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Por um ensino de História humanizador e cidadão

No documento Por uma formação para a docência (páginas 41-44)

Se, como acredito, não há tanta divergência em termos teórico-metodológicos, no que diz respeito à análise de conjun- tura e ao exame da experiência brasileira na duração secular (os elementos circunstanciais – tempo, espaço, sujeitos – nos quais e por causa dos quais foram construídas e até agora são justificadas as proposições), o conflito pode aflorar. Mas vamos adiante, reiterando que as escolhas, comunicadas nos dois argu- mentos que se seguem, são estritamente pessoais.

Por que devemos possuir uma “nova” BNCC?

Em primeiro lugar, penso que as dimensões continen-

tais e populacionais do Brasil exigem uma política de Estado centralizada em relação ao currículo prescrito que ocupa, ao menos, dois terços do tempo escolar. Ela é necessária, se

não quisermos migrar, efetivamente, para o equivocado modelo estadunidense, no qual cada membro da federação faz o seu programa. Em nome de uma liberdade constitucional para a formação de pessoas – plenamente justificada pelo processo de constituição dos EUA (um conjunto de comunidades e corpora- ções de origens e interesses os mais diversos) – a própria ideia que sustenta o liberal direito de igualdade (a educação pela

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tolerância traduzida, em parte, por uma das noções de multicul- turalismo) encontra resistência em estados mais conservadores em termos de valores que justificam determinadas práticas reli- giosas e/ou econômicas. Mesmo nos estados em que os direitos civis são enfatizados, grande parte das iniciativas é emprega- da (usando as expressões de Apple e Buras) para “disciplinar a diversidade”, para implantar um “multiculturalismo de direita” ou para transformar “grupos fundamentalistas religiosos”, por exemplo, em “excluídos”.

A resultante desse modelo de política pública para os currículos – a criação de vários graus de cidadania estaduni- dense naquele país – talvez não represente um grande proble- ma para grande parte dos nascidos em solo dos EUA porque esse país é a maior potência militar e econômica (e ainda polí- tica) do mundo. Esse caráter de potência acaba por proteger, de alguma forma, o emprego e a autoestima, por exemplo, dos seus mais precarizados cidadãos. Em suma, os efeitos da política externa, além do próprio excepcionalismo dominan- te, podem compensar, em parte, as fragilidades de políticas internas (sobretudo, educacionais).

Esse, infelizmente, não é o caso do Brasil e dos brasilei- ros. Entretanto, com toda certeza, podemos afirmar que o Brasil não é uma federação ao modo estadunidense, principalmente por causa da “concorrência de legitimidade” entre os poderes executivo e legislativo – o poder obtido nas urnas pelo presidente e pelos congressistas (MARTINS, 2006). Contudo, o não ser uma “federação de verdade”, nesse caso, opera ao nosso favor quando tratamos de currículo nacional para o ensino de História.

Em busca da defesa do Estado como formulador de polí- ticas públicas nacionais para o currículo de história, também cito o modelo francês. Evidentemente, ele já é centralizado, e

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há muitas décadas, para não dizer séculos. Nessa direção, abro a guarda para a crítica. Se a centralização é benéfica para a manutenção de princípios de igualdade e de liberdade, por que esse modelo sofre tantas críticas na terra de Marianne?

A resposta também pode estar nas singularidades do contingente populacional. A França adotou como cidadãos milhões de ex-colonizados ao longo dos últimos cinquenta anos. Alguns são franceses por identidade de valores, sentimentos de pertença etc. Mas outros milhares, que não param de chegar, querem ser cidadãos franceses por razões de sobrevivência. Eles vão ocupando as escolas das periferias das grandes cidades, sobretudo de Paris, mantendo, entretanto, suas identidades sociais turcas, marroquinas, argelinas, iranianas, entre outras. Evidentemente, não há como conciliar os direitos de liber- dade e igualdade com essa situação. Não sem razão, crescem as propostas de limitar a imigração. Não sem razão, crescem os conflitos entre os que querem fazer respeitar as diferenças culturais (judeus, islâmicos, indianos etc.) nas escolas e aqueles que se aferram ao ideal universalista e/ou cosmopolita inaugura- do por alguns filósofos contemporâneos da Revolução Francesa.

No Brasil, não ocorre esse problema. Os grandes movi- mentos imigratórios cessaram há mais de um século. Guineanos, sudaneses, japoneses, italianos, armênios, turcos, libaneses, israelenses, alemães e até povos que não constituem mais nação na Europa, a exemplo dos pomerâneos do Espírito Santo – por motivos diversos (uns nem tanto morais, aos olhos de hoje, como a proibição do funcionamento das escolas bilíngues no Estado Novo) – não resistem à aprendizagem de representações de um passado brasileiro, individual ou coletivo. O nosso princi- pal problema com a diversidade é a reparação das desigualdades sociais dos que estão neste país, há séculos. Uma reparação

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subrepticiamente prometida, com a instauração da República e não cumprida nos cem anos subsequentes (somente após a Constituição de 1988 essa situação começa a mudar).

Por isso, a centralização de políticas para o ensino de história no âmbito federal, a meu ver, não sofreria, na mesma dimensão, os percalços que o modo de produzir currículos na França enfrenta atualmente. Em outras palavras, não é o enrai- zamento de dois milhões e meio de africanos entre Recife, Bahia e Rio de Janeiro (e de dezenas de milhões de afrodescendentes em todo o país), nem o súbito crescimento da população indí- gena (que pode estar voltando à casa do milhão), tampouco a instituição de uma comunidade de centenas de milhares de japoneses em São Paulo ou a recente adoção de milhares de haitianos como cidadãos brasileiros, por exemplo, que podem impossibilitar a aplicação de uma política curricular nacio- nal de História para um país com cerca de duzentos milhões de habitantes. É difícil encontrar algum desses sujeitos que tenham a predisposição de afirmar que não querem estudar as representações sobre o tempo vivido no Brasil.

A oportunidade e emergência

No documento Por uma formação para a docência (páginas 41-44)