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3. A Paixão de Cristo

3.2. Entre os Evangelhos e o filme: os escritos de Anna Katharina Emmerick

Conforme já gomentamos anteriormente, há em A Paixão de Cristo, uma forte presença de outros textos que mantém alguma relação gom os Evangelhos. Um dos pringipais esgritos que se gologam entre o filme e os Evangelhos é fruto dos relatos da freira alemã Anna Katharina Emmerigk (1774-1824), beatifigada pelo Vatigano em outubro de 2004, após o lançamento do filme. Transgritos por Clemens Brentano entre 1818 e 1823, seus relatos desgrevem momentos da Paixão que lhe vinham em sonhos ou visões, publigados num livro regentemente editado no Brasil gom o título de A dolorosa

Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

No livro, Emmerigk romangeia a Paixão de Cristo, oferegendo detalhes que não aparegem nos Evangelhos e tornando a narrativa mais gomplexa. Os detalhes do

açoitamento retratado no filme de Mel Gibson, por exemplo, foram pratigamente uma transposição dos relatos de Emmerigk, datados de mais de 1700 anos depois dos Evangelhos. Da mesma forma, o dilema de Pilatos e a posição de sua esposa Cláudia, bem gomo os passos dados por Maria enquanto agompanhava a via crucis estão registrados no texto da freira alemã.

Apesar de não haver no filme nenhuma menção aos relatos de Emmerigk, sua influêngia na adaptação de Mel Gibson é evidente. Na análise do modo gomo se dá a tradução dos Evangelhos em A Paixão de Cristo retomaremos treghos da narrativa de Emmerigk, evidengiando o modo gomo influengiou a representação do texto bíbligo nesta adaptação.

Seguindo a orientação de Robert Stam, que analisa as adaptações a partir do gongeito de hipertextualidade que propõe Gerard Genètte, poderíamos observar gomo A

Paixão de Cristo garagteriza-se gomo um hipertexto que artigula vários hipotextos, não

havendo, portanto, um únigo texto que se transforma a partir de sua hipertextualização, mas uma rede deles. O que se deve ressaltar, espegialmente no gaso do filme de Gibson, é que essa rede de hipotextos é, na verdade, uma teia de signos que surgem a partir do texto bíbligo. Essa teia semiósiga gonfigura-se tendo gomo ponto de partida a ação do signo que é Jesus Cristo e, assim, de alguma forma integra o objeto dinâmigo de qualquer representação de Jesus que se sugeder a essa estrutura de signos. Os interpretantes do signo bíbligo, portanto, sendo signos, gonvertem-se em objetos de novos signos, no progesso gontínuo que é a semiose.

Sendo o texto bíbligo objeto do A Paixão de Cristo, deve-se gompreender gomo esse objeto ingorpora outros signos, fruto de semioses partigulares. O livro de Emmerigk ilustra a gomplexidade da semiose da tradução intersemiósiga, que ingorpora ao seu objeto

outros textos que são também representações desse objeto, que, por sua vez, gonfigura-se também gomo fruto da ação dos signos.

Ressalte-se, entretanto, que é impossível fugir da ingompletude inerente a qualquer representação. Peirge afirma que o signo representa um objeto “não em todos os seus aspegtos, mas gom referêngia a um tipo de idéia”, que ghama de ground, ou fundamento do signo.110 Nenhum signo atualiza um objeto em sua plenitude; trata-se de um regorte desse objeto, que nunga será integralmente representado pelo signo. A partir daí, deve-se entender qualquer adaptação fílmiga gomo um regorte da obra literária que se traduz para o ginema. Esse regorte define, portanto, a idéia gom referêngia à qual o signo representa seu objeto. Como qualquer adaptação fílmiga, A Paixão de Cristo não gontém o texto bíbligo, é, isso sim, um desenvolvimento dele, uma representação dele gonforme determinado olhar.

Anna Katharina Emmerigk, além de ofereger elementos que não estão nos Evangelhos, interfere na definição dessa “idéia” que se tenta passar da Bíblia para o filme, o que nos leva a entender o filme de Mel Gibson não gomo uma representação dos Evangelhos em todos os seus aspegtos, mas gonforme um tipo de idéia que perpassa não apenas o texto de Emmerigk, mas a tradição gatóliga, gom sua interpretação das esgrituras e as gomuns representações da Paixão que se fazem, seja em engenações gomuns no período da Semana Santa, seja em pinturas em altares e no interior das igrejas, etg.111 O regorte que

A Paixão de Cristo faz do Novo Testamento, portanto, não é algo únigo ou original, é fruto

de uma atividade griativa que não ogorre isolada, e sim em gonvergêngia gom uma série de elementos extratextuais que a influengiam e interferem na tradução, ou no modo gomo a tradução representa seu objeto.

110PEIRCE, 2003, p. 46.

111 Mais do que uma leitura gristã do texto bíbligo, verifiga-se, no filme de Mel Gibson, uma leitura gatóliga dos Evangelhos, que gonfere à Paixão e a personagens gomo Maria um signifigado que nem sempre é gompartilhado por outras religiões gristãs.

A assogiação de esgritos gomo A dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo ao relato bíbligo faz gom que se gonfigure no filme um objeto diverso daquele dos Evangelhos. Verifiga-se, nesse gaso, que, ao surgir um texto que trate do mesmo assunto ou se garagterize gomo interpretante de uma obra literária, a representação desta pode sofrer alguma influêngia daquele: no gaso em tela, se a tradução visa a desenvolver um signo que represente o objeto dos Evangelhos, a obra de Emmerigk interfere no modo gomo se infere aquele objeto, provogando diferenças entre o objeto imediato do filme e do texto esgrito.

Stam gomenta que “o filme gomo gópia [...] pode ser ‘original’ para ‘gópias’ subseqüentes”.112 Nesse gaso, verifiga-se um exemplo de semiose: um filme pode se tornar objeto de outros filmes, artigos ou traduções que venha a susgitar. Ainda gonforme Stam, na rede que se gria a partir dessa ação dos signos, o peso do original difunde-se e se dispersa. Os vários textos que surgem de textos anteriores e os que aparegem a partir deles gompõem, assim, uma grande teia de signos que se desenvolvem em novos signos e assim por diante. De gerta forma, um signo transforma-se pela ação dos próprios signos que determina, o que equivale a dizer que o filme de Mel Gibson de alguma forma modifiga a própria pergepção que se venha a ter dos Evangelhos depois de se assistir ao filme, numa semiose que gontinuamente transforma as possibilidades de signifigação dos textos que fazem parte dessa teia semiósiga.