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Licenciaturas Interdisciplinares: lições contemporâneas

No documento Por uma formação para a docência (páginas 87-96)

As discussões que envolvem as práticas pedagógicas e suas potencialidades para o sucesso do ensino e das aprendizagens escolares são antigas e recorrentes no campo da educação brasi- leira. A tônica no como fazer em detrimento do por que fazer e para quem fazer, contribuem para o aprofundamento das histó- ricas divisões entre teoria e prática, saberes e fazeres, formação específica e formação pedagógica, presentes na racionalidade das políticas curriculares que orientam os conhecimentos e as práticas pedagógicas nos cursos de formação de professores.

O modus operandi como os currículos são estruturados vem impondo uma lógica na qual primeiro se divide e depois busca-se estratégias didático-pedagógicas de integração. Legado positivista, cuja a ideia subjacente é a de que o todo é igual à soma das partes, e que insiste em se manter no campo da educação apesar das severas críticas que permeiam a literatura educacional por mais de 50 anos.

O reconhecimento paulatino de que “o todo não é a soma das partes” (POMBO, 2005, p. 6) vem ocupando a agenda de estudiosos e planejadores políticos, na busca por estratégias educacionais que permitam um duplo movimento: manter as contribuições das disciplinas e suas especializações e provocar conexões e interconexões entre elas como forma de compreen- der e responder a complexidade das relações sociais.

Na área educacional, estas questões contribuíram para dar centralidade ao currículo como lugar de análise, investiga- ção e, provável, aplicação de métodos que potencializem formas mais adequadas de compreender o emaranhado de saberes corporificados nas práticas sociais.

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Entre os diversos textos legais, decorrentes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394-96), provavelmente, sejam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (Parecer n. 7/2010), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), em substituição às dire- trizes anteriores por etapa e modalidade da educação básica, as que deem maior visibilidade ao campo do currículo, trazen- do como um dos objetivos:

[...] sistematizar os princípios e diretrizes gerais da Educação Básica contidos na Constituição, na LDB e demais disposi- tivos legais, traduzindo-os em orientações que contribuam para assegurar a formação básica comum nacional, tendo como foco os sujeitos que dão vida ao currículo e à escola (BRASIL, 2010a, p. 7).

Nas Novas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, o currículo é definido como

um conjunto de valores e práticas que proporcionam a produ- ção e a socialização de significados no espaço social e que contribuem, intensamente, para a construção de identidades sociais e culturais dos estudantes (BRASIL, 2010a, p. 27).

Embora seja assegurada a autonomia das escolas sobre a gestão curricular, as DCNs estimulam construções curriculares que contemplem abordagens metodológicas que ultrapassem a fragmentação e a desarticulação dos conhecimentos nos currí- culos, sublinhando que:

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Na organização e gestão do currículo, a abordagem, disci- plinar, pluridisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar requerem a atenção criteriosa da instituição escolar, porque revelam a visão de mundo que orienta as práticas pedagó- gicas dos educadores e organizam o trabalho do estudan- te. Perpassam todos os aspectos da organização escolar, desde o planejamento do trabalho pedagógico, a gestão administrativo-acadêmica, até a organização do tempo e do espaço físico e a seleção, disposição e utilização dos equipa- mentos e mobiliário da instituição, ou seja, todo o conjunto das atividades que se realizam no espaço escolar, em seus diferentes âmbitos (BRASIL, 2010a, p. 27-28).

O texto das DCNs aponta para uma concepção de “disci- plina” que ultrapassa a sua compreensão mais usual, que a iden- tifica como campos de saber trabalhados de forma autônoma e independente. Chama-nos a atenção para o fato de que, as escolhas de abordagens (disciplinar, pluridisciplinar, interdis- ciplinar e transdisciplinar) trazem consigo efeitos de poder que ultrapassam o “como” trabalhar os conhecimentos escolares nas salas de aulas (legado histórico da docência) para interfe- rirem na organização dos rituais escolares e de seus sujeitos.

No que diz respeito à noção de interdisciplinaridade, disseminada em diferentes momentos do documento, as DCNs entendem que esta “pressupõe a transferência de métodos de uma disciplina para outra” (BRASIL, 2010a, p. 28), afir- mando que, mantendo-se em substrato de matriz disciplinar, na “abordagem interdisciplinar ocorre a transversalidade do conhecimento constitutivo de diferentes disciplinas, por meio da ação didático-pedagógica mediada pela pedagogia dos projetos temáticos”.

