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O Processo Gravídico ao longo dos Tempos: Crenças, Rituais e Práticas

SOBRE O FEMININO, A GRAVIDEZ, O PARTO E O MATERNO

1.2 Sobre o Feminino

1.3.1 O Processo Gravídico ao longo dos Tempos: Crenças, Rituais e Práticas

As crenças, expectativas, representações e atitudes perante a gravidez constituem-se como um tema tão antigo quanto a própria gravidez, com raízes que percorrem toda a história da humanidade. Porém, historiadores, antropólogos e sociólogos têm revelado que, apesar de se tratar de um fenómeno transversal a todos os povos e a todas as culturas, cuja importância jamais foi negligenciada, o contexto histórico, social e cultural contribui

decisivamente para a forma como a gravidez tem sido, e ainda é, vivenciada. Nos mais diversos espaços geográficos foram localizadas estátuas de mulheres fecundas, revelando grandes seios e ventres volumosos, algumas veneradas como deusas, o que prova a importância que a gravidez assumiu ao longo dos tempos. Segundo a dupla de investigadores Colman & Cdlrnan (1994), em tempos idos, a fecundidade provavelmente seria tida como um bem divino, objecto de adoração através da Deusa Fértil e a infertilidade vista como um castigo. Em algumas civilizações, embora a grávida continuasse a desempenhar as suas tarefas habituais, era objecto de um estatuto especial, endeusado, dado acreditar-se na existência de uma relação especial entre a grávida e o bebé, que iria nascer à terra e aos deuses.

De forma análoga, na tribo de índios Guayaku (Paraguai), a grávida possui numerosas virtudes mágicas pois se, por um lado, se encontra intimamente ligada ao filho que transporta no ventre, por outro, o feto/bebé é considerado como estando em comunicação com o mundo dos espíritos sendo-lhe atribuído o conhecimento de inúmeros segredos e faculdades, como a capacidade de prever o futuro ou de predizer a morte (Barbaut, 1990). A grávida era muitas vezes considerada como encontrando-se numa zona intermédia (e ritualizada) entre o ser virgem e o ser mãe. Tal como retrata Kitzinger (1978), a existência de cerimónias de gravidez correspondiam não somente a uma função de integração na sociedade mas também à função de ligação do presente ao passado, do humano ao divino.

Personalidade da Mãe Prematura

Se à procriação era dado tanta ênfase, considerava-se que reduzir a fertilidade podia provocar a ira dos deuses. Encontram-se nas sociedades primitivas as primeiras preocupações em limitar a natalidade, com subsequentes iniciativas visando o desenvolvimento de métodos anti-coneepcionais, sendo certo que estas medidas só se verificavam em situações extremas. Testemunho destas preocupações são papiros datados de 1550 A.C. com instruções para o fabrico de tampões de linho embebidos em mel e folhas de acácia fermentada, que teriam a função de impedir a fecundação. A título de curiosidade, refira-se que ainda hoje o ácido láctico produzido no processo de fermentação é utilizado em espermicidas (Correia, 2001).

Relativamente ao estatuto da grávida na Grécia Antiga, regista-se que as suas casas eram consideradas como um templo inviolável, um santuário sagrado onde os próprios criminosos podiam encontrar abrigo. De forma idêntica, os romanos suspendiam grinaldas ou folhas de louro à porta das moradas das grávidas para evitar visitas incómodas, ficando estas habitações interditas inclusivamente a oficiais de justiça e credores (Barbaut, 1990).

Se é certo que ao longo da história a gravidez tem merecido um estatuto especial, não é menos verdade que esta se revestiu de importância primordial no estabelecimento de graus de parentesco e consequente integração conjugal, familiar e social, da unidade familiar onde se inclui a grávida/mãe. Quando a mulher engravida e tem filhos, entra num domínio que vai para além da sua experiência pessoal e se liga ao colectivo. A gravidez é não só uma fase na vida da mulher, na do seu companheiro, na relação do casal, como é, de igual modo, uma fase que afecta a rede social envolvente - tudo o que se relacione positiva ou negativamente com a gravidez. A gravidez estende-se a todos os planos que a envolvem (Canavarro, 2001; Maldonado, 1985).

