• Nenhum resultado encontrado

2.2 PARADIGMAS CULTURAIS E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

2.2.7 O Manifesto da Literatura Divergente (Nelson Maca)

A formulação discursiva da Literatura Divergente, proveniente do Movimento Negro da Bahia, é a manifestação viva da carnavalização de Bakhtin, e, por conseguinte, do cinismo antigo que, ao lado do discurso científico, jornalístico, se insere no discurso do Jornal

Aurora da Rua como mais uma formação discursiva a determinar aquilo que aparece nos

textos e nas imagens do jornal. O compromisso com a liberdade, a criatividade, a cultura popular, funcionando como rasura diante das forças hegemônicas, une a cultura negra com os objetivos do Aurora da Rua, reagrupando o estético, o étnico e o pedagógico.

Conhecendo a Comunidade da Trindade no seu dia a dia, percebeu-se não só a presença da etnia negra entre os moradores e ex-moradores de rua, como da cultura negra, presentes nos quadros, no som do atabaque nas cerimônias religiosas. A memória discursiva, envolvendo o povo pobre e negro, aparece a todo instante não só nas práticas cotidianas como na produção e circulação do Jornal Aurora da Rua. Mesmo assim, é impossível não relacionar o Manifesto da Literatura Divergente, de Nelson Maca (2012), poeta e professor da Universidade Católica do Salvador (UCSAL), articulador do coletivo Blackitude Hip-Hop, com uma mídia alternativa/divergente como o Jornal Aurora da Rua. À semelhança do

Manifesto da Antropofagia Periférica (2007), de Sérgio Vaz, em São Paulo, que propõe uma

arte popular descentralizada, o Manifesto da Literatura Divergente se inscreve, de forma atualizada, por efeito da memória discursiva, na Genealogia do Poder, de Foucault, na

construção dos construtos identificação e diferença, de Hall, e na concepção de cultura de Raymond Williams como modo de existência.

Essa literatura se inscreve num entrelugar, porque não segue os paradigmas do centro, congrega todas as tribos da periferia, aceita todos os gêneros, não segue rótulos e não é modelo para ninguém. Muitos podem classificá-la como Literatura marginal, subalterna, periférica, mas ela compreende a gama de personagens à margem da sociedade, escrevendo sobre si ou não.

Quando defendo este conceito, estou realmente pensando em territórios segundo nos orienta o geógrafo Milton Santos. E, se falo em manifestações literárias distintas de territórios distintos, isso só pode acontecer num ambiente cultural onde a diversidade seja respeitada e incentivada. Dentro de nossa sociedade, equivale a dizer libertária! (MACA, 2012, p.2).

Em seu Manifesto18, Maca (2012) explica que a divergência é em relação à monocentralidade, que estipula um centro e uma periferia. Ao desviar de um cânone, uma central universal, os autores se reagrupariam – de acordo com suas naturezas comuns, sejam elas raça, classe, gênero – em um novo processo, de convergência19.

Por serem divergentes, as possíveis discordâncias das concepções de base fortalecerão as convicções desta manifestação e serão a prova real da diversidade descentrada que determina o dinamismo das literaturas. Porém, uma constatação a tempo: apesar de minhas reflexões situarem-se no campo prático das literaturas, ao reler inúmeras vezes esta manifestação escrita, certa ampliação impôs-se-me como possibilidade fecunda. Na verdade, em quase todos os lugares onde eu escrevo Literatura em sentido genérico, ou mesmo pontual, poderia ter grafado Arte. Com uma pitada de relativismo, acho que, até o final do texto, vocês me entenderão. E aqueles que acharem aqui algum nó de diálogo ou dobra de perspectiva crítica poderão levar minha escrita para debates em campo de linguagens não vislumbradas a

priori (MACA, 2012, p. 4). (Grifos acrescidos).

Se não aceitasse a divergência, o manifesto estaria nos moldes dos manifestos fundadores, mas, como a literatura divergente é potência, situa-se no devir, ela é constituída de diversidades, sempre aberta a mudanças. Essa escrita não se restringe somente ao território da literatura, mas também a outros campos da linguagem como é o caso do Jornal Aurora da

Rua ou do Jornal Boca de Rua: “[...] levar minha escrita para debates em campo de linguagens

não vislumbradas a priori” (MACA, 2012, p. 4).

A Literatura Divergente, no momento imediato de sua conformação enquanto linguagem (Literatura Convergente), não almeja ocupar um centro hegemônico qualquer, mas sim desrespeitá-lo. O descentramento do centro – paralelamente à desmarginalização da margem – é a substância de combustão que a impulsiona. Até o limite do estabelecimento da linguagem, pois a forma lhe nega na mesma velocidade e proporção em que avança em sua permanência. Na mesma medida em que se cristaliza, converge para uma comunidade determinada por semelhanças, ou seja, compõem um sistema literário partilhado e agregador (MACA, 2012, p. 5).