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Já o conceito de transversalidade, nas DCNs, remete a

uma forma de organizar o trabalho didático-pedagógico em que temas, eixos temáticos são integrados às disciplinas, às áreas ditas convencionais de forma a estarem presentes em todas elas (BRASIL, 2010a, p. 29).

A diferença entre transversalidade e interdisciplinarida- de encontra-se assim explicitada no texto:

[...] ambas rejeitam a concepção de conhecimento que toma a realidade como algo estável, pronto e acabado. A primei- ra se refere à dimensão didático-pedagógica e a segunda, à abordagem epistemológica dos objetos de conhecimento. A transversalidade orienta para a necessidade de se instituir, na prática educativa, uma analogia entre aprender conheci- mentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a reali- dade) e as questões da vida real (aprender na realidade e da realidade). Dentro de uma compreensão interdisciplinar do conhecimento, a transversalidade tem significado, sendo uma proposta didática que possibilita o tratamento dos conheci- mentos escolares de forma integrada (BRASIL, 2013, p. 31).

Como orientação para uma gestão curricular que possi- bilite a concretização da interdisciplinaridade, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRASIL, 2010b) recorrem às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Resolução CNE/CEB nº 3/98, e Parecer CNE/CEB nº 15/98), nas quais a organização do currículo orienta-se pela divisão em áreas de conhecimento (Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências

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Humanas e suas Tecnologias), potencializando a construção de diferentes arquiteturas curriculares.

A leitura destes documentos evidencia suas inegáveis contribuições para o campo educacional, em particular, para o aprofundamento da noção de interdisciplinaridade, espe- cialmente se comparados, por exemplo, com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena (PARECER CNE/CP 9/2001), em que a interdis- ciplinaridade é vista apenas como uma forma operacional de ultrapassar a fragmentação presente nos currículos de forma- ção de professores dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, decorrentes, segundo o texto formal, pela “força da organização disciplinar presente nos currículos escolares, predomina uma visão excessivamente fragmentada do conhe- cimento” (BRASIL, 2002, p. 27).

No Congresso Luso-Brasileiro sobre Epistemologia e Interdisciplinaridade na Pós-graduação realizado em Porto Alegre, em junho de 2004, Olga Pombo proferiu uma conferência intitulada “Interdisciplinaridade e integração dos saberes”, na qual argumenta que a interdisciplinaridade, pluridisciplinari- dade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade compõem uma família, mantidas pela disciplina enquanto raiz principal. Segundo o entendimento da autora, as delimitações entre estas noções “não estão estabelecidas, nem para aqueles que as usam, nem para aqueles que as estudam, nem para aqueles que as procuram definir” (POMBO, 2005, p. 4). Porém, compactuam entre si a “tentativa de romperem com o caráter estanque das disciplinas” (POMBO, 2005, p. 4).

Pombo (2005, p. 5) defende a ideia de que os movimentos de rupturas com as disciplinas acontecem em diferentes níveis,

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em diferentes graus. O primeiro nível é o da “justaposição, do paralelismo, em que as várias disciplinas estão lá, simplesmente ao lado umas das outras, que se tocam, mas que não intera- gem”. Num segundo nível, “as disciplinas comunicam-se entre si, dialogam”, e

estabelecem entre si uma interação mais ou menos forte” e, no terceiro nível, as disciplinas “ultrapassam as barreiras que as afastavam, fundem-se numa outra coisa que as transcende a todas.

Entre a simples “justaposição” (que seria uma forma muito pequena de promoção da interdisciplinaridade) e a “fusão” (que descaracterizaria a interdisciplinaridade), Pombo (2005, p. 6) localiza a interdisciplinaridade como o “espaço inter- médio, a posição intercalar. O sufixo inter estaria lá justamente para apontar essa situação”. Seguindo os argumentos desen- volvidos pela autora, a noção de interdisciplinaridade emerge como manifestação de uma transformação epistemológica em curso diretamente relacionada com os redimensionamentos sofridos pelo conceito de ciência.

Modificações estas que, dada a profundidade e extensão, dificultam o estabelecimento de fronteiras entre os diferen- tes campos de conhecimento (arte, economia, humanidades e outros) e a ciência. Surgem, então, em decorrência desta situa- ção, novos campos de saber, “novas disciplinas”, que já trazem em sua emergência, a interdisciplinaridade. Duas consequên- cias importantes são apontadas: “o alargamento do conceito de ciência e a necessidade de reorganização das estruturas da aprendizagem das ciências, nomeadamente, a universidade” (POMBO, 2005, p. 11).

