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3.2 OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O RESGATE DA CIDADANIA

3.2.2 Comunidades Eclesiais de Base: Papel da Igreja

A abordagem sobre as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) se torna importante porque ajuda a compreender também a forma como a Comunidade da Trindade se organiza e exerce uma prática discursiva religiosa. Embora o jornal se distancie do discurso religioso, o intento de colocar o morador de rua como protagonista de sua história advém não só da formação ideológica do cinismo, como também das Comunidades Eclesiais de Base que faziam a opção pelos pobres e usavam o marxismo como forma de entender a história.

Na busca pela autonomia, os movimentos sociais encontraram na Igreja Católica inspiração para a consecução dos seus objetivos no sentido de organização, de metodologia de ação, de participação e de comunicação horizontal. Antes, as pessoas tinham uma postura de participação passiva em que a comunicação era vertical, hierárquica, não havia a discussão, elas não se sentiam sujeitos de sua própria história.

O início dessa revolução começou com a convocação do Concílio Vaticano II (1965) pelo Papa João XXIII, que levou a Igreja a dialogar com a sociedade, a inserir-se na história dos homens, ao invés do isolacionismo quando só cuidava da espiritualidade. Através do documento: A Igreja e o mundo moderno (Gaudium et Spes), o Vaticano II incorpora a análise sociológica, as teorias de modernização e de desenvolvimento como forma de inserir os cristãos nas alegrias ou tristezas dos homens, sobretudo dos pobres e daqueles que sofrem. Se os países ricos viviam o otimismo, o Terceiro Mundo, incluindo aí a América Latina, o povo vivia em total pobreza, daí o desafio: como evangelizar um povo iletrado, politicamente impotente e submisso às forças estruturais do capitalismo selvagem e das ditaduras militares?

Nesse contexto, surge a Teologia da Libertação, cujo mentor foi o Gustavo Gutiérrez, em julho de 1968, pouco antes da conferência de Medellín, em oposição a outras teologias, sobretudo europeias (teologia secular, teologia da revolução, teologia do desenvolvimento), que eram muito limitadas e reduzidas para compreender as realidades nacionais da América Latina. Os bispos de Medellín adotaram essa teologia como uma forma de se alcançar a libertação do povo, que vivia dominado pela pobreza e pela opressão de regimes políticos autoritários. E isso significava despertá-lo para uma conscientização da realidade objetiva, o que exigia “[...] sua participação na realização de mudança e no esforço comum para criar uma nova realidade” (PUNTEL,1994, p. 75), enfim, que “[...] possa tornar- se o verdadeiro agente de sua própria libertação” (PUNTEL, 1994, p. 78).

Antes, a forma de a Igreja considerar a pobreza era diferente, pois era vista como resultante de fracassos individuais, o que incentivava a caridade e os programas assistenciais

que, assim, se constituíam em processos de expiação de culpa. Com a nova orientação de Medellín, esse fenômeno social passa a ser encarado de outra perspectiva, como um problema estrutural, por isso eram necessárias as mudanças que livrassem o povo da dependência econômico-social e da opressão político-social. Onze anos mais tarde, na Conferência dos Bispos da Igreja Católica em Puebla, na Cidade do México, em 1979, os bispos radicalizam e orientam a Igreja a fazer uma opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Abraçaram a bandeira dos direitos humanos. Assim, a Igreja passou de uma Igreja hierárquica para uma Igreja-comunidade, já que os bispos aprovaram o movimento crescente das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). O povo deixava de ser mero espectador da mensagem cristã para assumir o papel ativo de participante ativo no processo de evangelização.

