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A ordem à qual a atual formação docente tende a atender

No documento Por uma formação para a docência (páginas 157-161)

Ordem não é algo absoluto. Depende de que lado você analisa a situação – e, em geral, você pode escolher o lado. Subversão significa “[r]evolta contra uma autoridade, norma etc. [...] [d]errubada de coisas estabelecidas, estruturas, siste- mas etc.” (AULETE, 2007, p. 930); significa a invalidação da ordem vigente. Se, por exemplo, você é latifundiário, na segun- da metade do século XIX, no Brasil, a ordem é que o escravo é uma mercadoria e não tem direitos, nem deve ter. Nesse caso, a ordem (o normal e desejável) é haver escravos – explorados e de modo inumano, mas que a retórica do poder no período cuida para que isso não seja visto assim e que todo o esquema permaneça invisível para a maioria das pessoas. Mas, se você é abolicionista, a ordem deveria ser outra. E se você é escravo, a ordem deveria ser ainda outra.

Por trás de muitos de nossos discursos, enquanto educa- dores, está a esperança de que, pelo menos em alguma medida, a educação sirva também para o educando melhorar sua condi- ção social. É preciso ter claro, contudo, com qual inserção ou

6Muitos cientistas e educadores científicos dizem temer quando se faz esse

tipo de proposta, porque incentivará a anticiência, o irracionalismo, o niilis- mo. Ao contrário, será honesto e incitará a formação cidadã. Ao mesmo tempo em que se ensina um conteúdo, deve-se desconstruí-lo enquanto expressão da verdade absoluta. Um bem formado professor de ciências deveria, em

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“ascensão” social queremos contribuir. Como o linguista Marcos Bagno questiona com clareza: queremos

promover a ‘ascensão social’ para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal como ela se apresenta hoje? [– com suas profundas desigualdades, discriminações, injustiças e exclusões]? (BAGNO, 2015, p. 107, grifo do autor).

O cerne do problema, portanto, não é trabalhar pela “inserção” do aluno na sociedade, e sim em qual sociedade inseri-lo – uma sociedade a qual esse aluno logo deverá ajudar a construir. Deveríamos formá-lo para ele ter discernimento e competência para ajudar a mudá-la para melhor. Em suma, a sociedade (ou a ordem) não é um dado da natureza, nem criação divina; ela é feita por nós. O ponto é: mesmo quando nos omitimos, ela é feita por nós!

Para quem acredita, por exemplo, que a ciência: “é perfeita e pura, confiável e insubstituível” e “não tem limite de aplicação; tudo explica ou explicará”; e, consequentemente, também costuma acreditar que: “a ciência não sofre influên- cia social, nem política ou ideológica”; “a ciência nos conduz à verdade”; “a ciência é neutra, as pessoas é que não são” etc., nessa linha; então, é tudo progresso e felicidade (em algum futuro indefinido) e devemos continuar fazendo cada um sua parte o melhor possível, como nos ensinaram (a maioria dos) nossos pais e professores.

Contudo, quem acredita nesse tipo de coisa está sob influência da ideologia da certeza, mesmo sem ter consciência do fato. Isso é o que opinam, em particular, os educadores em matemática Marcelo C. Borba e Ole Skovsmose (2001), que compartilham minha crítica ao tipo de crenças que acabei de

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listar. Aliás, não vir à consciência, conseguir se manter invisível, é condição básica para o sucesso de qualquer ideologia.

O que ainda fornece certo alento é que também na educa- ção em áreas específicas do conhecimento, como as das ciências naturais, há muitas pessoas preocupadas em não usar tal ideo- logia para referendar um caminho civilizatório equivocado e um ensino alienante.

Na trilha da alienação, porém, ouve-se, com frequência, algo do tipo “se cada um cumprir seu papel, construiremos um mundo melhor”. Ora, isso não é verdade! Com efeito, dada a ideologia dominante, se fizermos como nos tem sido ensinado e cobrado “aquilo que se espera de nós”, é mais provável que estejamos ajudando a manter tudo como está!

Quem nos esclarece sobre isso é Pierre Bourdieu e Jean- Claude Passeron. Eles estudaram a escola básica na França do final da década de 1960 e concluíram: a escola reproduz a socie- dade. Mas a análise e as conclusões são atuais e se aplicam para outros níveis de ensino e para o Brasil. Amparados em pesquisas sociológicas, eles concluem que a escola contribui significati- vamente para a

reprodução da ordem estabelecida [...] a reprodução da cultu- ra dominante, e essa reprodução cultural reforça, como poder simbólico, a reprodução contínua das relações de força no seio da sociedade (BOURDIEU; PASSERON, 2011, quarta capa).

Ou ainda que “o sistema de ensino contribui para conser- var as estruturas sociais” (BOURDIEU; PASSERON, 2011).

No nosso caso, hoje, o Brasil tem a segunda pior distri- buição de renda do mundo (CORRÊA, 2013). Embora essa

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desigualdade fosse maior há quinze anos, permanecer ainda na segunda posição nesse quesito é significativo e vexatório. Mas qual a relação entre distribuição de renda e educação? Otaviano Helene (2013, p. 29) nos elucida:

Há dois processos relacionados à educação que contribuem fortemente para a reprodução futura da concentração de renda no Brasil: a renda das pessoas depende fortemente da quantidade e da qualidade da educação formal que recebe- ram; e, formando um círculo vicioso, a educação das crian- ças e dos jovens depende, também fortemente, de sua renda familiar. A combinação desses dois fatores faz com que nossa política educacional seja um dos principais fatores de concen- tração de renda e de reprodução de desigualdades.

Por um lado, distribuição de renda e distribuição de poder estão correlacionadas – e a escola é um elo chave na reprodução de ambas. Por outro lado, como as políticas educa- cionais afetam também os cursos de formação de professores, e elas ainda espelham uma visão de formação docente viciada pela mentalidade aqui criticada, então, inclusive esses cursos contribuem na perpetuação daquela ideologia e de injustiças e exclusões dela resultantes.

Se a ordem social, hoje, se ampara na ciência para se legitimar e se nós compramos o ideal iluminista do progresso (na verdade nunca alcançado como prometido) e acreditamos que uma hora ele tem que chegar e que, agora sim, com nosso trabalho dedicado, ele chegará... então estaremos prontos para reproduzir, sem saber, o que aí está, de bom e de ruim! E... não! Esse não é o preço que temos que pagar pelo viver.

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No documento Por uma formação para a docência (páginas 157-161)