• Nenhum resultado encontrado

Ascensão e Valorização Sócio-Histórica do Papel Materno

SOBRE O FEMININO, A GRAVIDEZ, O PARTO E O MATERNO

TAREFAS DE DESENVOLVIMENTO

1.5 Sobre o Materno

1.5.1 Ascensão e Valorização Sócio-Histórica do Papel Materno

Segundo a historiadora Badinter (1993), até ao Século XVIII a qualidade das relações mãe-bebé era caracterizada por aparente indiferença e desinteresse. Com efeito, até meados desse século, o panorama sócio-familiar ficou conotado com uma manifesta ausência de amor. Datam de 1760 as primeiras publicações que recomendam às mães que amamentem os seus bebés e

Personalidade da Mãe Prematura

cuidem pessoalmente dos filhos. Rapidamente este lema prevaleceria como modelo a seguir. Na verdade, ao operar uma importante e radical mudança de mentalidades no que diz respeito à valorização do papel materno, o Século XVIII viria a figurar como marco histórico. Fruto dessa valorização, nascia uma nova mulher. Uma mulher a quem, subitamente, eram conferidas e valorizadas as tarefas de Mãe, Educadora e Criadora (da futura sociedade). Deste modo, inscreve-se o dever de maternidade, isto é, a predestinação de que o desempenho mais importante de uma mulher era ser mãe. Nasce no Século XVIII a função materna, como função de culto, que cresce no século seguinte e se propaga até aos nossos dias (Leal, 1997).

Em estreito paralelismo funda-se a crença (que permaneceria irrefutável durante um longo período histórico) de que, no seio da mulher, no seu âmago, estava contido o Amor Materno. Tratava-se de um amor de geração espontânea, crença que, segundo Badinter (1993), ainda hoje se apresenta em algumas sociedades como uma verdade inviolável. Ao abrigo deste mito, era expectável que a mulher se sacrificasse para garantir uma melhor qualidade de vida ao filho.

Durante o Século XIX é posta em curso a valorização dos laços afectivos, nomeadamente, os laços em torno da figura materna, muito embora nesta época se revelasse impossível determinar o grau de qualidade materna, uma vez que as mulheres, não sendo consideradas boas mães, eram, irremediavelmente, consideradas incapazes ou indignas. A título ilustrativo, Badinter cita a obra Balzaquiana "Memórias de Duas Recém Casadas" onde o escritor proclama que "uma mulher sem filhos é uma monstruosidade: a mulher é feita somente para ser mãe". Esta violenta dicotomia verificou-se, segundo Birns & Ben-Ner (1988, p. 47), porque ao longo de vários séculos a noção de maternidade foi rigidamente polarizada. Num dos pólos, encontrava-se a "Madona - pálida, séria e meiga, no outro, a Má Mãe - grande, feia e maldosa". Estas imagens fazem parte de uma herança colectiva das sociedades Judaico- Cristãs, imiscuindo-se no auto-conceito materno e na forma como as mulheres se relacionam com os filhos.

Sendo certo que, ao longo da história, a maternidade foi contaminada por fundamentalismos ideológicos, sociais e políticos, a doutrina científica também procurou traçar a sua influência. Em finais do Século XIX, Darwin, na sua teoria sobre a selecção sexual, defendeu o que considerou serem diferenças

evolucionárias naturais entre homens e mulheres, manifestadas no plano físico

e nos papéis sociais. Se à luz de um enquadramento sócío-histórico (Sec. XIX), a visão evolucionária de Darwin se afigura passível de aceitação, a reformulação destes postulados, ocorrida no fim do Século XX, pela mão de um eminente biólogo, Richard Dawkins, acarreta alguma incredulidade. No seu livro "O Gene Egoísta" (1989), Dawkins defende convictamente que para a mulher cumprir o papel que lhe cabe na "máquina genética", isto é, para realizar o seu imperativo biológico, tem necessariamente que fazer um investimento de vários anos. Não basta gerar e parir. Para assegurar a eficácia do seu contributo para a cadeia genética e para a humanidade, há que prolongar no tempo o investimento materno. Por via da doutrina evolutiva, assistimos a mais uma proclamação do destino biológico (genético) da mulher e consequente primazia da maternidade como função social evolucionária.

