessoas que vivem na Comunidade da Trindade. Essas informações, portanto, garantem a validade da carnavalização como formação discursiva predominante, a determinar o que pode ou não ser dito no Aurora da Rua.