O suporte dessas mudanças que, nas próximas décadas, vai influenciar a dinâmica dos futuros movimentos sociais, pois tudo emanava da Teologia da Libertação que vinha como “[...] reflexão crítica sobre a ‘práxis histórica’, uma teologia de transformação da história da humanidade, com a finalidade de ‘construir uma nova sociedade, justa e fraternal’” (GUTIÉRREZ, [1996]2000, p.13). Prima pela ideia de libertação das pessoas oprimidas “[...] sublinhando o aspecto conflitual do processo econômico, social e político que as opõe às classes opressoras e às nações opulentas” (GUTIÉRREZ, [1996]2000, p. 15). Isso implica uma melhor “[...] compreensão da história, porquanto elas se tornam conscientes e assumem responsabilidade por seu próprio destino através da história, aspirando à transformação social” (GUTIÉRREZ, [1996]2000, p.16). E, nesse trabalho, foi importante a colaboração de Freire (1987) quando implementa uma nova forma de alfabetização, desprezando o modelo mecânico de aprendizagem e valorizando a consciência crítica, desenvolvendo uma pedagogia radical, unindo a esperança e a garra coletiva.

As CEBs, como são pequenos grupos integrados por leigos cristãos, orientados por fortes lideranças populares, exercem um papel fundamental na transformação social. Com o apoio da hierarquia da Igreja devido à falta de sacerdotes, marcam presença na zona rural ou nas periferias faveladas das grandes cidades. “São comunidades porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma Igreja e vivem na mesma região, o que permite se conhecerem pelo nome” (BETTO, 1986, p.100). Pela fé cristã, lutam e vivem em comum-união em torno de seus problemas de sobrevivência e de subsistência imediata como melhores salários, desemprego, moradia, falta de transporte, de saneamento básico, lutas por melhores condições de vida. São eclesiais porque constituem uma forma diferente de ser Igreja, não é uma etiqueta, mas a marca de uma identidade de grupo. Seus membros obedecem à hierarquia da Igreja e ela os reconhece em bloco. São de base porque reúnem os pobres e os marginalizados da sociedade

na América Latina, provêm de “[...] pessoas que trabalham com as mãos (classes populares): donas de casa, operários, desempregados, subempregados, aposentados, posseiros, assalariados agrícolas, pequenos proprietários, peões (na zona rural) (BETTO, 1986, p.100) ”.

O sistema de comunicação nas CEBs envolvia a participação de todos, usando o método: Ver – Julgar – Agir. Inicialmente, o ver compreenderia a discussão dos problemas que afligiam as comunidades como necessidade de emprego, melhores salários, transporte, moradia, serviços básicos: correio, água, esgoto além de problemas da zona rural como títulos de propriedades, cooperativas, etc. Os agentes de pastoral orientavam as discussões, chamando a atenção dos seus membros para as visões fatalistas da realidade, mas eles não tinham poder de decisão, porque só as pessoas daquela comunidade, após longas análises, podiam fechar uma discussão. Num segundo momento, o julgar significaria analisar o problema à luz do Evangelho, encontrando-se os pontos positivos ou negativos. “Por exemplo, se os membros são tratados de modo diferente na sociedade, por serem pobres, refletindo à luz dos ensinamentos bíblicos, perceberão sua dignidade como seres humanos” (PUNTEL, 1994, p. 234).

Após as reflexões éticas, unindo o concreto e o transcendental para o despertar das consciências, advém o agir, que significa uma variedade de formas de atuação como formas alternativas de mídia, cursos de aperfeiçoamento, projeto de ajuda a vizinhos, compromisso com todas as formas de movimentos populares: retirada de lixo, criação de centros infantis, canalização de água. Neste sentido, surge a comunicação alternativa através de textos escritos (jornais mimeografados), informando as pessoas sobre serviços ou lutas populares, contendo também orações, poesias, fábulas, relatos dos próprios membros da comunidade, contando um pouco de suas vidas, suas lutas por melhores condições de vida. Havia ainda uma variedade de jornais murais, cartazes, panfletos, desenhos, ilustrações, tudo feito pelas comunidades, refletindo o que elas pensavam e desejavam como o cerne de suas preocupações. É neste sentido que se enquadra o Jornal Aurora da Rua como resultado de uma experiência coletiva.