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SOBRE O FEMININO, A GRAVIDEZ, O PARTO E O MATERNO

CONCEITOS E POSTULADOS

1.5.3 A Pós-Modernização da Maternidade

Se permaneciam ainda algumas dúvidas, os estonteantes desenvolvimentos sociais, biológicos e tecnológicos vieram provar de forma irrefutável que a maternidade não é um monólito pré-social, universal e imutável (Canavarro, 2001; Gillespie, In Sher & St Lawrence, 2000). Muitos teóricos da actualidade têm vindo a defender uma era contemporânea de Pós-Modernismo. O enfoque desta corrente incide sobre uma sociedade que, por se encontrar em constante mutação, gera momentos de incerteza. A sociedade Pós-Moderna revela características de fragmentação, ausência de estruturas claras, turbulência e uma grande diversidade de identidades e instituições sociais. O aumento de oportunidades verificado através do consumo de massas e propagado através das tecnologias modernas e de comunicação, dominam o significado. Segundo o Pós-Modernismo, todo o conhecimento é construído socialmente através da linguagem. Uma vez que sem o recurso à linguagem não se tem acesso à realidade, esta corrente defende que a realidade só existe como construção social. Assente nesta premissa, a análise do discurso apresenta-se como a principal ferramenta do Pós-Modernismo que, rejeitando liminarmente o discurso de "verdade absoluta", visa analisar e desconstruir a realidade socialmente criada (Lee, 1998; Sher & St Lawrence, 2000).

A maternidade figura como um bom exemplo da forma pela qual as condições sociais têm vindo a ser inscritas na vida social humana. Isto é, o impacto das mudanças tecnológicas sobre a maternidade, tem contribuído largamente para

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a transformação e fragmentação do seu significado. Nas palavras de Giddens (1991, op cit.), o aumento de oportunidades que o indivíduo em sociedade tem conhecido na era contemporânea está a "encerrar aquilo que se considerou como o mundo natural", uma vez que os eventos naturais estão a ser progressivamente inseridos em sistemas, tornando o biológico cada vez mais social. Por estas razões, a maternidade é um exemplo fulcral de tais mutações. A mulher pode tornar-se mãe sem ter que recorrer a relações sexuais com um homem ou pode gerar um filho sem que o óvulo tenha sido seu ou, mesmo, sem que o embrião na sua barriga possua qualquer do material genético do casal que o vai criar; a mulher pode ter um filho cuja gestação é desenvolvida no útero de outra mulher e pode ultrapassar os timings do seu relógio biológico, através da congelação de óvulos. De outro(s) modo(s), a mulher pode exercer um conjunto diversificado de actividades maternais proactivas tendo ou não como resultado "um filho seu" e, no entanto, mesmo na ausência de um filho dito seu, sentir que exerce a sua função materna. A época Pós-Moderna, com as suas mutações e fragmentações, dotou a maternidade de novos significados. O conceito de maternidade contemporâneo inclui um vasto reportório de actividades e processos que podem, ou não, envolver práticas tradicionais de conceber, dar à luz ou criar.

Correia (2001) corrobora o ora enunciado, afirmando que a maternidade deixou de ser o projecto único na vida da mulher. Poderá ou não existir, ou poderá existir em simultâneo com outros de cariz profissional ou académico. No espaço contemporâneo, tem vindo a ser permitido à mulher optar pela maternidade em diferentes contextos relacionais, pela maternidade assumida sem parceiro ou pela não maternidade. Contudo, independentemente da escolha exercida, nem sempre está liberta de pressões sociais e culturais. Para algumas mulheres é importante cumprir a clássica função feminina - procriar, mesmo que tal não corresponda a um desejo individual; mesmo que lhe seja difícil conciliar com uma carreira profissional. Quando grávida, esta mulher estará sujeita a um duplo esforço psicológico; o esforço inerente à vivência de uma gravidez, acrescido do conflito interno provocado pela não desejabilidade em ser mãe. Isto é, trava-se um conflito entre o projecto de maternidade e a sua feminilidade. Nesta encruzilhada (de conflitualidade) o insucesso da

gravidez, conducente à não concretização da maternidade, poderá resultar de uma dificuldade de integração e elaboração de conflitos e ideais (Correia, 1998; Langer, 1986; Leal, 1997, 2001; Sá, 1997).

