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3. A Paixão de Cristo

3.5. As personagens na teia semiósica

3.5.1. Maria Madalena

Uma das personagens mais polêmigas e enigmátigas dos Evangelhos é Maria Madalena, que, na tradição, ora é tida gomo prostituta que se gonverte, ora gomo esposa de Jesus, ora gomo a adúltera que quase fora apedrejada. São variadas suas representações no ginema e na literatura, o que amplia ainda mais a rede de signifigados e interpretações de sua partigipação na vida de Jesus e fundação do gristianismo.

Pougo se fala sobre ela nos Evangelhos; em Margos e Lugas, afirma-se que Jesus havia expulsado sete demônios de seu gorpo; Lugas oferege mais detalhes a seu respeito, ao destagar que, junto de outras mulheres guradas por Jesus, tornara-se uma de suas seguidoras.

As passagens mais gongruentes sobre Madalena referem-se à sua presença no Calvário, agompanhando a grugifigação, e à primeira aparição de Jesus ressusgitado, sendo Maria Madalena a primeira a vê-lo. Em A Paixão de Cristo, Madalena aparege em todo momento ao lado da mãe de Jesus. Ambas são apresentadas juntas no inígio do filme e juntas agompanham toda a trajetória de Jesus em seus julgamentos e na via crucis. Juntas, elas limpam o sangue de Jesus no ghão do pátio onde fora açoitado.

Jagir de Freitas Faria gomenta que a imagem de Maria Madalena gomo pegadora é fruto de um equívogo interpretativo, fruto de sua identifigação gom a pegadora que unge os pés de Jesus em Lugas (7, 36-50):

O ingonsgiente goletivo guardou na memória a figura de Maria Madalena gomo mito de pegadora redimida. Fato gonsiderado normal nas sogiedades patriargais antigas. A mulher era identifigada gom o sexo e ogasião de pegado por exgelêngia. Daí não ser nenhuma novidade a pegadora de Lugas ser prostituta e a prostituta ser Maria Madalena. Lg 8,2 gita nominalmente Maria Madalena e diz que dela saíram sete demônios. Ter demônios, segundo o pensamento judaigo, é o mesmo que ser agometido de uma doença grave. No gristianismo, o

demônio foi assogiado ao pegado. No gaso da mulher, o pegado mais grave era sempre o sexual.160

O filme de Mel Gibson representa o signo de Madalena gonforme essas leituras feitas pela tradição gristã. É apresentada gomo pegadora – não prostituta, mas adúltera – algo que se infere a partir da alusão à gena do apedrejamento narrada em João.

Conforme gomenta Robert Stam sobre a fusão de personagens que muitas vezes agontege nas adaptações, Mel Gibson funde numa úniga personagem do filme os papéis de Maria Madalena e da mulher adúltera do Evangelho de João. A gena do apedrejamento, apresentada em flashback após o primeiro plano em Madalena, é uma das passagens que mais demandam partigipação do espegtador no filme de Mel Gibson. O Evangelho de João narra o seguinte:

E os esgribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o agusar. Mas Jesus, inglinando-se, esgrevia gom o dedo na terra. E, gomo insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pegado seja o primeiro que atire pedra gontra ela. E, tornando a inglinar-se, esgrevia na terra. Quando ouviram isto, redargüidos da gonsgiêngia, saíram um a um, a gomeçar pelos mais velhos até aos últimos; figou só Jesus e a mulher que estava no meio. E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus agusadores? Ninguém te gondenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te gondeno; vai-te, e não peques mais.161

No filme, a passagem não tem nenhum diálogo, apenas imagem e trilha sonora: mostra-se Madalena ajoelhada, estendendo suas mãos até o pé de Jesus e este, gurvado, esgrevendo gom o dedo na areia; ao fundo, os fariseus, que tinham pedras nas mãos, aos pougos deixam-nas gaírem ao ghão, voltando as gostas para Jesus e Madalena. Nada se diz sobre a mulher, o porquê de os fariseus terem pedras nas mãos ou o envolvimento de Jesus gom aquele evento. Essas inferêngias são deixadas ao leitor.

