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A origem do Direito Penal Econômico: fundamentos históricos, políticos e

3 A CONSTITUIÇÃO COMO ACOPLAMENTO ESTRUTURAL ENTRE OS

4.1 O Direito Penal Econômico como subsistema funcional

4.1.2 Existe um subsistema penal econômico?

4.1.2.1 A origem do Direito Penal Econômico: fundamentos históricos, políticos e

O Direito Penal Econômico é fruto das mudanças político-econômicas do início do século XX. Magalhães (2010) afirma se ter dado o seu surgimento somente na década de 30, quando houve uma proliferação da atividade legislativa e reguladora da intervenção do Estado no campo econômico.

Até então, o ideal liberal desenhava os contornos do Direito Penal, não havendo cenário favorável a que surgisse o Direito Penal Econômico. Para entender o porquê disso, é preciso compreender que o liberalismo, como ideal político e econômico, surgiu em reação ao Estado absolutista.

O feudalismo foi o sistema econômico que predominou do século IV até pouco depois do século X. Nesse período, o poder político estava diluído nas mãos dos senhores feudais. Poder concentrado, somente o eclesiástico (GUARAGNI, 2009). A superação do feudalismo representou um notável avanço econômico, uma vez que o sistema de servidão feudal tem sido associado na história a técnicas de produção de baixo nível, com instrumentos simples e baratos, com divisão do trabalho e coordenação dos indivíduos em nível bem primitivo de

desenvolvimento (DOBB, 1987). O aperfeiçoamento das técnicas de cultivo aumentou a produção, impulsionando o comércio para além dos feudos. A nova economia do período pré- clássico pode ser dividida em duas partes:

A primeira, [...] representa o reflexo ideológico do nascimento do capitalismo comercial e é geralmente conhecida pelo nome de ‘mercantilismo’. Na segunda, que acompanha a expansão do capital industrial de fins do século XVII e princípios do século XVIII, estão os verdadeiros fundadores da ciência da economia política. (ROLL, 1977, p. 38)

O mercantilismo, conseqüência das descobertas marítimas do século XVI, aliado à idéia de um Estado monárquico poderoso, defendia o fortalecimento deste por meio da expansão comercial, da posse de materiais preciosos, que garantissem um Estado que se impusesse entre as demais nações (FEITOSA, 2009). Era o Estado Totalitário, absolutista.

O Estado Totalitário caracteriza-se por absorver no seu seio todas as manifestações da vida social e, até mesmo, individual. Nada lhe é estranho. Em tudo se imiscui. Desde o poder político até o econômico e o social, passando pelo exercício das profissões, pela adoção da religião, pelo desenvolvimento cultual e artístico, pela vida familiar, pela organização do lazer do indivíduo e dos seus gostos e preferências em matéria de moda, nada refoge à sua competência. (BASTOS, 1995, p. 66).

Dallari (2007, p. 278) afirma ter o Estado Moderno nascido absolutista e, por muito tempo, “os defeitos e virtudes do monarca absoluto foram confundidos com as qualidades do Estado.”

Este modelo de Estado, absoluto e teocêntrico, começou a ser questionado com o Renascimento, cujo paradigma era o homem, e não Deus. O homem passa a ser o centro da racionalidade, empenhando-se em se livrar do misticismo e compreender as leis da natureza, bem como submetê-las à vontade humana. Esse quadro proporciona o advento do iluminismo, em que o valor do homem é sobrelevado por ser um ser pensante e, dominando e explicando as leis da natureza, fugindo das explicações da metafísica, invoca a condição de não ser mais objeto, mas sujeito do poder do Estado (GUARAGNI, 2009).

O poder estatal absoluto dá, então, lugar a um novo tipo de Estado, o liberal, que priorizava a liberdade, especialmente a de acumular riquezas (GUARAGNI, 2009). O modelo liberal de Estado é essencialmente oposto ao Estado Totalitário, pois é eminentemente assegurador da liberdade econômica, da iniciativa privada (BASTOS, 1995).

No modelo liberal, pouco se espera do Estado. Basicamente, incumbe ao Estado a defesa contra ameaças externas, a boa convivência interna, assegurada pela polícia e o

Judiciário. O restante, educação, saúde, seguridade social, a própria atividade civil, conforme as leis do mercado, seria naturalmente obtido. O Estado é um mal necessário (BASTOS, 1995).

O Estado existia, nesse contexto, para proteger os interesses individuais. O Direito Penal, nesse cenário, não teria como oferecer proteção diversa, voltando-se, então para a proteção de bens individuais, cuja violação consistia em rompimento do contrato social. Além da vida, da honra, e de outros bens individuais protegidos, o direito penal tutelava com especial atenção o patrimônio, bem jurídico caro à burguesia dominante (GUARAGNI, 2009). A crítica ao modelo liberal foi contundente, em razão das profundas desigualdades sociais que ele proporcionara, especialmente pelo marxismo, que pregava a eliminação da “mais-valia”, decorrente da exploração da força de trabalho. No início do século XX, o discurso era o da necessidade de um Estado forte e interventor (GUARAGNI, 2009).

O modelo liberal de liberdade, individualista, impediu o Estado de dar proteção aos desfavorecidos economicamente, o que causou crescente injustiça social. A burguesia não admitia que o Estado interferisse para corrigir as injustiças, pois isso implicaria modificações das situações que lhes conferiam crescimento financeiro (DALLARI, 2007).