A fim de esclarecer uma questão que durante tantos anos foi tão cara à condição feminina, recorre-se a Canavarro (2001, pp. 22-23) que, a respeito do emblemático "instinto maternal", afirma: "encontramos repetidas vezes vocábulos como: instinto, impulso, drive, necessidade, tendência, despertar do relógio biológico, associados às palavras gravidez e maternidade". Associados a estes vocábulos, encontram-se as expressões de "normal, natural, razão de existência, auge de contentamento, êxtase, momento único de realização, assombroso". Enfatizando a descrição ora proferida, surge a crença que defende que uma mulher sem filhos ou está a cumprir uma trágica profecia (no caso de ser infértil) ou está na sua essência estragada (se se tratar de uma mulher fértil que recusa a maternidade).

Investigações recentes continuam a ilustrar o quão enraizadas estas crenças ainda estão nas atribuições sociais (Ussher, 1992, 2000). A investigadora registou que, independentemente, do grau de sucesso pessoal e profissional, se uma mulher optar por não ter filhos, o seu destino continua a ser visto como incompleto. Procurando avaliar o estereótipo subjacente às mulheres que rejeitam a maternidade, Lee (1998) recorre a dois estudos para assinalar que estas mulheres são consideradas egoístas, imaturas, solitárias, infelizes e frias (Sommers, 1993), pelo público em geral, e egoístas, frias e excessivamente ambiciosas, pelo público universitário (Dowling-Guyer, 1995). Porém, numa investigação que colocou lado a lado uma população universitária com e sem filhos, as mulheres sem filhos evidenciavam uma melhor qualidade de relação com a mãe e uma relação baseada no reforço da independência com os pais. No que concerne aos pontos de vista sobre a maternidade, as duas populações apresentavam desígnios distintos. Enquanto que as mães defendiam motivações altruístas para a maternidade, as mulheres sem filhos, assumindo convictamente a menor importância da vivência materna nas suas vidas, percepcionavam a maternidade como uma escolha egoísta. Há que assinalar uma última questão a respeito dos níveis de satisfação de vida. Os dados

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empíricos produzidos sobre as diferentes realidades que se têm vindo a descrever revelam que mulheres que optam voluntariamente por não serem mães evidenciam níveis de satisfação idênticos às que optaram pela maternidade.

Na verdade, se a maternidade se revestisse de um cariz instintivo, então seria natural supor que o facto de uma mulher se encontrar fisicamente habilitada a ter filhos faria com que também estivesse instintivamente habilitada a cuidar deles. A história está recheada de episódios, infortúnios e tragédias que demonstram claramente que a equiparação da maternidade ao nível de instinto é uma falácia. Canavarro (2001), citando Baumiester & Leary (1995), enuncia que qualquer "motivo humano", para ser considerado como tal, deverá preencher determinados requisitos: 1) produzir efeitos mesmo sob condições adversas; 2) ter consequências afectivas; 3) implicar processamento cognitivo directo; 4) conduzir a comportamentos de doença, dificuldades de ajustamento, ou mesmo, à morte, quando não realizado; 5) produzir comportamentos orientados para a sua satisfação; 6) ser universal, no sentido de poder ser aplicado a todas as pessoas; 7) não derivar de outros motivos; 8) produzir efeitos numa grande variedade de comportamentos e, por último, 9) ter implicações para além do funcionamento psicológico imediato. Ora, a noção de maternidade como instintiva ou como necessidade feminina fundamental, não evidencia uma correspondência integral com os requisitos identificados para assunção de motivo humano.

Como resulta claro do exemplo supra a propósito do instinto materno, ao longo da história considerou-se ser necessário reprimir o feminino para salvaguardar e fazer prevalecer o materno, assegurando, por via deste artefacto social, o controlo da maternidade. Para o efeito, foi levada a cabo a estratégia da extrema diferenciação de papéis e inscreveu-se "o destino de feminino a cumprir-se no materno". Ser mulher esgotava-se então na demanda da maternidade. Como nos indica Badinter (1986), só em tempos recentes é que foi possível dissociar a feminilidade da maternidade. Para tal, em muito contribuíram os estonteantes desenvolvimentos das últimas décadas já que, com eles, a mulher ficou investida da capacidade de controlar o seu corpo

(materno), através do desenvolvimento de métodos anti-concepcionais, e viu- se possibilitada a ascender a lugares profissionais e sociais que até então estavam reservados aos homens. Concomitantemente, as relações íntimas assumiram uma maior flexibilidade e inscreveu-se o materno a cumprir-se no feminino. "À questão do nosso tempo não é pois de reprimir o feminino mas de fazer crescer o materno". Na verdade, hoje entende-se que materno e paterno são apenas subcategorias dentro das categorias de feminino e masculino, directamente relacionáveis com a progenitura (Leal, 1995, 2001, p. 69).

