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3.1 A POBREZA E A SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL

3.1.1 A Vida dos Pobres em Salvador – Bahia

A pobreza não é uma realidade que está arraigada na Cidade do Salvador apenas durante as décadas atuais. Desde o período colonial, existem registros, tanto de historiadores como de visitantes estrangeiros que conheceram de perto pessoas que viviam pelas ruas na forma de trabalho informal, como escravos vendendo iguarias, vísceras de animais, mendigos nas portas ou nas imediações das igrejas, vagabundos que não tinham nenhuma ocupação, pessoas doentes. Vilhena22 (1969) já alertava para a condição dos brancos pobres, considerando uma sociedade escravocrata em que predominavam os senhores, detentores do capital na produção de produtos primários (açúcar, fumo, farinha), na comercialização de produtos importados (azeite, bacalhau, vinhos etc.) e os escravos como mão de obra explorada a fazer todos os

22 Luiz dos Santos Vilhena foi um professor de grego que viveu na Bahia no século XIX e retratou a Bahia dessa

tipos de trabalho braçal, tanto nos engenhos de açúcar como nas grandes residências urbanas dos seus patrões.

Segundo Vilhena (1969), os brancos pobres, quando os amos não os empregavam nas tarefas caseiras, arranjavam-lhes, então, um emprego público: não queriam exercer trabalhos braçais para os outros, porque isso era trabalho de escravos, por isso preferiam “por melhor sorte ser vadios, o andar morrendo de fome, o vir parar em soldado, e às vezes em ladrão” (VILHENA, 1969, p.102) a servir um senhor honrado. Muitas criadas, vindas de Portugal acompanhando as senhoras, quando eram postas nas ruas, optavam por viver na miséria a subordinar-se às regras de uma casa. A mesma realidade acontecia com as filhas do homem pobre que, por falta de oportunidade, eram levadas à prostituição, por isso Vilhena (1969, p. 138) diz ser este “[...] o motivo por que se acham nesta cidade tantas mulheres perdidas e desgraçadas”.

A estruturação social da Bahia, nos séculos coloniais, era constituída pelos senhores, donos das condições de produção, e pelos escravos, que faziam todo o trabalho braçal na produção de produtos primários, sobretudo, o açúcar.

Entre estas duas categorias, nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização, comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis, dos inadaptados: indivíduos de ocupações mais ou menos certas e aleatórias, ou sem ocupação alguma. (PRADO Jr., 1957, p. 279).

Nesse grupo intermediário, predominavam os mulatos, pretos forros, mestiços, índios, que, não sendo escravos e não podendo ser senhores, viviam de biscates, sem qualquer estabilidade; os vadios desocupados também compunham esta classe, o que inquietava as autoridades, pois sempre estavam envolvidos com o vandalismo e a criminalidade.

Considerando os anos de 1600, as ruas eram ocupadas por diversas classes sociais, porque a sociedade era composta por três grupos: o primeiro era constituído, de um lado, por representantes do poder civil, militar e religioso, logo se compunha de altos funcionários da administração real, os oficiais de patentes, o clero secular e regular; do outro lado, estavam os senhores donos de Engenho, que detinham o poder de comercializar os seus produtos e de influenciar a administração local, ocupando as posições da Câmara do Senado; o segundo era constituído por uma gama rala de gente livre como funcionários subalternos da administração real, soldados do regimento, pequenos comerciantes como taberneiros, vendeiros, presentes em todos os portos, e artesãos; o terceiro era composto por escravos cada vez em quantidade

minguada, pois nem todos podiam tê-los; abaixo dos escravos, havia os mendigos e os vagabundos, acompanhados dos marinheiros sedentários ou abandonados por causa de moléstia, soldados fugidos, aventureiros em busca de riqueza e, certamente, os primeiros escravos alforriados (MATTOSO, 1978, p.159-160). É essa população marginal que vai morar nas ruas, porquanto vive à custa da comunidade, dela obtendo seu sustento diário.

Nos anos de 1800, considerando o estatuto social, o poder e a situação econômica, as diversas categorias sociais estavam organizadas em quatro grupos. No primeiro grupo, havia os altos funcionários da administração real, os militares de altas patentes, o alto clero secular e regular, os grandes mercadores e os grandes proprietários rurais. Eles eram a elite da sociedade baiana daquela época, sempre faminta de distinções e honrarias, que se materializavam no reconhecimento de suas origens nobres e na obtenção de títulos de nobreza, sobretudo os proprietários rurais. No segundo grupo, predominava a diferença de rendimentos salariais inferiores ao primeiro grupo quando eram funcionários, ou nível de renda quando se trata de comerciantes, de lavradores-proprietários, de profissionais liberais e de alguns mestres de ofícios nobres. No terceiro grupo, os seus componentes eram os funcionários subalternos da administração real, militares (sargentos, cabos, soldados), profissionais liberais secundários (cirurgiões, pilotos, médicos, etc.), oficiais mecânicos (pedreiros, carpinas, marceneiros, sapateiros, etc.), pequenos comerciantes de frutas, doces e salgados. Eram homens e mulheres livres, recém-saídos da escravidão. Nesse grupo, estava também o pessoal do mar como pescadores, marinheiros do Recôncavo, condutores de gêneros alimentícios e fornecedores de pescado à população (MATTOSO, 1978).