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Aqui, “puxando a brasa para a minha sardinha”, posso dizer (de forma aliviada) que integro o quadro de professores de uma universidade que, na recusa ao modelo napoleônico, nasce

alicerçada na solidariedade e no compartilhamento de conhe- cimentos, habilidades, desejos, impasses e utopias que, em suma, constituem a riqueza imaterial e material que chama- mos de saberes ou espírito de uma época (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2014, p. 6).

Seus princípios político-institucionais evidenciam sua contemporaneidade e responsabilidade social:

Eficiência acadêmica, com uso otimizado de recursos públicos; compromisso inegociável com a sustentabilidade; ampliação do acesso à educação como forma de desenvolvi- mento social da região; flexibilidade e criatividade pedagó- gica, com diversidade metodológica e de áreas de formação; interface sistêmica com a Educação Básica; articulação interinstitucional na oferta de educação superior pública na região e promoção da mobilidade nacional e internacional de sua comunidade (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2014, p. 6).

É bem verdade que fazer parte de uma universidade de vanguarda potencializa diálogos interdisciplinares, favorece a criatividade, a invenção, a inovação, mas não ameniza (nem poderia) as vertigens contemporâneas produzidas por um tempo que nos leva à

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experiência do estranhamento, do perder-se de si mesmo, do mergulho na multiplicidade, longe de hierarquias, certezas, controles; abrir-se para as delícias do desconhecido, ter a coragem de ousar (GALLO, 2007, p. 43).

E, se as marcas do nosso tempo nos tiram o sossego, as marcas deixadas pela história da educação em nossa sociedade são, no mínimo, perturbadoras. No que se refere à formação de professores, podemos dizer que, pouco avançamos desde as denúncias publicadas pelos pioneiros da educação nova e repe- tidas, muitas vezes, por Anísio Teixeira, no percurso da histó- ria: “o problema da formação do magistério faz-se o problema máximo da educação brasileira” (TEIXEIRA, 1996, p. 278). Faz-se necessária uma “reformulação integral dos moldes e padrões da formação do magistério” como possibilidade de correção e reconstrução de um novo modelo” (TEIXEIRA, 1996, p. 283).

De lá para cá, embora tenhamos avançado em muitas dimensões da educação brasileira, a centralidade do proble- ma, apontada por Anísio Teixeira, se mantém e adquire contornos cada vez mais relevantes. Os dados divulgados pelo Censo da Educação Superior 2013 mostram que o Brasil tem 382.433 professores atuantes na docência sem formação adequada, 176.289 com graduação, mas sem complementação pedagógica (CP) e 3.584 sem ensino médio (EM). Entre as regiões brasileiras, o nordeste é a região que possui um quantitativo mais expressivo de professores(as) que não atendem às exigên- cias colocadas pela LDB (Lei 9.394\96) e pelo Plano Nacional de Educação – PNE – (Lei 13.005/2014).

Neste cenário, o referido censo revela ainda que, no biênio 2012-2013, a matrícula no ensino superior cresceu 5,4% nos cursos tecnológicos, 4,4% nos cursos de bacharelado, e,

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apenas, 0,6% nos cursos de licenciatura. Sendo que os cursos de bacharelado têm uma participação de 67,5% na matrícula, os tecnológicos participam com 18,9% e as licenciaturas com 13,7%. Para além da drástica redução, acentuada nos últimos 4 anos na procura pelos cursos de licenciaturas, os altos índices de evasão são reveladores: 48% dos alunos de licenciatura não chegam a se formar, o que demonstra além da falta de moti- vação para perseguir investindo em uma carreira com baixos salários, com precárias condições de trabalho e que não conta com prestígio social. Além disso, existe um desencanto por parte dos estudantes com os cenários formativos oferecidos pelos cursos de licenciaturas.

Em que pesem as contribuições dos atuais textos legais e a relevância das experiências pioneiras apresentadas pelas licen- ciaturas interdisciplinares, já em curso, o fato é que a grande maioria das licenciaturas não conseguiu superar as clivagens, historicamente constituídas, pela permanente desarticula- ção entre teoria e prática, pela ausência de interação entre os componentes curriculares da chamada “área específica” e os “da área pedagógica”, pela manutenção da hierarquia que assumiram os cursos de bacharelados em relação aos cursos de licenciaturas.

Diante deste quadro, retomo aqui a questão-desafio que orientou este ensaio: que lições podem ser extraídas da traje- tória percorrida pelos cursos de formação de professores para a educação básica que contribuam para orientar e qualificar as (novas) propostas de Cursos de Licenciaturas Interdisciplinares? Para quê? Quais sentidos?

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