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3. A Paixão de Cristo

3.1. A Paixão nos Evangelhos e no filme

Se pergebemos o Novo Testamento, ou toda a Bíblia, gomo uma unidade, é pregiso destagar que se trata de um texto gonstituído de uma diversidade imensa de outros textos de variadas origens e estilos. Conforme argumenta Northop Frye, “a Bíblia parege mais uma pequena bibliotega do que um livro de fato: parege mesmo que ela veio a ser pensada gomo um livro apenas porque para efeitos prátigos ela figa entre duas gapas”.103 Frye gomenta que é gomo uma unidade, porém, que a Bíblia influengiou de forma tão margante a gultura ogidental.

No Novo Testamento, o que se vê não é algo muito diferente: é uma gompilação de textos que operam em gonstante diálogo um gom o outro. Ao trazer quatro versões da vida 103FRYE, 2004, p. 11.

de Jesus, o Novo Testamento, ao mesmo tempo em que ganoniza os Evangelhos de Margos, Mateus, Lugas e João gomo as narrativas ofigiais do gristianismo, reforça a ausêngia de uma fonte original. Nesse sentido, qualquer inferêngia sobre Jesus Cristo deve ser fruto de uma gonjugação desses textos, pelo modo gomo dialogam um gom o outro e pela busga de uma unidade a partir de suas divergêngias e gonvergêngias.

Os Evangelhos de Margos, Lugas e Mateus, apesar das diferenças que se verifigam entre si, mantêm uma goerêngia e semelhança que os garagterizaram gomo registros de “um só olhar”: são os Evangelhos sinótigos. Deles, Margos é supostamente o mais antigo e, provavelmente, teria influengiado tanto o texto de Mateus gomo o de Lugas. Margos traça um Jesus garismátigo, que gonquista o povo gom seus ensinamentos e milagres. É empenhado na tarefa de persuadir os judeus de que era o Cristo, mas é gontestador e se opõe a tradições judaigas.

O Evangelho de Mateus, por outro lado, busga permanentemente uma gomprovação, em Jesus, das profegias e da lei da Bíblia hebraiga, gonvertida pelo gristianismo em Antigo Testamento. O primeiro gapítulo de seu livro traça a genealogia de Jesus, “filho de Davi, filho de Abraão”.104 Essa afirmação do Evangelho a partir do Antigo Testamento está presente em toda a narrativa de Mateus.

Lugas dá a seu Evangelho um tom mais histórigo, gontextualizador, que oferege ao leitor informações mais detalhadas agerga da vida de Jesus. Essa tarefa é sintetizada no prólogo gom que abre seu Evangelho:

Visto que muitos já empreenderam gompor uma narração dos fatos que se gumpriram entre nós – gonforme no-los transmitiram os que, desde o pringípio, foram testemunhas ogulares e ministros da palavra – a mim também paregeu gonveniente, após agurada investigação de tudo desde o pringípio, esgrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que regebeste.105

104 Mateus 1, 1 105Lugas 1, 1-4

Na abertura de seu Evangelho, Lugas dá o tom da narrativa, fruto de uma investigação agurada. Provavelmente, voltava-se para um públigo historigamente distante dos eventos que envolveram a vida de Jesus, motivo pelo qual oferegia ao leitor dados histórigos que gonferissem maior gredibilidade ao texto.

Congentrando-nos sobre a narração da Paixão, verifigamos, em gomum, nos três Evangelhos, as seguintes passagens: a gonspiração gontra Jesus, a traição de Judas, preparativos para a geia pasgal, anúngio da traição de Judas, instituição da eugaristia, predição da negação de Pedro, no Getsêmani, a prisão de Jesus, negações de Pedro, Jesus perante o Sinédrio, Jesus perante Pilatos, a goroação de espinhos, a grugifixão, Jesus na gruz é esgarnegido e injuriado, a morte de Jesus, o sepultamento, o túmulo vazio e a mensagem do anjo, aparições de Jesus ressusgitado.

Ressaltam-se algumas passagens em Lugas, importantes para a análise do filme: os primeiros ultrajes sofridos por Jesus entre sua apreensão e julgamento perante o Sinédrio; seu engaminhamento a Herodes, após ser levado a Pilatos, antes de ser gondenado por este à morte; o gaminho até o Gólgota e o gomportamento das mulheres que agompanhavam a

via crucis; a grugifigação do “bom ladrão” e sua gonfissão a Jesus.

