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Para descrever e compreender a erupção identitária do homem em situação de rua, abordou-se a categoria de heterogeneidade discursiva, correspondente à AD-3 em que “[...] o primado teórico do outro sobre o mesmo se acentua” (PÊCHEUX [1983]1997a, p.315), destruindo aquela noção de máquina discursiva estrutural. Esse suporte teórico e os conceitos de polifonia de Bakhtin se tornaram, então, indispensáveis ferramentas para o exercício da descrição e da interpretação do corpus da presente pesquisa.

O grande momento da desconstrução e reconfiguração da teoria da Análise do Discurso ocorreu, em 1980, no Colóquio Matérialités Discursives6 quando se discutiu a questão do real da língua, da história e do inconsciente e, consequentemente, da confluência das disciplinas Linguística, História e Psicanálise. Isso exigiu maior concentração para os tópicos, como a contradição e a heterogeneidade, pensando o exterior do discurso não mais como “[...] um além de uma fronteira, mas como um aquém sem fronteira assinalado como presença-ausência do outro no mesmo; da leitura como um trabalho de trituração; do discurso como um acontecimento, como uma irrupção e uma emergência” (FONSECA-SILVA, 2007, p. 103).

Como todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos “[...] outros discursos e pelo discurso do Outro, o outro não é um objeto exterior (exterior: do qual se fala), mas uma condição constitutiva do discurso de um sujeito falante que não é a fonte primeira do discurso” (AUTHIER–REVUZ, 1990, p.3). A partir da concepção dialógica da linguagem postulada por Bakhtin e do diálogo com a Psicanálise, através do conceito de heterogeneidade, tema da presença do outro no discurso deste, Authierz-Revuz (1990) vem defendendo essa posição na Análise do Discurso. Para ela, existem, portanto, duas heterogeneidades: a heterogeneidade constitutiva, que não se evidencia claramente na superfície linguística, não se mostra no fio discursivo, e a heterogeneidade mostrada, que, ao contrário, deixa marcas explícitas no discurso como aspas, itálico, estilo direto, estilo indireto (heterogeneidade marcada) ou marcas implícitas como a ironia, a alusão, estilo indireto livre (heterogeneidade não marcada). A realidade linguístico-social é heterogênea, nenhum sujeito absorve uma voz social, mas sempre muitas vozes. “É nesta atmosfera que o sujeito nas suas múltiplas relações e dimensões da interação social e ideológica, vai-se constituindo discursivamente, assimilando

6 Os textos desse Colóquio foram organizados por Bernard Conein, Jean Jacques Courtine, Michel Pêcheux,

vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-relações dialógicas” (FARACO, 2009, p. 84). O conceito de polifonia significa uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas relações de consonâncias ou dissonâncias em permanente movimento, uma vez que a interação socioideológica é um contínuo devir.

A polifonia bakhtiniana seria “[...] a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes, plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo” (BAKHTIN, [1929] 2013 b, p. 4).

Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévsky, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objeto do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante (BAKHTIN, [1929]2013b, p. 4).

É importante não confundir esse conceito com a polifonia de Ducrot ([1984]1987), porque a sua abordagem reside na cisão do sujeito falante no nível do próprio enunciado. Ele introduziu uma distinção prática entre o locutor e os enunciadores. O locutor é aquele que, segundo o enunciado, é responsável pela enunciação, pois deixa marcas em seu enunciado, como, por exemplo, as marcas de primeira pessoa. O locutor é capaz de pôr, em cena, enunciadores que podem apresentar diferentes pontos de vista.

Retomando o pensamento de Pêcheux (1977), Courtine (1981) propõe uma releitura de Foucault para fazer funcionar alguns conceitos que vão modificar a teoria do discurso. Considerando o discurso político, apoia-se na categoria da contradição, e, a partir da elaboração dos conceitos de enunciado dividido e sentido dividido, questiona o fechamento das formações discursivas, introduzindo a noção de fronteira que se desloca em função dos jogos ideológicos, como já foi exposto no item 1.5. “A forma-sujeito aparece como organizando o saber de uma forma discursiva, mas fragmentada, em consequência da dispersão das posições-sujeito em que a forma-sujeito se divide em uma heterogeneidade em relação a ela mesma” (FONSECA- SILVA, 2007, p.104).