O quarto grupo era composto de escravos, de mendigos e de vagabundos. Normalmente, eles provinham de todo tipo de fugitivo (soldados, marinheiros, escravos), de doentes e dementes, de desempregados ocasionais ou crônicos. Essas categorias marginalizadas representavam a plebe indisciplinada e turbulenta, pronta a reagir ou abalar, pela revolta, a estrutura social da cidade.

Desamparadas pelos poderes públicos viviam da caridade da população para a qual constituíam um peso muito grande. Categorias “perigosas” cujo número crescia em períodos de crise do mercado de trabalho, de crises alimentares, frequentes e agudas, de crises epidêmicas também. (MATTOSO, 1978, p. 166).

Salvador, no século XIX, vivia uma realidade de extrema desigualdade social, pois os baianos eram divididos entre senhores e escravos, brancos e negros, ricos e pobres. Sobre os

escravos, recaía a tarefa de produção da maior parte da riqueza consumida e exportada pela Província da Bahia. Havia um contingente de pobres e livres, constituído, em sua maioria, de mestiços e negros, que não encontravam oportunidade de trabalho. Era uma riqueza construída com o empobrecimento da população. Dramática era a situação dos muitos pobres que suportavam a sua miséria na condição de “[...] agregados em casa de família ou da multidão barulhenta de vendedores ambulantes, serventes e diaristas, que enchiam as ruas na luta cotidiana pela sobrevivência” (FRAGA FILHO, 1996, p. 22).

A população baiana vivia, nessa época, no limiar da pobreza, pois era constituída de trabalhadores braçais, de carregadores, de serventes, de lavadeiras, de ganhadeiras e de inúmeras pessoas que mercadejavam doces, frutas pelas ruas da cidade. Numa sociedade escravocrata, o fato de não possuírem escravos e viverem do próprio trabalho já era sinal de extrema pobreza. Havia, por parte dos homens livres pobres, uma desconfiança para vender a própria força de trabalho, preferiam viver na mendicância a se sujeitarem a relações de trabalho que os equiparava aos escravos. As elites consideravam esse comportamento como sinais de vadiagem e de preguiça. Muitos moravam escondidos nos cômodos inferiores (lojas) dos grandes sobrados do centro da cidade com vergonha de mostrar a pobreza; outros construíam suas casas de sapé cobertas com palhas fora da cidade; a uma boa parte, por sua condição de indigentes, só restava a alternativa de mendigar pelas ruas.

Ao lado dos mendigos, os vadios compunham um grande contingente de indivíduos que “[...] haviam ultrapassado o limite da pobreza para se tornarem absolutamente miseráveis” (FRAGA FILHO, 1996, p.80). Os mendigos gozavam de alguma tolerância social, da proteção das instituições de caridade da Igreja e dos paroquianos; os vadios, ao contrário, eram rejeitados como a “[...] parte mais vil e abjeta da pobreza. Eles se incluíam na categoria dos ‘pobres de maus costumes’ e, portanto, inabilitados para a caridade e a proteção da comunidade paroquial” (FRAGA FILHO, 1996, p. 80).

Se, no início, se observava certa tolerância, a partir de 1850, com a política de reformas urbanas, a onda de laicização e de higienismo, os locais de mendicância e de vadiagem passam a ser vistos como lugares repugnantes e perigosos à salubridade pública. Não era admissível que homens, mulheres e crianças vagassem pelas ruas da cidade, ocupassem vias públicas com suas roupas esfarrapadas, seus corpos sujos, feridas abertas e sua linguagem recheada de palavras indecentes. Segundo Fraga Filho (1996, p.59), “[...] começa a exclusão física, pois eles deveriam ser confinados em instituições criadas para este fim”.

Essa rejeição social aos mais pobres se acentuava cada vez mais por ocasião das calamidades naturais como a seca, as epidemias, além das crises econômicas do século XIX e

da guerra da Independência. Salvador e as cidades coloniais eram vistas pelos contemporâneos como depósito de gente desclassificada e despossuída. Na visão dos mais abastados, as ruas apareciam como espaços inóspitos, perigosos e povoados de ladrões, de mendigos e de vadios.

Essas informações são importantes para mostrar que a representação discursiva, ao realçar os aspectos negativos de rejeição ao morador de rua, não advém das condições de produção atual, mas provém de informações incrustadas na memória coletiva, de experiências vividas no passado. Isso contrasta com a representação discursiva do Jornal Aurora da Rua, que não aceita a intolerância, mas a compreensão humanística do morador de rua. Daí o embate discursivo, o que exige cooperação e comunicação de todos os excluídos para uma mudança conjunta da sociedade. Esse novo viés ideológico não se relaciona só à memória do Brasil Colônia ou Império, mas à ética e à filosofia dos cínicos gregos através do cristianismo primitivo da Idade Média e do conceito de carnavalização de Bakhtin ([1946] 2013 a), o que ocorre até hoje.