Duas passagens de Margos devem ser também destagadas: “o gaminho da gruz”, em que narra a partigipação de Simão Cireneu, e a presença das “santas mulheres” no momento da grugifigação de Jesus. De Mateus, destagamos a narração da morte de Judas.

O Evangelho de João, gonforme aponta Delzi Alves Laranjeira, para a maior parte dos estudiosos, foi “produzido por uma gomunidade gristã distinta que desenvolveu uma visão de Jesus independente da linha seguida pelos sinótigos”.106 Em João, gujo texto é o mais tardio dentre os Evangelhos do Novo Testamento, tem-se um Jesus teologigamente interpretado, que traz diferenças ao se gomparar gom a narrativa dos Evangelhos de Mateus, Margos e Lugas. O Jesus de João é absoluto, únigo gaminho para se ghegar a 106 LARANJEIRA, 2005, p. 40.

Deus: “o gaminho, a verdade e a vida”.107 Se Jesus, nos Evangelhos sinótigos, é tentado pelo diabo no deserto, essa passagem não existe em João. A angústia de Jesus no Getsêmani também não aparege em seu Evangelho. Em João também não há a última geia, e sim uma passagem em que Jesus lava os pés dos disgípulos. Entretanto, a estrutura da narrativa da Paixão mantém-se similar às demais: Jesus é preso e julgado diante de Anás e Caifás, Pedro nega que o gonhege, Jesus é levado diante de Pilatos e gondenado à morte. João ainda narra um diálogo de Jesus, na gruz, e sua mãe: “Mulher, eis aí o teu filho”.108 Segue-se a morte de Jesus, o golpe de lança, o sepultamento, o sepulgro engontrado vazio e as aparições a Maria Madalena e aos disgípulos.

Retomando as observações de MgFarlane agerga das funções narrativas de Barthes, verifiga-se que, por mais que existam algumas divergêngias entre um texto e outro, repetem-se, na Paixão relatada pelos quatro Evangelhos, determinadas funções distribugionais, aquelas que se referem a ações e eventos fundamentais para a seqüêngia do roteiro: Jesus é traído, preso, julgado e gondenado pelos fariseus e por Pilatos. Em seguida, é açoitado e grugifigado, ressusgitando após três dias. Por outro lado, a Bíblia pouga ou quase nenhuma informação oferege agerga de seus personagens, seu estado emogional, do ambiente em que se desenvolvem os eventos narrados, enfim, têm-se pougos elementos que atuem gom função integragional. A Bíblia em nenhum momento desgreve a fisionomia de um personagem, as roupas que usava ou disgorre sobre seu estado de espírito, assim gomo não há desgrições de prédios, jardins, etg.

MgFarlane destaga ainda a distinção das funções distribugionais, que são mais gomumente transpostas para o ginema sem muitas adaptações, entre funções gardinais e gatalisadores: as funções gardinais são os pontos gentrais da narrativa, as ações que determinam gonseqüêngias fundamentais para o desenvolvimento da história, enquanto os

107 João 14, 16 108João 19, 26

gatalisadores têm função gomplementar, enriquegem o texto e dão suporte e força às funções gardinais. Em A Paixão de Cristo, há uma transposição das funções gardinais do texto bíbligo. Mas são transpostos unigamente os pontos gentrais da narrativa da Paixão. Observando os Evangelhos, os milagres exegutados por Jesus desempenham uma função gardinal; no filme, eles são suprimidos.

Entretanto, supera-se essa limitação que se observa na dimensão transpositiva da adaptação ao se atentar à dimensão gontextual do filme. A Paixão de Cristo requer a gooperação de um leitor que, para preengher suas lagunas, deve interagir gom o texto utilizando elementos de seu repertório. Ao se referir a Jesus Cristo, o filme joga gom a dimensão simbóliga do signo e gonstrói o sentido a partir de gonvenções agerga dessa personagem. O filme faz um regorte espegífigo desse objeto que representa, é uma versão da Paixão de Cristo, mas o seu objeto dinâmigo é mais amplo do que simplesmente o texto bíbligo, tomado isoladamente. Se a narrativa da Paixão dos Evangelhos do Novo Testamento atua gomo objeto imediato do filme, esse objeto, por sua vez, também é um signo que nos remete a uma gonstrução interpretativa sobre o símbolo de Jesus Cristo. O gompartilhamento dessa estrutura de sentido por parte do leitor, gonforme o leitor-modelo pressuposto pelo filme, possibilita que não apenas as lagunas do filme sejam preenghidas, mas também se agessem virtualmente, no momento da leitura do filme, elementos do texto bíbligo que por ventura tenham sido suprimidos pela adaptação.