Outro aspecto importante da AD-3 foi a contribuição de Milner (2012) ao defender a visão de que a língua suporta lalangue, expressão usada por Lacan para dar conta do equívoco constitutivo da língua, conceito retomado e desenvolvido por Milner em Amor à língua (2012), por isso o sentido sempre escapa. Nessa configuração, o real da língua se manifesta

como série de equívocos. Portanto, “[...] o real da língua não é costurado nas suas margens como uma língua lógica: ele é cortado por falhas, atestadas pela existência do passo, do Witz e das séries associativas que o desestratificam sem apagá-lo” (GADET; PÊCHEUX, 2004, p.55); ora, o não idêntico que se manifesta aí é a lalangue, “[...] o que faz com que, em toda língua, um segmento possa ser ao mesmo tempo ele mesmo e um outro através da homofonia, da metáfora, dos deslizamentos do lapso e do jogo de palavras, e do bom relacionamento entre os efeitos discursivos” (GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 55).

É interessante observar as colocações críticas, feitas nessa época por Pêcheux em relação ao engessamento da teoria (Les Vérités de La Palice), quando só admitia a ideologia como forma de assujeitamento do sujeito por influência de Althusser (Aparelhos ideológicos

do Estado) e reconhece como o lapso, o ato falho, o chiste, o Witz infectam a ideologia

dominante no próprio interior das práticas em que ela tende a se realizar. Até a concepção de luta de classe muda, pois, quando se fala em luta de classe dominante, também se diz resistência, revolta e luta de classe da classe dominada (Althusser), por isso o lapso e o ato falho não significam que o inconsciente é a fonte da ideologia dominada. E Pêcheux ([1975] 2009, p. 278) conclui:

A ordem do inconsciente não coincide com a da ideologia, o recalque não se identifica nem com o assujeitamento nem com a repressão, mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem referência ao registro do inconsciente. Não estamos, com isso, querendo sugerir que o lapso ou o ato falho seriam, como tais, as bases históricas de constituição das ideologias dominadas; condição real de sua disjunção em relação à ideologia dominante se encontra na luta de classes como contradição histórica motriz (um se divide em dois) e não em um mundo unificado pelo poder de um mestre.

Nesse mesmo texto, Pêcheux ([1975]2009, p.281) declara:

[...] não há dominação sem resistência [...] é preciso “ousar se revoltar” ou “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja”: primado prático do inconsciente, que significa que é preciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, é preciso “ousar pensar por si mesmo”.

Se tudo isso aconteceu só porque houve a aceitação do inconsciente como elemento determinante na construção dos sujeitos e dos sentidos, não seria oportuno também ousar, trazendo o conceito de formação cultural como outro ingrediente capaz de provocar mudanças significativas na reconstrução da formação discursiva contemporânea como forma de se revoltar contra a paralisia intelectual, a estagnação epistemológica da teoria materialista do

discurso. Não seria oportuno pensar por si mesmo e ousar como fez Espinoza em relação à concepção de Deus, Althusser em relação à releitura do marxismo, Lacan em relação a Freud, falando-se de heresia a estas “questões imperdoáveis” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 281).

Diante do desmoronamento do estruturalismo, dos universos discursivos estabilizados, como aqueles da matemática, das ciências da natureza, das tecnologias industriais e biomédicas, surgem os universos discursivos não estabilizados: discursos filosóficos, enunciados políticos, expressão cultural e estética e os registros do cotidiano “[...] de se pôr na escuta das circulações cotidianas, tomadas no ordinário do sentido” (GREGOLIN, 2007, p. 181).

A presente pesquisa se encaixa como discurso do cotidiano, analisando uma mídia alternativa em que o morador de rua constrói sua subjetividade a partir de um ponto de vista de resistência, porque ousa se opor a uma estereotipada identidade, feita pela sociedade e pela grande mídia, de que, de maneira homogênea, as pessoas em situação de rua são vagabundas, deliquentes ou dependentes químicos. Por efeito da memória discursiva, retomou-se o conceito de cotidiano ao lado do conceito de popular, desde as posições do cinismo grego à carnavalização no sentido bakhtiniano cujas consequências chegaram até hoje nas artes, na política e na ciência.

