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Sistemas consolidados e sistemas não consolidados: o Brasil como sistema

Tema não inteiramente desenvolvido por Luhmann na sua teoria dos sistemas, mas de particular interesse para este trabalho, é o dos sistemas não consolidados em sua diferenciação com o ambiente. Ou seja, os sistemas que sofrem influência do ambiente nos seus processos internos. A literatura, conforme Neves (2005) é escassa a esse respeito, sendo sua dissertação de mestrado um dos poucos trabalhos existentes no Brasil sobre essa peculiaridade da teoria dos sistemas. Por essa razão, com base especialmente nesse seu estudo é que se apresentam, a seguir, algumas considerações que fundamentarão, mais adiante, a compreensão, sob uma visão sistêmica, da vulnerabilidade dos subsistemas político, jurídico-penal e econômico no Brasil.

Um sistema se diferencia do seu ambiente em razão de suas operações funcionais. É essa diferença que lhe confere identidade. Portanto, para se diferenciar do ambiente, é preciso

que o sistema tenha limites fechados (encerramento operativo), dentro do qual sejam reproduzidas operações exclusivas, não reproduzidas em nenhum outro sistema do ambiente.

Essas operações consistem em um sistema reagir às irritações do ambiente (o espectro infinito de outputs enviados pelos demais subsistemas do ambiente), selecionando, por meio do acoplamento estrutural, aquelas que serão recebidas como informação no seu interior, como inputs, processados por suas estruturas, sob o seu exclusivo código binário, e devolvidas ao ambiente na forma de prestações (outputs), que, por sua vez, irritarão outros subsistemas. Esses, repetindo a operação acima, em suas especialidades funcionais, remeterão ao sistema mais informações a serem selecionadas a partir dos outputs que haviam recebido, permitindo que o sistema considerado inicialmente receba o feedback necessário para reproduzir mais operações do mesmo tipo, adaptadas às novas mudanças refletidas no ambiente.

Para a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, quanto mais operações desse tipo fizer um sistema - operações comunicativas, recursivas, autorreferenciais – mais consolidado ele será. O sistema, assim, produz e reproduz a si mesmo. Cria, consolida e reproduz suas estruturas, desenvolvendo-as para lidar com a crescente complexidade em seu interior. Com isso, seus limites diferenciadores do ambiente tornam-se mais fortes. Um sistema assim está mais imune às interferências externas. Diz-se que é um sistema consolidado.

Em outras palavras, quanto mais processos seletivos de observação realizarem, com mais desenvoltura conseguirão lidar os sistemas com o ambiente, porque não correm o risco de sofrer ingerências externas em seus processos comunicativos internos. Por isso esses sistemas estão mais abertos ao contato com o ambiente, filtrando as irritações dele provenientes, transformando-as em informação auto-selecionada (NEVES, 2005).

Há sistemas que não completaram seu fechamento operacional. Mesmo que apresentem um código próprio e operações comunicativas baseadas em um repertório comum, frequentemente recorrem ao ambiente para reproduzir seus elementos funcionais. São sistemas alopoiéticos, pois buscam no ambiente seus elementos operativos internos. Recorrendo ao ambiente e não aos seus processos comunicativos internos, descaracteriza-se sua fronteira diferenciadora, prejudicando seu desenvolvimento interno. Enquanto não passarem a impedir a influência externa e a operar com seus próprios elementos, definindo uma fronteira diferenciadora do ambiente, esses sistemas não podem ser considerados autônomos. (NEVES, 2005).

Por não terem consolidados os seus limites diferenciadores, são chamados de sistemas não consolidados, em desenvolvimento, em transição, ou transicionais. São sistemas cuja

autopoiese não é completa, pois esta depende diretamente do fechamento operacional que diferencia o sistema do ambiente.