Ëm pleno Século XX, os discursos políticos também se inflamaram com a defesa da maternidade, como condição feminina única. Estes discursos são habitualmente provenientes das correntes conservadoras e neo-liberais que apoiam o que consideram ser os valores tradicionais da família, aos quais subjazem a selecção natural de papéis sociais, a contenção do comportamento sexual e a fraternidade. De acordo com estas premissas, a identidade feminina normal é contida na maternidade, sustentada numa relação heterossexual e inserida na família nuclear. Em 1905, Theodore Roosevelt consagrou a maternidade como "o verdadeiro chamamento da mulher, um dever cívico e sagrado". Discursos políticos posteriores, provenientes das alas conservadoras e neo-liberais, continuaram pelo século fora a proclamar os valores tradicionais da família. Na década de oitenta os governos de Margaret Thatcher e John Major assumiram-se como o "Partido da Família" e criaram a campanha "Back to Basics" ("De regresso ao essencial" - tradução livre), com vista a reverter aquilo que consideraram ser o declínio dos valores tradicionais da família. Nos Estados Unidos, a coligação "New Right' integrou como objectivos do seu

Personalidade da Mãe Prematura

programa político não só a preservação dos valores familiares tradicionais como, também, a restrição dos direitos da mulher sobre a reprodução (Sherr & St Lawrence, 2000).

Face ao arrebatador cenário de sobrevalorização materna em detrimento da valorização de outros papéis femininos, não se estranha que nos primeiros escritos da psicanálise a mãe seja assumida como figura omnipresente e omnipotente, a quem se atribui a quase total responsabilidade pela saúde mental do(s) filho(s). A mulher-mãe, condição única da sua afirmação pessoal e social, foi responsabilizada por cuidar do inconsciente e psiquismo dos seus filhos (Maldonado, 1976, cit. Leal, 1997). A psicanálise previa que uma boa mãe teria na sua história individual um desenvolvimento psicossexual facilitador da sua integração da feminilidade e maternidade, bem como uma mãe psicologicamente equilibrada. Uma Má Mãe não possuiria qualquer das condições expressas e, consequentemente, seria uma figura promotora da perturbação psicológica nos seus filhos. A imagem de mulher dita normal que emana dos escritos psicanalíticos, assenta na suas capacidades de abnegação e sacrifício, características que chegaram a ser defendidas como pertencendo à natureza da mulher.

A imagem da mulher reflectida no princípio do século passado desencadeou dois tipos de repercussões: garantiu um espaço de afirmação pessoal socialmente valorizado mas, no entanto, a exaltação do materno nos discursos filosóficos, médicos e políticos, levou muitas mulheres a serem mães sem que isso correspondesse aos seus verdadeiros e mais íntimos desejos. Se a sobrevalorização social, política e médica acarretava, por si só, para a mulher, um ónus significativo, mais foi incrementado com a emergência da chamada "bebelogia", ciência que tem por ambição o estudo exaustivo dos bebés sob todas as suas formas e todos os seus estados (Janaud, 1985, cit. Leal, 1997), numa época já denominada por "Século do Bebé" (Ehrenreich & English, 1979, p. 189, cit. Birns & Ben-Ner 1988). Em consonância com o ora exposto, Lee (1998) defende que após os anos 60 proliferaram manuais de cuidados maternos, defendendo que a "boa mãe" era uma mulher que, em prejuízo próprio, assumia a função materna como desígnio único, sendo apoiada por um

parceiro, necessariamente masculino (muito trabalhador e fundamentalmente ausente, que providenciava financeiramente a família).