Na edição n. 37, de abril/maio de 2013, o Jornal Aurora da Rua comemorou o sexto aniversário publicando como matéria de capa: “Partilhando vida: vendedores do jornal contam suas histórias com clientes”. A primeira história se refere a Elmário (Figura 3), vendedor do Jornal Aurora da Rua, que nos surpreende por seu relato, assim descrito pelo jornal:

É manhã de um domingo ensolarado. Elmário já está na porta da igreja. Colete e boné azuis, sacola do lado com um monte de jornais. Ele chegou cedinho, às 7 horas, e a expectativa é grande. Elmário é vendedor do Aurora da Rua desde 2007, ano em que o jornal foi lançado, e até 2010 a venda do periódico era sua principal fonte de renda. Atualmente, ele trabalha em um projeto social com carteira assinada, um sonho alimentado desde que estava em situação de rua, mas ainda vende o jornal nos fins de semana. “Nem gosto de lembrar o tempo em que morei na rua. A sensação de ser discriminado é muito ruim. Gosto de lembrar a reviravolta que aconteceu em minha vida no momento em que comecei a vender o jornal”, conta. Elmário revela que, no princípio não foi fácil, mas que sempre foi perseverante. “No começo eu vendia em todos os locais: praças, ruas, ônibus e até em lojas. Aí fui conhecendo pessoas. Escolhi igrejas como ponto fixo. Comecei a ver que me olhavam de um jeito novo”, relata. Comecei a me sentir novamente parte da sociedade, uma pessoa útil e capaz. A mensagem do Aurora da Rua é esta. (ANEXO J – TRANSFORMAÇÃO, DIGNIDADE E RESPEITO, 2013, p. 4).

Figura 3 – Elmário, vendedor do Jornal

Fonte: Arquivo do Jornal Aurora da Rua.

O narrador, nas seis primeiras linhas, descreve a figura de Elmário num estilo indireto em terceira pessoa. Quando a personagem fala, a partir das aspas, acontece uma polifonia de vozes dentro do mesmo discurso: o sentimento de exclusão (“A sensação de ser discriminado é muito ruim”), realizado pelas pessoas que compõem a sociedade; a mudança a partir da venda do jornal (“Gosto de lembrar a reviravolta que aconteceu em minha vida”); encontro com pessoas que o valorizaram (“Comecei a ver que me olhavam de um jeito novo...”). Essas vozes independentes e imiscíveis compõem uma heterogeneidade constitutiva dentro do discurso do ex-morador de rua, capaz de sedimentar as raízes de uma identidade e poder deste homem excluído perante a sociedade. O jornal passa a ter um papel de reconstrução psicossocial do morador de rua mais do que as políticas públicas de acesso à moradia e ao trabalho.

O personagem, morador de rua, assume diferentes posições-sujeito (trabalhador e vendedor do jornal) que dão acesso a uma complexidade de saberes ao tempo em que se vincula a diferentes formações discursivas que legitimam aquilo que diz. Assume a modalidade de bom sujeito, porque reconhece a importância do jornal na sua vida, o que significa total assujeitamento à formação ideológica do Jornal Aurora da Rua. A atitude do narrador, que não é morador de rua, não é neutra, pois, ao realçar o projeto positivo de vida de Elmário, age como se falasse pelo jornal, tal é a sua identidade ao discurso do tabloide (“A mensagem do Aurora da Rua é esta”). Esta representação do jornal sobre o homem em situação de rua em oposição à representação da sociedade como um todo é carnavalesca, porque é um ponto de vista de baixo para cima, construído a partir do povo excluído com liberdade, ousadia, autonomia, apontando a possibilidade de vida outra que não é a vida eterna, mas a vida em comum com todos os homens.