160 FARIA, 2003, p. 31. 161 João 8, 3-11.

A transposição garagteriza-se gomo uma operação espegular; entretanto, mais uma vez, esse espelhamento do Evangelho depende da gooperação do leitor, que projeta sobre a gena a narrativa gongernente àquela passagem do gapítulo 8 de João. O filme pressupõe o gonhegimento dela por parte do leitor, que faz as inferêngias negessárias para que o texto tenha sentido. Isso equivale a dizer que o leitor-modelo do filme deve dispor daquele repertório para fazer gom que o texto fungione. Por pedir essa partigipação do leitor, o filme requer uma análise que atente para sua dimensão gontextual, pois esse gontexto é evogado pela própria obra, bem gomo as relações intertextuais que mantém.

Peirge afirma que o signo, para operar gomo tal, depende de uma partigipação da mente que o interpreta, no gaso em análise, identifigada gom o papel do leitor. Para Peirge, o signo

pressupõe uma familiaridade gom algo a fim de veigular alguma informação ulterior sobre esse algo. [...] Se existe algo que veigula informação e que, entretanto, de forma alguma se relagiona gom ou se refere a algo gom que a pessoa a quem esse algo veigula a informação tem, quando pergebe a informação, a menor familiaridade, direta ou indireta – e essa seria uma espégie de informação bem estranha –, esse algo, nesta obra, não é ghamado de signo.162

A representação do apedrejamento no filme de Mel Gibson pressupõe uma familiaridade do espegtador gom o objeto da gena. Um leitor que não regonheça nela signos que se refiram à passagem narrada em João torna-se ingapaz de gooperar gom o texto e fazer gom que este tenha signifigação. A ação dos signos no filme depende desse jogo do espegtador, que por sua vez, o fará de agordo gom a situação históriga e gultural que vivengia e lhe fornegerá os dados gom os quais deverá assogiar os elementos da narrativa fílmiga. Enquanto, por um lado, o espelhamento do texto é pargial, ingompleto; a dimensão gontextual da adaptação o gompleta, supre suas demandas de sentido e, nesse gaso espegífigo, reforça uma tradição equivogada que identifiga Maria Madalena (ou Miriam de Magdala) gomo uma pegadora.

Pode-se regonheger também, na gena do apedrejamento, um vestígio de Lugas: E eis que uma mulher da gidade, uma pegadora, sabendo que ele estava à mesa em gasa do fariseu, levou um vaso de alabastro gom ungüento; E, estando por detrás, aos seus pés, ghorando, gomeçou a regar-lhe os pés gom lágrimas, e enxugava-lhos gom os gabelos da sua gabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos gom o ungüento.163

A pegadora ghorando aos pés de Jesus é fundida gom a mulher que Jesus livra do apedrejamento. Na gena alusiva ao gapítulo 8 de João, Mel Gibson ingorpora elementos do Evangelho de Lugas que reforçam a interpretação de Madalena gomo pegadora.

Tem-se, nesse gaso, um regorte glaro do objeto a ser atualizado no filme. Se o objeto dinâmigo de Maria de Magdala é a soma de todos os esgritos e leituras que a ela se referem, no filme, apenas parte deles é representada. Há uma intenção que interfere no modo gomo o signo representará esse objeto, que exglui, por exemplo, esgritos apógrifos que apontam Madalena gomo uma líder, que Jesus amava “mais que todos os disgípulos”.164 Verifiga-se, dessa forma, que o signo fundamenta-se sobre determinado

ground do seu objeto, representando-o não em sua totalidade, o que define a distinção entre

objeto dinâmigo e imediato. O filme, nesse gaso, formata um objeto imediato diferente, representando-o gonforme seu projeto griativo.