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A expressão formação discursiva foi usada por Foucault ([1969]2005) em seu livro

Arqueologia do saber, pelo qual a subjetividade do sujeito não estaria na consciência de si,

nem na imanência da língua, mas na regularidade de enunciados (ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), compreendendo um mesmo sistema de dispersão, de conceitos, de escolhas temáticas. Preferiu essa denominação a outras, como ciência ou ideologia, ou teoria ou domínio de objetividade.

Chamaremos de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidades de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva. (FOUCAULT, [1969]2005, p. 43).

Para Foucault ([1969]2005), a formação discursiva é considerada como um conjunto de enunciados que não se reduzem a objetos linguísticos, a exemplo de frases, proposições ou atos de fala, mas organizados com uma mesma regularidade e dispersão na forma de uma ideologia, teoria ou ciência. A regularidade num discurso clínico não seria a linearidade formal, sintática ou semântica; ao contrário, seria a “[...] diversidade de instâncias

5 No Seminário de Estudos em Análise do Discurso (UFRGS), em 2011, Phellipe Marcel da Silva Esteves

apresentou um trabalho – “A viabilidade de um conceito de Formação Cultural”, que foi publicado, em 2013, no livro O acontecimento do discurso no Brasil, organizado por Freda Indusky, Maria Cristina Leandro Ferreira e Solange Mittmann.

enunciativas simultâneas: protocolo de experiências, regulamentos administrativos, políticas de saúde pública, etc.” (BARONAS, 2011, p. 201).

O conceito de formação discursiva, de Pêcheux, nasceu no ventre do marxismo/ althusserianismo, inicialmente com Haroche e Henry, no artigo “La Sémantique et la Coupure saussurienne: langue, langage, discours” (1971) e, depois, no livro Semântica e Discurso (1975):

Chamaremos formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) (PÊCHEUX, [1975]2009, p. 147).

Este conceito decorre do todo complexo das formações ideológicas, porque o sentido de uma palavra não está em si (literalidade), mas nas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas ou reproduzidas. “[...] as palavras, posições etc. mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as emprega, o quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...]” (PÊCHEUX, [1975]2009, p. 146).

Outra implicação decorre desse posicionamento, pois toda formação discursiva dissimula, “[...] pela transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas definido mais acima”, conclui Pêcheux ([1975]2009, p.150). Esse complexo com dominante é o interdiscurso como algo fala (ça parle) sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas. Dois elementos do interdiscurso: o pré-construído e a articulação surgem, repelindo as ilusões idealistas e determinando o sujeito, impondo-dissimulando-lhe seu assujeitamento sob a aparência de autonomia, isto é, através da estrutura discursiva da forma-sujeito (PÊCHEUX, [1975]2009).

Na relação entre o interdiscurso de uma formação discursiva e o intradiscurso de uma sequência discursiva produzida por um sujeito enunciador a partir de um lugar inscrito em uma relação de lugares no interior desta formação discursiva é que se devem situar os processos pelos quais o sujeito falante é interpelado-assujeitado como sujeito do seu discurso. O interdiscurso funciona como um discurso transverso a partir do qual “o enunciador

constrói naquilo que diz os fios do seu discurso, enquanto o intradiscurso de uma sequência discursiva aparece como efeito do interdiscurso sobre si próprio” (COURTINE, [1981]2009, p. 75).

Na década de 80, quem mais renovou o conceito de formação discursiva foi Courtine ([1981]2009) quando resgata o pensamento de Foucault, substituindo o terreno da ideologia para ingressar no terreno dos saberes discursivos, como acontece no livro A Arqueologia do

Saber. Se, no primeiro momento, o conceito de formação discursiva era visto como exterior

discursivo, uma posição ideológica que determina os dizeres do sujeito, mas, num segundo momento, significa, por conta da heterogeneidade discursiva, deslocamentos dos sujeitos de sua passagem de um lugar enunciativo para outro, em que não há mais lugar para limites fechados, mas para a inscrição de diversas formações discursivas “como uma fronteira que se desloca” (COURTINE, [1981]2009, p.100) em razão dos jogos da luta ideológica, nas transformações da conjuntura histórica de uma dada formação social.