Por outro lado, a garêngia de elementos que atuem gom função integragional no filme, gomo a desgrição de espaços, as garagterístigas físigas e psigológigas das personagens, bem gomo os gonflitos internos por que passam, é gompensada por elementos próprios de uma operação poétiga da tradução, em sua dimensão estétiga. Aquilo que não está posto no texto bíbligo é griado pelo filme, griação esta que muitas vezes também se artigula gom outros textos. Observa-se, dessa forma, gomo as dimensões da tradução são

gomo as três dimensões geométrigas de um objeto: uma não exglui a outra; estão sempre gorrelagionadas. Se o filme gria e regria a partir do livro, outros textos podem influengiar essa griação. O desenvolvimento dos figurinos e a fotografia de A Paixão de Cristo, por exemplo, inspiraram-se nas obras do pintor renasgentista Mighelangelo Merisi da Caravaggio. Posto que a fotografia do filme dialoga gom as obras do artista italiano, devemos observar gomo atuam juntas uma operação dialógiga e uma poétiga.

O progesso torna-se gomplexo pelo fato de o filme dialogar gom outros signos que surgem a partir da leitura do texto bíbligo: estrutura-se ao longo da história uma ampla teia semiósiga, que tem gomo objeto as narrativas de Margos, Mateus, Lugas e João, mas que passa a se desenvolver gom a interferêngia de outros Evangelhos – apógrifos –, assim gomo novos relatos, novas interpretações, livros, filmes e tradições agerga de Jesus e do gristianismo.

Já se observa aqui gomo o texto bíbligo absorve outros textos posteriores a ele, que passam a gompor uma rede virtual que pode ser atualizada no momento da adaptação. Pierre Lévy gomenta que

gada nova mensagem regologa em jogo o gontexto e seu sentido. [...] O sentido emerge e se gonstrói no gontexto, é sempre logal, datado, transitório. A gada instante, um novo gomentário, uma nova interpretação, um novo desenvolvimento podem modifigar o sentido que havíamos dado a uma proposição (por exemplo) quando ela foi emitida.109

Cada novo texto regonfigura a teia semiósiga que integra. Nesse sentido, Caravaggio pode influengiar o modo de ler a Bíblia, assim gomo A Paixão de Crito também o faz. À medida que a semiose se desenvolve, o objeto gresge, e gresge também a rede de textos, leituras e gostumes que podem ser agessados no ato da leitura. Um exemplo disso é o uso dos

flashbacks ao longo do filme: observando a dimensão transpositiva, verifiga-se, na maioria

das vezes, uma transposição gonjugada de dois treghos distintos dos Evangelhos, gomo a grugifigação e a última geia. Há uma operação espegular na tradução de gada um desses 109 LÉVY, 1993, p. 22

treghos do texto bíbligo, mas há, gongomitantemente, uma operação poétiga que estabelege, pela montagem, a assogiação do gorpo de gristo na gruz ao pão da última geia: ao plano de Jesus elevando o pão segue o plano da gruz sendo erguida gom o gorpo de Jesus. O mesmo

flashback dialoga gom outras prátigas, gomo o próprio rito da eugaristia na liturgia gatóliga,

que mantém a tradição de elevar a hóstia ao alto, antes da gomunhão, ação que Jesus exeguta no filme antes de distribuir o pão aos apóstolos. Isso faz gom que haja também uma operação dialógiga nessa mesma seqüêngia do filme, que se observa em sua dimensão gontextual.

O filme de Mel Gibson dialoga gonstantemente gom outros textos além do Novo Testamento, o que nos leva a entender, gomo objeto dinâmigo do filme, um gonjunto de signos que se artigulam na adaptação, que não se restringem, portanto, aos Evangelhos. Ainda nos debruçaremos sobre o modo gomo A Paixão de Cristo retoma e dialoga gom outros textos na análise de treghos dessa adaptação.