Assim, na sequência dos escritos de Bowlby, Stoller, Leal, Ussher e Lee, entende-se a função materna na mulher Pós-Moderna como uma função contentora de acolhimento, sendo simultaneamente interactiva e geradora de estímulos essenciais ao desenvolvimento da criança. Esclarecendo esta perspectiva, Leal (2001) afirma que a função materna é uma função de contenção e promoção do desenvolvimento infantil que existe em prol das necessidades do outro, mesmo que em detrimento das do próprio, podendo ser igualmente desempenhada pela mãe biológica ou outra, ou, inclusivamente, sem a necessidade de ser desempenhada por uma figura feminina. Trata-se de uma função cuja aprendizagem é de natureza social e cujas singularidades decorrem da relação com a própria criança. Em jeito de resumo, a autora assinalada propõe que a função se designe de "materna" quando desempenhada por uma mulher e que assuma a designação de "paterna", se desempenhada por um homem.

Prosseguindo e corroborando as teorizações de Leal, considera-se que as características associadas à actividade e aos desempenhos que traduzem na prática a capacidade de afirmação pessoal e social dos indivíduos sejam consideradas como "femininas" ou "masculinas" (conforme o género) e que se considere, para ambos, em termos de mais e de menos, consoante essas características sejam mais marcadas ou estejam ausentes. Face a esta conceptualização, um homem passivo e com baixa auto-afirmação será pouco masculino e não feminino, assim como uma mulher com as mesmas características será pouco feminina. Inversamente, uma mulher com grande capacidade de afirmação será muito feminina e não masculina (Leal, 2001).

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Na perspectiva da autora, a maior dificuldade na aceitação desta proposta relaciona-se com o preconceito de que uma mulher muito feminina deverá ser passiva e contentora; na sua opinião, está-se na presença de mais uma confusão entre papéis e atribuição de características maternas ao desempenho social da mulher. No que respeita aos papéis sociais Badinter (1993) considera que, actualmente, as sociedades ocidentais privilegiam a relação de semelhança entre os sexos como nenhuma sociedade anterior o pôde fazer. Por isso, homens e mulheres tendem cada vez mais para um modelo único. Em concordância com as citadas autoras, mas observando a questão por outro prisma, Langer (1986) afirma: "A natureza humana tem uma grande maleabilidade que vai respondendo adequadamente às diferentes culturas e às diferentes épocas mas a maleabilidade tem limites". Neste sentido, considera que à mulher actual se exige um esforço de adaptação a uma sociedade que se descreve como anti-maternal.

Alvarez (1995) defende que o conceito do materno deve ser compreendido não somente como um projecto a longo prazo de prestação de cuidados e dádiva de amor, mas também como uma relação com "o diferente", que será tão mais bem sucedida quanto maior a sua separação face ao "igual" (o primeiro objecto), isto é, quanto maior a diferenciação. Canavarro (2001, p. 19) acrescenta: "A maternidade é um processo que ultrapassa a gravidez. É um projecto a longo prazo, quase que nos atreveríamos a dizer um projecto para toda a vida". Embora assuma, por razões óbvias, uma maior visibilidade nos primeiros tempos de vida da criança, a dádiva de amor, interesse, partilha e responsabilidade permanece ao longo da vida, sujeita a sucessivas mudanças e tarefas de adaptação desenvolvimental.

Para concluir e como ilustra Leal (1990, p. 365; 1991): "Maternidade requer que muito mais do que desejar ter um filho se deseje ser mãe". Com uma forte tradição social, cultural e histórica, a maternidade transcende o período de gravidez, assumindo-se como um projecto destinado a percorrer uma vida e centrado na prestação de cuidados e dádiva de afectos que asseguram um desenvolvimento sadio e harmonioso da criança.