Alguns aspectos sócio-históricos sobre o estabelecimento do parentesco que se têm vindo a elencar, podem ser observados em sociedades em que a relação do casal, na qualidade de pacto conjugal, apenas se estabelece quando a mulher engravida. Figuram como exemplo os pigmeus Mbuti, oriundos do Congo. Outra questão de parentesco, assumida como sendo de

grande relevância para algumas culturas, é o facto do recém-nascido ser perfilhado por um homem. No seio destas culturas afigura-se como indiferente que o perfilhamento seja feito pelo pai biológico ou não. Todavia, as relações sociais estabelecidas pela gravidez não se cingem apenas ao matrimónio e ao perfilhamento. Como anteriormente referido, em determinadas sociedades a gravidez é tida como um estado ritualizado, no qual a futura mãe tem uma relação particular com toda a sociedade. Assim se observa que a grávida não só desenvolve uma relação particular com a sua própria mãe, como também com a sogra. Na Guatemala, a sogra funciona como agente ritual entre passado e futuro e assume o papel de instruir e orientar a grávida. O exemplo da orientação materna (isto é, conduzida pela própria mãe) é mais vulgar entre sociedades ocidentalizadas, como se a gravidez gerasse uma nova união mãe- filha, a partir da qual a grávida gera a relação com o seu próprio filho,

revestindo-se estas dinâmicas, em última instância, de uma forma de prolongamento e união inter-geracional (Kitzinger, 1978).

Na sociedade ocidental, por via do surgimento da obstetrícia como especialidade médica (1806), a mulher passa a ser um objecto de estudo em que o seu papel social é regulado a partir da sua anatomia e em que o seu corpo se destina e se realiza no ser mãe (Maldonado, 1976; cit. Leal, 1997). Porém, na sequência da proliferação de cuidados de saúde destinados à monitorização e vigilância da gravidez que têm emergido nos últimos anos, não raras vezes assiste-se a uma hiper-vigilância da gravidez, tanto da grávida quanto do feto. Uma postura médica excessiva pode conferir à gravidez um estatuto de "estado de doença" em vez de "estado de saúde". Em casos extremos, verifica-se que a grávida, à semelhança de uma pessoa com problemas de saúde, fica doente e necessitada de cuidados e vigilância médica. A dependência excessiva dos sistemas de saúde que envolvem o controlo médico e a monitorização da gravidez provocam uma diminuição no auto-controlo e na auto-confiança da grávida no que diz respeito à sua capacidade de prosseguir com a gravidez e de dar à luz sem necessitar de cuidados médicos especiais. Em tom de crítica àquilo que considera ser a excessiva medicalização da gravidez na actualidade, Gross (In Ussher, 2001) socorre-se do paradigma da saúde defendendo que a gravidez deveria ser

Personalidade da Mãe Prematura

(re)colocada ao lado das outras experiências do ciclo de vida reprodutor da mulher, como a menstruação e a menopausa. Caso contrário, corre-se o risco da gravidez passar a figurar como um estado de doença (com uma correspondente vivência doentia) e não como um estado saudável que, se ela assim o desejar, pode naturalmente fazer parte do curso de vida da mulher.

Todavia, nos dias de hoje, a gravidez dimensiona os papéis e as relações da mulher num novo contexto, tornando-a mais dependente dos sistemas de saúde, sociais e de apoio. Cria-lhe necessidades intensas de apoio afectivo, atenção e aceitação por parte dos outros. O modo como a sociedade enquadra o estado e o processo gravídico, em conjunto com a sua singularidade pessoal, afectam profundamente a sua vivência da gravidez, em formas por vezes impossíveis de prever. Para concluir, e parafraseando Colman & Colman (1994, p. 19): "Uma mulher grávida pode mesmo sentir-se como o elefante da fábula hindu, que foi tocado pelos cegos, ficando cada um deles com a percepção de um animal muito diferente. O significado da gravidez muda com o tempo no interior de uma cultura".

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Em jeito de resumo, independentemente do conjunto de características sociais, culturais e personológicas da mulher, preparar (elaborar) durante nove meses o nascimento de um filho representa um desafio à maturidade e à estrutura da sua personalidade como resulta claro da discussão que se segue.