A memória discursiva faz funcionar o interdiscurso no nível da formulação (intradiscurso), porque o vendedor se satisfaz ao resgatar as boas lembranças que lhe trazem prazer e esquecer o recalque no inconsciente (“Nem gosto de lembrar o tempo em que morei na rua. A sensação de ser discriminado é muito ruim”), para constituir-se como sujeito do seu dizer. Mesmo se achando livre, não percebe que seu testemunho como a sua roupa, boné, crachá se enquadram numa subordinação discursiva institucional.

Outra história impressionante está no relato de Elisabete, ex-moradora de rua que trabalha no projeto Levanta e anda com carteira assinada, mas continua vendendo o jornal nas escolas ou faculdades.

Na opinião de quem experimenta a dura vida das ruas, a sociedade muitas vezes marginaliza a pessoa que está nesta condição porque enxerga o morador de rua como coitado, inapto, fora do contexto do que é considerado “sucesso” na vida. “Quando, através do jornal, e, principalmente, das nossas atitudes, mostramos que não é assim, eles começam a nos ver diferentes”, opina Elisabete. Bete, como é mais conhecida, vendia em praças, escolas e igrejas. “No começo era difícil, mas sempre estava firme, com um sorriso no rosto, acho que isto, a princípio, cativou meus clientes. Depois de um tempo, as pessoas se aproximavam. Cansei de receber convites para almoçar. Muitos ficavam preocupados quando me viam ali, em pleno meio-dia, vendendo e me perguntavam se eu já tinha almoçado”, lembra.

Bete conta que, quando vendia em uma igreja tinha um senhor que sempre comprava o jornal. “Percebi que ele andava com dificuldade, fiquei preocupada. Comecei a ajudá-lo a atravessar a rua. Era bem idoso. Algumas vezes eu o acompanhei até seu apartamento, com receio de deixa-lo sozinho na rua. Conquistei a confiança do filho dele que ficou surpreso pela minha preocupação. Eu me sentia útil. Mas, acredito que o Aurora da Rua foi nosso ponto de começo, a mensagem que o jornal passa muda o olhar das pessoas

com relação a quem vive na rua. Nos mostra mais humanos e capazes”, reflete. (ANEXO J –TRANSFORMAÇÃO, DIGNIDADE E RESPEITO, 2013, p. 5).

O texto acima apresenta tanto a dialogia como a heterogeneidade discursiva mostrada marcada no uso do estilo indireto (narrador) e do estilo direto (a personagem). As vozes são múltiplas na fala de Bete, pois estão presentes a sociedade, as pessoas comuns, o velho e o filho, sem falar do jornal (“o Aurora da Rua foi nosso ponto de começo”). Esses dados comprovam que a formação imaginária do homem de rua não é homogênea como pensa a sociedade; ao contrário, ela é feita de heterogeneidades variadas.

“Percebi que ele andava com dificuldades, fiquei preocupada”. Nesse enunciado, a Bete deixou-se inocular pelos sentidos emanados da imagem do outro (alter, alteridade); ela se alterou como o senhor de idade. A dialogia não é diálogo, mas essa alteração feita pela palavra ou pela imagem. A interpelação da Bete como sujeito não decorre diretamente da interação em si, mas do desejo de ser aceita pelo outro, o que significaria o outro aceitar ser ajudado por uma vendedora, já que havia um recalque lá no inconsciente de humilhação e de sofrimento por ser moradora de rua, como também da subordinação à formação discursiva em que está inscrita como vendedora do Jornal Aurora da Rua, que a educa para o acolhimento do outro, não importa a condição social. A construção da identidade não está num constructo subjetivo, de potencialidade individual, mas na existência do outro que podia ser o jornal, o velho, o eventual leitor, o que significa visibilidade social e humana (“Eu me sentia útil”).

O próprio jornal faz esta pergunta na forma de um subtítulo: Quem nos mostra mais humanos e capazes? A inferência da resposta é do leitor: o jornal ou a oportunidade de, vendendo o jornal, construindo seu discurso, encontrar pessoas que, com suas palavras, possam modificar nossas vidas? Com isso, o morador de rua passa a gostar mais de si mesmo, porque o outro passou a considerá-lo importante pela sedução da palavra em suas diversas modalidades discursivas. Neste sentido, a Análise do Discurso como disciplina de interpretação busca valorizar-se ao se debruçar sobre os discursos do cotidiano.