No próprio título deste manifesto: Manifestação da Literatura Divergente ou Manifesto

Encruzilhador de Caminhos, percebe-se o fenômeno do interdiscurso, porque, na

materialidade do intradiscurso, manifestam-se outros discursos como a Genealogia do Poder,

18 Disponível em: <http://www.gramaticadaira.blogspot.com.br/>. Acesso em: 7 mar. 2014. 19 Disponível em: <http://coral.ufsm.br/nimbus/?p=381>. Acesso em: 7 mar. 2014.

de Foucault, ou as implicações do paradigma de Exu na exaltação de cruzamentos de caminhos. O poder não está mais na centralidade do Estado, mas no sistema molecular da sociedade (micropoder), sobretudo nos discursos de resistência, numa concepção descontínua da história. Este descentramento da literatura divergente diante de valores hegemônicos lembra o paradoxo de Exu, segundo Oliveira (2007, p.130), em sua obra: Filosofia da

Ancestralidade:

Exu é o princípio de individuação que está em tudo e a tudo empresta identidade. É, concomitante, o mesmo que dissolve o construído; aquele que quebra a regra para manter a regra; aquele que transita pelas margens para dar corpo ao que estrutura o centro; é aquele que inova a tradição para assegurá-la. Exu é assim o princípio dinâmico da cosmovisão africana presente na cultura ioruba. Dessa maneia, ele mantém um equilíbrio dinâmico baseado no desequilíbrio das estruturas desse mesmo sistema filosófico-ético. Exu, aquele que viola todos os códigos é o mantenedor, por excelência, do código. É assim que o paradigma Exu se expressa na forma de uma filosofia do paradoxo.

Assim, a divergência situa-se nas contraideologias, porém sem, potencialmente, consagrar-se como síntese, o que pode ocorrer com a estética da Literatura Convergente!: “Muita lábia tem se gastado dentro e fora da academia, perto e longe da quebrada, na tentativa de se estabelecer os limites, aproximações e distanciamentos entre essas convergências”, ressalta Maca (2012, p.4). “Muita política, muita economia, muita tabela de cossenos e muita malandragem se infiltram nesse meu pirão primeiro”, sintetiza Maca (2012, p.4), autor do Manifesto.

Vejamos outros fragmentos:

O que se pretende aqui não é persuadir (pois já disse que falo primordialmente às mentes divergentes), mas celebrar a ousadia e o empenho dos que, conscientemente, pautam sua poética – de autocompreensão e autorrepresentação – na possibilidade do desalinho construtivo, ou, se preferirem, na lógica disforme da ruptura, do hibridismo e da simultaneidade, amortecendo os choques bruscos das tradições culturais monolíticas. Ou então, digamos, simplesmente, que a Literatura Divergente é um “querer ser” que habita as Encruzilhadas. Sua função de fazer o Movimento e estabelecer a Comunicação dos divergentes faz com que ela manifeste sua potencialidade no corpo físico de seus cavalos mais diletos: as Literaturas Convergentes (MACA, 2012, p.3). (Grifos acrescidos).

A literatura divergente se encontra na ruptura com as tradições culturais monolíticas, valorizando o hibridismo, o sincretismo (Encruzilhadas), absorvendo o feminismo, o

movimento gay, o movimento negro, o movimento população de rua (Comunicação dos divergentes). Esse hibridismo no Jornal Aurora da Rua ocorre na junção da lua, sugerindo o escuro – a cor local, mas ao lado está o sol com seu amarelo intenso – a luz, como a cor do universal. Nos textos, verifica-se o popular na fala dos moradores e o culto no sujeito enunciador (narrador), enquanto, no nível do discurso, são visíveis as determinações do discurso da carnavalização e do cinismo como formação discursiva predominante. Só que não é uma construção homogênea, pois outros discursos (religioso, jornalístico, científico ou político) também se apresentam determinantes.

Por comparação, vejamos um texto do Jornal Boca de Rua sobre o tema Falta de

moradia e verifiquemos as diferenças de estilo, de estrutura e de abordagem do tema,

considerando a cultura de si em relação aos moradores de rua como uma forma de construir uma representação singular deste jornal em relação ao Aurora da Rua.

Hotel Mil Estrelas

Teto não é casa e casa não é lar. Lar é onde a gente se sente bem, se sente protegido. Por isso, não pense que morador de rua não tem lar. Pode não ter casa, mas tem lar. Sobre nossas cabeças existe um teto, sim. Um teto natural onde brilham o sol e a lua e as estrelas. É um hotel mil estrelas.

