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4.2 ASPECTOS GERAIS DA ABORDAGEM METODOLÓGICA

4.2.3 Etnografia numa Comunidade de Moradores de Rua

Como ciência de descrever um grupo humano em suas diversas perspectivas: suas instituições, seus comportamentos interpessoais, suas produções materiais e suas crenças, este tipo de pesquisa implica a participação pública ou secreta do etnógrafo na vida cotidiana das pessoas, observando o que acontece por um longo período de tempo, escutando-as, fazendo perguntas, anotando qualquer dado que seja importante para o objeto da pesquisa.

É uma pesquisa que se baseia no campo onde os indivíduos vivem e lá convivem, em oposição aos ambientes experimentais dos laboratórios, por isso o pesquisador adota uma participação subjetiva na vida das pessoas que estão sendo estudadas e, simultaneamente, porta-se como um observador objetivo de suas vidas. Requer muito tempo, porque a necessidade de interagir com os atores pessoais é que determina a qualidade da coleta de dados, o que o obriga ao emprego de diferentes técnicas como a observação participante, a amostragem, relatos informais, entrevistas, diários de pesquisa. Constrói-se um sistema indutivo de percepção e de análise, pois parte do acúmulo de descrições de detalhes para a elaboração de modelos gerais ou teorias explicativas, ao invés de testar hipóteses derivadas de teorias ou modelos preexistentes. Pressupõe uma compreensão dialógica pelo fato de as opiniões e conclusões do pesquisador poderem ser discutidas com os informantes à medida

que eles vão tomando conhecimento, como também possui um caráter holístico por oferecer um retrato mais completo possível do grupo estudado (ANGROSINO, 2009).

No ano de 2010, tomei conhecimento do Jornal Aurora da Rua na Igreja Santo Antônio da Barra e encontrei ali um objeto de pesquisa, mas não sabia especificar o quê necessariamente. Como docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), Campus I (Salvador), sediado no bairro do Barbalho, tinha de desenvolver atividades de pesquisa e de extensão. Comecei a frequentar a Comunidade da Trindade, na Av. Jequitaia, 165, perto do Mercado do Peixe, em Água de Meninos, porque o jornal de rua era ali publicado, na casinha no 6. Durante o ano 2011, levei várias turmas do Curso Integrado e Subsequente, para que os alunos interagissem com as pessoas que vivem na Comunidade da Trindade, conhecendo a realidade da exclusão, fizemos projeto de iniciação científica pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) com vários alunos. Convidei alguns vendedores do jornal para irem às salas de aulas com o objetivo de que falassem de suas experiências de drogas, da violência, de como é duro viver abandonado pelas ruas da cidade. Após os depoimentos, a discussão, a reação era sempre muito positiva, o que resultava em trabalhos escritos de densas opiniões sobre a questão social, a alienação da família e a representação vazia de si mesmos.

Desde 2011, como pesquisador, venho acompanhando a vida cotidiana da comunidade. Tenho almoçado com eles, sentindo o valor da repartição, pois os alimentos são recolhidos de doações, da horta ou das sobras da Feira de São Joaquim, que fica perto. No início, foi muito difícil de compreender esse despojamento, a pobreza dos que têm tão pouco, mas não havia tristeza. Falam pouco, não rejeitam uma conversa, me chamam de professor, pois não sou um deles. Não sou voluntário, portanto não tenho obrigação de cumprir horário. Sabem que sou pesquisador do Jornal Aurora da Rua. Há dois anos, passamos o Natal juntos debaixo do Viaduto da Via Expressa onde nos misturamos com os moradores de rua, rezamos, cantamos, fizemos a nossa ceia e admiramos a nossa árvore natalina: um composto de arame, ferro e material reciclável. Há quatro anos, recolho roupas, móveis, remédios e todo material reciclável do prédio em que sou síndico para o galpão da Igreja da Trindade, porque os moradores da comunidade são estimulados para a autonomia e liberdade. A gente sofre quando sabe que algum morador voltou para as drogas ou abandona o tratamento quando é um doente mental, entretanto ficamos alegres quando alguém consegue um emprego ou volta para a família. Há muito tempo que não me sinto um ser estranho na comunidade, porque tenho participado de solução de problemas, como o conserto da bomba d’água, a doação de alimentos, de material reciclável. Tenho pesquisado, juntamente com Henrique Peregrino,

líder da comunidade, aspectos da história da Igreja da Trindade e da Capela Santo Antônio de Velasquez, em Mar Grande, no município de Vera Cruz, a chamada Trindade do Mar. Atualmente, estamos focados num projeto de preservação privada de ambiente natural junto aos órgãos públicos para que a especulação imobiliária não destrua o entorno da capela.