Até então, não se podia identificar um direito penal econômico, ao menos com os contornos atuais, antes do fim do século XIX, ápice da ideologia liberal-burguesa, que se sustentava no individualismo. O modelo jurídico que lhe dava amparo não poderia ter outra feição, senão a de proteção de direitos individuais. Não havia cenário político, social, ideológico e jurídico para a proteção de direitos meta-individuais. O momento histórico do individualismo se refletia sobre o direito penal e o direito civil (GUARAGNI, 2009).

Como reação às injustiças causadas pela sua ausência, no início do século XX o Estado passou a compreender sua obrigação de agir positivamente no campo dos direitos sociais, através de políticas públicas, da distribuição da renda e da estruturação de uma política de investimentos (FEITOSA, 2009).

O que levou o Estado a assumir responsabilidades que, antes, pareciam tão bem administradas pelos particulares? Para Bastos (1995) a principal causa, mas não a única, foi a ocorrência das crises econômicas do início do século XX, que provocaram recessão, aumentaram consideravelmente o desemprego, deixando exposta a ineficiência da auto- regulação do mercado em promover o desenvolvimento da riqueza nacional.

Nesse contexto, os direitos privados de liberdade (propriedade privada, liberdade de iniciativa e liberdade de contratar) somente seriam garantidos com justiça social.

Em suma, pela primeira vez, foi criado um dever-ser constitucional da ordem econômica. (FEITOSA, 2009, p. 88).

Em um primeiro momento, o Estado assumiu um papel apenas regulador, por meio de normas disciplinares das condutas dos agentes econômicos. Em um segundo momento, passou a intervir mais diretamente no domínio econômico, protagonizando a própria atividade econômica, criando empresas ou participando, em sociedade, dos capitais de empresas privadas. “A presença estatal tornou-se uma constante na organização das sociedades modernas, a ponto de não mais se poder imaginar uma reversão absoluta do processo.” (BASTOS, 1995, p. 70).

Surge, então, o direito penal econômico, destinado a tutelar a “ordem econômica”, ou seja, a própria intervenção na economia. Esse propósito do direito penal econômico foi alterado profundamente ao longo do século XX, com o desenvolvimento do fenômeno da sociedade de risco, de modo que seu objeto de tutela não é mais a intervenção estatal na economia, mas interesses meta e supra individuais (GUARAGNI, 2009).

A noção de crime econômico construiu-se a partir de uma mudança do objeto criminológico, que deixou de ser o homem infrator e passou a ser a criminalidade em sua dimensão sociológica, deixando o crime de ser visto como anormalidade, passando a ser entendido como uma ruptura entre fins sociais e meios para alcançá-los (BETTI, 2009).

Após a Primeira Grande Guerra Mundial, a intervenção do Estado na Economia passou a ser uma realidade do Estado Moderno, de modo que se deu início ao surgimento de normas penais que criassem um sistema de proteção a tais atividades interventoras (CIPRIANI, 2010).

Em suma, no ápice do liberalismo, a liberdade econômica, proporcionada pela liberdade política, ou seja, pela ausência quase completa da intervenção do Estado, direcionava a sociedade para os interesses individuais, já que a acumulação das riquezas individuais era o fim maior. Nesse contexto, considerando a estreita relação entre direito, economia e política, vista no capítulo anterior, o Direito Penal era um instrumento de tutela desses interesses individuais. Somente com a repulsa ao modelo liberal, que criara grandes distorções sociais, é que se passou a dar atenção a interesses postos acima dos individuais, os interesses supra-individuais, coletivos ou difusos.

Portanto, é possível afirmar ter o bem jurídico, objeto do Direito Penal Econômico, característica própria, diferenciada daquele objeto do Direito Penal comum. Enquanto este tutela interesses individuais, o Direito Penal Econômico se ocupa da proteção a interesses difusos e coletivos, supraindividuais, portanto.

Resulta dessa distinção o entendimento de que os institutos do Direito Penal comum, voltados para a proteção de bens jurídicos individuais, já não são suficientes para definir e permitir a compreensão das peculiaridades da criminalidade econômica, cujos delitos não causam danos a uma vítima em particular, mas a uma coletividade, mostrando-se insuficientes para explicar esse fenômeno conceitos tradicionais como consumação, resultado, o sujeito passivo, lesão a bem jurídico etc. Verificando os riscos e os danos que podem ser causados por esse tipo de infração, Sánchez (2011, p. 38) assim analisa a insuficiência dos conceito de causa e efeito, aplicado à relação conduta e resultado nos crimes tradicionais:

Tais resultados se produzem em muitos casos a longo prazo e, de todo modo, em um contexto geral de incerteza sobre a relação causa-efeito, os delitos de resultado/lesão se mostram crescentemente insatisfatórios como técnica de abordagem do problema.

Mesmo podendo ser retardada a consumação de alguns crimes tradicionais, como o homicídio, a certeza sobre a possibilidade de seu resultado, permite, por meio de uma relação de causa-efeito, a punição, ao menos a título de tentativa. Mas, Sánchez atenta para a incerteza, por exemplo, do potencial lesivo de uma conduta que atente contra o meio ambiente. É muito elevado o grau de incerteza sobre o resultado lesivo dessa conduta. A simples relação causa-efeito pode não ser suficiente para a imputação de responsabilidade penal.

Assim, a especificidade do bem jurídico objeto de sua proteção, impõe ao Direito Penal Econômico uma revisão dos conceitos fundamentais do Direito Penal geral, concebido sob a ótica da proteção de bens individuais.

Isso não é bastante, todavia, para, por si só, justificar o Direito Penal Econômico como fundamento para um subsistema penal. Resta verificar se esta distinção quanto à natureza do objeto acarreta a necessidade de estruturas teóricas próprias, a saber, conceitos, princípios, regras e postulados específicos, que o definam de modo tão diferenciado que se possa falar em autonomia disciplinar.