Infelizmente também tem poluição. Nosso teto – o céu – tem uma nuvem de poluição que vem dos carros, das fábricas, da cidade. Dizem que o morador de rua suja a cidade, mas ninguém percebe que a cidade suja o morador de rua. Nossa pele tem uma camada preta grudada que não sai só com água e sabão. Tem que esfregar muito.

Como nossa casa não tem parede, se pode dizer que as portas estão sempre abertas. As quatro estações do ano passam por lá, às vezes numa única semana. Mesmo sem tijolos, nem tábuas, temos sala, cozinha, banheiro, quarto. Os sofás são caixotes, o fogão tijolos empilhados, as panelas são latas. Claro que quando chove, faz muito frio ou sol daqueles de arder, tem que ir para baixo das abas, dos viadutos, das pontes, das árvores. É assim que as pessoas que não têm casa se abrigam, porque, mesmo conseguindo uma lona, não deixam armar uma barraca nem nos terrenos baldios. Para se protegerem da violência, os sem teto quase sempre vivem em grupo. (ANEXO K. Nosso Teto é o Céu, p. 4).

O texto possui um estilo poético e irônico quando faz referência ao hotel que tem mil estrelas, porque o hotel mais sofisticado de alguma metrópole no mundo só tem cinco ou sete estrelas. Não existe um sujeito-enunciador, conduzindo a narração, entremeando com depoimentos de moradores de rua; ao contrário, a sensação que nos dá é que o texto foi feito pelos próprios moradores de rua pela quantidade de dêiticos de primeira pessoa do plural: Nossa.

A matéria mostra que eles se vangloriam de que têm casa de portas abertas porque não tem porta, tem quarto, cozinha, banheiro, mesmo sem paredes. Se o firmamento é a sua casa, sabem criticar a sociedade (“Nosso teto – o céu – tem uma nuvem de poluição que vem dos carros, das fábricas, da cidade”), as injustiças sociais (“não deixam armar uma barraca nem nos terrenos baldios”) e denunciam a violência (“Para se protegerem da violência, os sem teto quase sempre vivem em grupo”). Há uma preocupação com a positividade e, simultaneamente, se apontam os aspectos negativos que envolvem a vida das pessoas que residem nas ruas. O Jornal Aurora da Rua aborda mais as positividades do que as negatividades, como já foi demonstrado em textos anteriores.

No nível do discurso, percebe-se que a legitimidade daquilo que foi dito encontra-se numa forma-sujeito jurídico-política, porque viver nessas condições de exclusão ofende o art. V da Constituição brasileira que fala da dignidade da pessoa humana (jurídico) e o Decreto nº 7.05320, de 23 de dezembro de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em

Situação de Rua e o seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento (político). Não existem vestígios de discurso religioso como no Jornal Aurora da Rua. A referência ao outro que exclui os moradores de rua está sempre numa forma indeterminada (“Dizem que o morador de rua suja a cidade”, “não deixam armar uma barraca” ).

Vejamos a parte final do texto do Jornal Boca de Rua:

Tribalistas

É muito comum dizer para quem mora na rua rompeu o vínculo familiar. Mas o que é uma família? Nem sempre a família de sangue é a melhor. Para nós, a família real é a família da rua. Os irmãos, os pais e os filhos são os amigos. É como uma tribo: cada um tem a sua tarefa e quase tudo é dividido. Um se encarrega de buscar água, outros de cozinhar, outros de catar lenha para o fogo.

Para dormir as pessoas procuram um colchão e cobertas, mas quando não encontram sobra o papelão. O mais difícil é o sexo e as necessidades fisiológicas. Quando a sociedade tira o direito de uma pessoa ter sua casa, tira também o direito à privacidade.

É revoltante quando chega a guarda municipal ou a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam) com a Brigada e tiram tudo o que a pessoa tem. Eles “limpam” o local. E tem uns que ainda debocham: “Pega o para-queda porque o avião caiu” (ANEXO K, p. 4-5).

20Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm>Acesso

A preocupação aqui é de denúncia contra a guarda municipal, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente com a Brigada, porque eles vêm higienizar o local levando todos os pertences dos moradores de rua. As relações de poder são inequívocas no discurso, pois o poder público usa a força para reprimir, mas não para resolver o problema. Mais do que a força física, ele retira do morador o direito à privacidade. Os excluídos, por sua vez, detêm uma forma imaginária de família superior àquela representação homogênea e equivocada da sociedade. Essa forma partilhada de sobreviver cotidianamente passa a ser uma prática que produz saber e poder, segundo Foucault ([1979]2012). A subjetivação do morador de rua, materializada nas páginas do Jornal Boca de Rua é diferente do Jornal Aurora da Rua porque critica os responsáveis por sua condição de abandono social. A produção do texto é realmente coletiva, pois aparecem os nomes dos moradores-redatores da matéria em cada edição.