Outra importante contribuição foi a conceituação de memória discursiva que diz respeito à “[...] existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos” (grifos acrescidos) (COURTINE, [1981]2009, p.55). Toda formulação de uma sequência discursiva, por efeito de memória, apresenta em seu domínio associado outras formulações que ela repete, refuta, transforma, denega ou esquece. A relação entre o interdiscurso e o intradiscurso representa, neste particular, um efeito discursivo em que uma formulação de origem (memória) retorna na atualidade de uma conjuntura discursiva (acontecimento), o que se designa por “efeito de memória” (COURTINE, [1981]2009, p. 106).

Segundo Pêcheux ([1975]2009, p.147), “[...] são formações discursivas que, em uma formação ideológica específica e levando em conta uma relação de classe, determinam ‘o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura dada”. Para Orlandi ([1999]2003, p. 43), a noção de formação discursiva, ainda que polêmica, é importante na Análise do Discurso por permitir compreender o “[...] processo de produção de sentidos, a sua relação com a ideologia e dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento discursivo”.

Esse conceito nos permite pensar que as palavras não possuem sentido nelas mesmas, derivam seus sentidos de formações discursivas em que se inscrevem. Elas, as formações discursivas, representam, no discurso, as formações ideológicas. “As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso se delineia na

relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória” (ORLANDI, [1999]2003, p. 43).

O conceito de formação discursiva sofre uma reconstrução teórica com o próprio Pêcheux ([1971]1990, p.110) quando, em Remontons de Foucault a Spinoza, descobre que “Deus não tem nenhum estilo próprio: pela boca dos profetas ele fala de modo diferente da mesma coisa; ele pode também designar coisas diferentes através das mesmas palavras”. Ora, o dispositivo analítico da Análise do Discurso não poderia ficar restrito ao discurso político (língua dura), baseado nos princípios leninistas dos complexos codominantes, da divisão de dois mundos em um só, pois sopravam outros ventos como o discurso da mídia, da publicidade (línguas de vento). As relações sociais no mundo se tornaram complexas: os mundos são mais do que dois. Entre as classes sociais, existem muitos extratos de classes com suas questões identitárias de gênero, etnia, religiosidade, etc., que envolvem processos de identificação ideológica. E, assim, reconhece que não mais do que a formação ideológica, a formação discursiva não pode ser pensada como um bloco homogêneo. Ela é dividida, não idêntica a si mesma. Na concepção tradicional, colocava-se a ideologia dominante e a ideologia dominada, Pêcheux descobre, então, a importância de acentuar a dominação interna da ideologia dominante em face da ideologia dominada (MALDIDIER, 2003).

A afinidade desta pesquisa com o arcabouço teórico da Análise do Discurso pêcheutiana ocorre na identificação com este momento de reconstrução da teoria em que predomina a heterogeneidade discursiva. Segundo Maldidier ([1993]2011, p.57), surge uma nova formulação, opondo os universos discursivos logicamente estabilizados, típicos da matemática, das tecnologias, dos dispositivos de gestão “[...] aos universos discursivos não estabilizados logicamente do espaço sócio-histórico” como o discurso das ideologias dominadas, a ruminação dos discursos cotidianos, o conversacional e o carnavalesco. Trabalhar com uma mídia alternativa, que retrata a problemática dos moradores de rua, significa seguir essa proposta pêcheutiana.

Não se imagina hoje algum analista que queira trabalhar com uma formação discursiva homogênea e fechada, pois as dificuldades são inúmeras. No momento em que há o encontro entre o sujeito, história e linguagem, vai ser possível estabelecer as diferentes posições-sujeito e inscrevê-las no interior de uma ou mais formações discursivas. Portanto, esse conceito não deve ser tratado como uma maquinaria discursiva, mas como uma noção em transformação, aberta a deslocamentos teóricos e empíricos, capazes de avançar a teoria materialista do discurso, estando sempre atento a que não há ritual sem falhas (INDURSKY, 2011).