Quando se pratica etnografia, a consolidação da experiência vivida em campo ocorre quando se constroem vínculos entre o investigador, os investigados e os contextos de pesquisa. Essa noção de pertencimento enraíza o estar no campo, por isso a autoridade e o rigor resultam da legitimidade do vivido com o pensado. Segundo Pimentel (2009), não se pode abstrair de duas posturas: o estranhamento e a familiaridade com o objeto da investigação. Com o estranhamento, o investigador consegue problematizar o tema de estudo, à medida que rompe com o senso comum, porque cria condições para a interpretação crítica do seu objeto de pesquisa à luz das teorias e sistemas de análise produzidos pelas tradições de pensamento em que se situa a pesquisa.

Estranhar é ver de forma diferente aquilo que os indivíduos que participam da investigação veem como o mesmo, é também criar instabilidade semântica e epistemológica para as significações compartilhadas sobre determinado contexto cultural. Ao buscar interpretar e compreender as relações dos indivíduos em determinadas situações de convívio delimitadas pelo tema da sua investigação, o pesquisador se distancia daquilo que lhe é próprio na relação de pertencimento com o objeto e seu estudo [...] Estranhamento e familiaridade, neste sentido podem ser compreendidos como processos de diferenciação e identificação com os outros da pesquisa, ambos indissociáveis. (PIMENTEL, 2009, p. 134).

O trabalho de olhar e de escutar é importante, mas se complementa com a conversação entre o pesquisador e os investigados para favorecer o estranhamento daquilo que é familiar, porque envolve uma postura de alteridade em que “[...] a presença do outro informa e transforma as condições de reconhecimento das diferenças culturais [...]”, assim “[...] contribui para a ampliação e transformação das relações com o conhecimento a partir de um enraizamento nos contextos socioculturais em que este conhecimento é produzido e circula”, conclui Pimentel (2009, p.159). Vale ressaltar, também, o papel da escrita em que os saberes populares dos outros refazem nossas escutas, nossos olhares e identificações.

O objetivo básico da pesquisa era a descrição e interpretação do discurso do Jornal

Aurora da Rua através de textos, de cinco edições cuja escolha foi feita por amostragem,

considerando alguns critérios como ser texto coletivo, temas específicos, atualidade. Por mostrar-se insatisfatório, fomos ouvir as pessoas que fazem, vendem e moram na

Comunidade da Trindade. A partir do diálogo com os pesquisados e as próprias teorias existentes, houve permanente transformação das questões norteadoras da pesquisa.

O perigo acontece quando o pesquisador, na ânsia de valorizar os indivíduos no contexto da pesquisa e de falar da sua posição social e hierárquica ascendente como investigador, considerando os grupos populares, tenta dar voz aos outros como se eles não fossem sujeitos do seu próprio discurso, numa atitude simplista e romântica de “[...] legitimação de suas narrativas, silenciando as discordâncias e críticas sobre pontos de vistas que nem sempre correspondem com as experiências de vida que se pressupõe compartilhar” (PIMENTEL, 2009, p.162). Além dessa dificuldade, a obsessão pela teoria e pelos cânones cujos autores têm inegável importância acadêmica transforma-os em elementos primordiais no processo da pesquisa em detrimento da polifonia das vozes que provêm do campo. Sabe-se que “[...] as verdadeiras experiências etnográficas ocorrem quando se buscam combinar os testemunhos do campo de pesquisa com as contribuições conceituais das teorias que amparam e dão sentido epistemológico a nossas produções intelectuais” (PIMENTEL, 2009, p. 162).