Não se diz, com isso, não haver qualquer interferência externa em sistemas consolidados. Em sua complexidade o ambiente produz infinitas irritações. Um espectro muito pequeno delas será recebido como informação relevante no sistema. O restante é descartado e se constitui em elemento de risco para o sistema. Mesmo em sistemas consolidados, por vezes, há a penetração de irritações alheias à comunicação própria do sistema. Embora as influências externas “ocorram em pontos cegos no campo da auto- observação dos sistemas e na intersecção de funcionamento do acoplamento estrutural ocorridas no âmbito do sistema”, segundo Neves (2005, p. 74), em sistemas autopoiéticos, diferentemente dos alopoiéticos, a interferência externa pode ser suspensa a qualquer momento, assim que o sistema colocar em funcionamento suas operações internas que o diferenciam do ambiente.

Para Easton (1968), não há sistema que não sofra mudanças. Mesmo os sistemas estáveis sofrem algum tipo de alteração. Estabilidade, portanto, não é imutabilidade, mas um padrão especial de mudança. Um sistema estável é aquele em que as mudanças ocorrem em velocidade tão lenta que não se criam problemas para suas estruturas. Sistemas que mudam imperceptivelmente são denominados estáveis. Sistemas que mudam rapidamente, que sofrem mudanças drásticas, são considerados instáveis ou em transição (EASTON, 1968)

Dá-se o nome de processos sobrecomunicativos a toda essa influência externa. Tais processos podem ocorrer de duas formas. Na primeira, um sistema observa constantemente outro sistema e suas formas de tomada de decisões, a partir dos processos comunicativos recursivos, passando, então, a emitir, repetidamente, ruídos, com características favoráveis, estimulando a seleção dessas informações como válidas (NEVES, 2005).

A outra forma é quando os processos comunicativos do sistema se completam, com desvios de sentido, ocasionados por erros no processo de diferenciação no momento da interpenetração, ou seja, “na intersecção de processos comunicativos de sistemas acoplados.” (NEVES, 2005, p. 76).

Em casos extremos, os desvios podem incorporar-se de tal modo às operações dos sistemas que passam a fazer parte das premissas e controlar sua autopoiése, mantendo a sua diferenciação em relação ao ambiente, não mais com o funcionamento das operações antigas, nem de operações do sistema originário da influência, mas sob terceira forma. (NEVES, 2005, p. 91).

Com base nessas caracterizações sobre sistemas consolidados e sistemas não consolidados, pode-se compreender a classificação do Brasil como um país em desenvolvimento, ou nos termos que interessam a este estudo, como um sistema em desenvolvimento, um sistema transicional, especialmente no que diz respeito à política, ao direito e à economia.

Ao menos se comparado aos mais tradicionais países europeus, o Brasil tem uma história de independência política ainda recente. Mas não é seu breve tempo de independência que lhe confere a característica de estar em desenvolvimento político e, sim, suas muitas transformações políticas ocorridas especialmente nos séculos XIX e XX.

Desde que se tornou independente de Portugal, o Brasil tem experimentado mudanças que revelam a sua dificuldade de consolidar seus sistemas econômico, político e jurídico. Esses três subsistemas brasileiros frequentemente sofrem influências externas tais, que suas estruturas são fortemente modificadas, não por seus processos internos, como conseqüência de sua autopoiese, mas por influência de ruídos do ambiente, que não fazem parte de seus processos comunicativos próprios.

Sendo o Brasil um país que se propõe a ser um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal é o acoplamento estrutural que permite a interligação entre esses sistemas político, jurídico e econômico.

No capítulo seguinte, esse acoplamento é estudado, inclusive sob a perspectiva histórica, que revela como as freqüentes transformações no cenário constitucional evidenciam a vulnerabilidade das estruturas dos subsistemas político, jurídico e econômico brasileiros aos processos sobrecomunicativos.

A partir dessa análise, será desenvolvido, nos capítulos posteriores, o raciocínio para a compreensão das influências externas na elaboração de leis penais econômicas e nas dificuldades de se efetuar uma transformação racional no sistema penal econômico.