Na opinião de Correia & Leal (1989), a Primeira Guerra Mundial constituiu um marco histórico do Século XX, contribuindo para a mudança no modo como são vivenciados e articulados os binómios Mulher/Homem e Mãe/Pai. Nessa altura, a mulher viu-se desafiada a ocupar o lugar do homem, constatando que as suas capacidades superavam o modelo "gerar, parir e cuidar". Ao regressaram da guerra os homens depararam-se com as conquistas da mulher que, tendo- se afirmado noutras áreas que não exclusivamente a maternidade, dificilmente voltaria para casa e para o seu único papel de mulher-mãe. Salvaguardada a sua independência financeira (pela primeira vez na história ocidental), jamais regressará às relações que até então estabeleciam a sua condição de mulher. Simultânea e concomitantemente, surge a implementação dos métodos anticoncepcionais, o que conduz ao reconhecimento da mulher como entidade global e não somente como objecto reprodutor e de função materna. "É este o momento em que as palavras mulher e mãe deixam de estar obrigatoriamente associadas" (Correia, 2001, p.36). Ou como diria Badinter (1986, p. 239), assim se reformulou a equação milenar "mulher = mãe".

Contribuindo para a trajectória de desenvolvimento que se tem procurado traçar sobre a construção do feminino, constata-se que a partir da segunda metade do Século XX (nomeadamente a partir dos anos 60) nasce um movimento feminista que, com o seu novo discurso sobre a igualdade política, social e económica da mulher, se estende progressivamente pelo mundo ocidental. Doravante, a história está recheada de exemplos de mulheres que recusaram a maternidade como a razão exclusiva para a sua existência, exigindo, simultaneamente, a participação paterna na partilha da prestação de cuidados e educação dos filhos. Em 1949, a romancista e filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) publica as suas ideias num livro intitulado "O

Segundo Sexo" onde afirma que a maternidade, o casamento e o

condicionamento social aprisionavam as mulheres. Este texto rapidamente se converteu numa espécie de manifesto para o movimento feminista. Destrói-se o mito da passividade da mulher e das suas características masoquistas,

Personalidade da Mãe Prematura

encerrando-se a teoria da mãe espontaneamente dedicada e sacrificada. Neste enquadramento social e ideológico, assiste-se ao desmoronamento do mito do instinto ou amor materno. Reforçando o ora referido, Badinter (1992) assinala que a teoria do instinto maternal foi desmentida pela história dos comportamentos. Tendo esta noção assumindo-se como uma "força de bloqueio" ao desenvolvimento do conceito contemporâneo de "materno", será mais adiante objecto de nova explanação (Ponto 1.5.3, A Pós-Modernização da Maternidade).

A mulher que vivência as últimas décadas do Século XX é uma mulher que se procura valorizar do ponto de vista académico, que investe numa carreira profissional e que adia a maternidade para uma época mais tardia do seu ciclo de vida (não raras vezes, por via da tecnologia, ultrapassando os limites biológicos da sua capacidade reprodutora) em que não só possa beneficiar de uma maior segurança profissional e económica, como também se sinta mais preparada para ser mãe. Deste modo, tem vindo a assistir-se progressivamente ao aumento do número de mulheres que, em função do nível de diferenciação socioeconómica, tem o primeiro filho para além dos 35 anos.

Para concluir, há que assinalar o válido contributo para a destrinça dos conceitos "feminino" e "materno", proveniente de uma área designada por Psicologia da Gravidez e da Maternidade. Alicerçando o feminino, a gravidez, o parto e o materno na prática clínica, na investigação e na teorização, esta área do saber psicológico tem vindo sucessivamente a contribuir para desmontar os discursos, crenças, estereótipos e mitos em que foi envolta a maternidade. De acordo com esta corrente da Psicologia da Saúde, resulta claro que fracassou a tentativa de inscrever a maternidade como um fenómeno pré-social e existencialista. Muito pelo contrário, a experiência da maternidade varia consoante a época histórica, a proveniência social, o enquadramento cultural e a idiossincrasia pessoal.